Como os indígenas avançaram no Legislativo com votos do Sudeste e o peso da pauta ambiental

Um Só Planeta - https://umsoplaneta.globo.com/sociedade/noticia/ - 25/10/2022
Como os indígenas avançaram no Legislativo com votos do Sudeste e o peso da pauta ambiental
Das 164 candidaturas autodeclaradas indígenas neste ano, nove tiveram sucesso; eleitos refletem polarização política do país

Por Martina Medina, Para Um Só Planeta
25/10/2022 07h00

Esta história foi produzida com o apoio do Fundo para o Jornalismo Voltado a Florestas Tropicais, em parceria com o Pulitzer Center

Nascida na Terra Indígena (TI) Araribóia, porção amazônica do estado do Maranhão, Sônia Guajajara fez história ao se tornar uma entre os nove indígenas eleitos em 2022. Com sua campanha em defesa dos povos indígenas e do meio ambiente, ela angariou mais de 156 mil votos em São Paulo. É a primeira vez que o Congresso terá mais de uma cadeira ocupada por membros de comunidades originárias.

"Nós, indígenas, somos apenas 5% da população mundial, mas protegemos 82% da biodiversidade viva no mundo. Se não há proteção do nosso modo de vida, a vida no planeta está ameaçada", bradou, entre aplausos e o som do maracá, diante do público majoritariamente não-indígena da Faculdade de Direito da USP, no dia 1o de setembro, em evento do Tribunal Permanente dos Povos (TPP).

Diante da agenda do atual governo, organizações indígenas decidiram impulsionar candidaturas em 2022 e aumentar sua representatividade no Congresso após anos evitando entrar na política institucional. É no Legislativo Federal que tramitam projetos que ameaçam os direitos indígenas, como o PL 191/2020, iniciativa do próprio governo federal, que visa regulamentar a mineração em terras indígenas.

Além de incentivar a exploração econômica nas terras indígenas e enfraquecer órgãos públicos de proteção socioambiental, o atual governo não demarcou nenhum território aos povos originários. Das 728 TIs existentes no país, 310 aguardam reconhecimento do Estado, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Já os territórios demarcados sofrem com a invasão de grileiros, madeireiros e garimpeiros.

O interesse dos indígenas pela política institucional vem crescendo desde a Constituição de 1988, quando seus povos foram considerados cidadãos brasileiros plenos, além de detentores de direitos específicos, explica o antropólogo e filósofo indígena Gersem Baniwa. "A Constituição garante direitos, traz uma maior qualificação do debate ao garantir acesso da população indígena à formação acadêmica, além de impulsionar o surgimento de um movimento indígena organizado, resistente e crítico", diz ele.

"Há quase 522 anos, o poder público não representa bem a proteção da população indígena. Então, hoje queremos ocupar vagas na Câmara, no Senado e na Presidência", resume Dário Kopenawa, liderança da TI Yanomami, a de maior população indígena do país, localizada no Amazonas e em Roraima. No evento do Tribunal Permanente dos Povos, em São Paulo, ele representou seu povo, incluindo o pai, o xamã Davi Kopenawa.

No total, 164 candidaturas autodeclaradas indígenas concorreram às casas legislativas em todo o país este ano. A maioria estava concentrada em partidos de esquerda. Porém, apenas uma pequena parcela se alinhou às pautas do movimento indígena, segundo o coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kleber Karipuna. A entidade lançou 30 candidaturas aos Legislativos estadual e federal em 20 estados com uma pauta comum em defesa do meio ambiente e dos direitos dos povos indígenas. Delas, 16 eram de estados da Amazônia Legal e 25, candidaturas femininas, denominadas como "Bancada do Cocar".

Os indígenas eleitos refletem a polarização política do país. Dos nove eleitos em 2022, duas tiveram suas campanhas impulsionadas pela Apib: Sônia Guajajara (SP) e Célia Xakriabá (MG), ambas pelo PSOL. Outros três não contam com o reconhecimento do movimento indígena, mas estão ligados a um partido considerado progressista, o PT: Juliana Cardoso (SP) e Paulo Guedes (MG), na Câmara, e Wellington Dias (PI), no Senado. São quatro os nomes que apoiam o atual governo: Silvia Waiãpi (PL-AP), na Câmara, o atual vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS), no Senado, e dois deputados estaduais do PL, no Espírito Santo e no Rio de Janeiro.

As mulheres são maioria entre os eleitos, contando cinco representantes no Legislativo. Os nove estados da Amazônia Legal concentram 55% da população indígena do país e tiveram quase metade das candidaturas femininas indígenas. Porém, a área conquistou só uma cadeira no Congresso. Com a menor votação entre as eleitas, 5.435 votos, a tenente indígena Silvia Waiãpi foi puxada pelo PL, que conseguiu os 52 mil votos do quociente eleitoral. Silvia representará o Amapá na Câmara. Apesar da origem amazônica, Sônia Guajajara foi eleita por São Paulo.

Joênia Wapichana (Rede-RR) se tornou a primeira mulher indígena eleita deputada federal, por Roraima, em 2018, após um intervalo de mais de 30 anos sem representantes originários no Congresso. Mas não conseguiu se reeleger. Ela obteve mais de 11 mil votos, resultado um terço maior do que no pleito anterior, e foi a sexta mais votada em seu estado, o que a colocou à frente de três candidatos eleitos. Porém, a federação partidária Rede e PSOL, pela qual se candidatou, não alcançou o quociente eleitoral, de 36 mil votos, o que impossibilitou sua eleição no sistema proporcional. Em 2018, a coligação PTB/REDE/PV/PT garantiu sua eleição.

Fator Joênia
Um dos legados de Joênia foi abrir portas para mais indígenas na política. "Sou a primeira, mas não quero ser a única", foi a frase repetida por ela ao longo de seu mandato e durante a campanha. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 84 mulheres indígenas concorreram a um cargo público este ano, uma alta de 75% em relação ao pleito de 2018 e de 189% se comparadas às eleições de 2014, quando teve início a autodeclaração de cor e raça na Justiça Eleitoral. Roraima, estado de origem de Joênia, teve o maior número de candidaturas indígenas registradas: 30, sendo 14 mulheres.

Segundo Dário Kopenawa, liderança da TI Yanomami, Joênia e outras mulheres indígenas, como Sônia, a primeira vice em uma chapa presidencial (em 2018, ao lado de Guilherme Boulos), têm puxado o movimento de ingresso na política institucional por estarem mais presentes do que os homens em espaços como as universidades. Além disso, elas conquistaram um maior protagonismo político ao liderarem as principais entidades do movimento indígena.

Joênia é considerada a primeira mulher indígena a se formar em direito no Brasil, em 1997. Célia é doutora em antropologia e uma das fundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga). Outra cofundadora da entidade é Sônia, que também coordena a Apib, e é educadora e enfermeira. "Apenas uma não vai conseguir provocar toda a mudança necessária. Joênia esteve lá, enfrentando, e vimos que era hora de fortalecermos a voz dela no Congresso Nacional com representantes indígenas de outros estados", diz a maranhense.

Mesmo sendo a única indígena no Congresso na última legislatura, Joênia teve um mandato significativo na avaliação de especialistas. É de sua autoria o pedido de vista que impediu temporariamente, em junho de 2021, a votação do projeto que cria o marco temporal, tese que reconhece como TIs apenas aquelas habitadas em 1988. Junto de outros parlamentares, a deputada conseguiu barrar ainda retrocessos como a PEC 343, que previa o arrendamento de até metade de uma determinada TI a produtores rurais sem consulta prévia às comunidades indígenas.

Outro legado foi a articulação da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, que reúne 237 legisladores do país. Como coordenadora, Joênia apresentou na CPI da Covid-19 um dossiê sobre as omissões do governo federal na proteção dos povos tradicionais durante a pandemia. Também é uma das pouco mais de 200 integrantes da bancada ambientalista no Congresso, que faz frente à bancada ruralista e seus quase 300 membros.

A deputada protagonizou a convocação de audiências públicas para apurar a violência contra indígenas, cujos casos registrados chegaram a 355 no ano passado, o maior número desde 2013, quando os dados começaram a ser contabilizados pelo Cimi. Muitos deles estão ligadas ao aumento de 500% no garimpo ilegal nos territórios nos últimos dez anos, segundo dados do Mapbiomas. Na TI Yanomami, cuja maior porção fica em Roraima, estima-se a presença de mais de 20 mil garimpeiros, alguns acusados de violentar crianças e mulheres indígenas, além de serem vetores de doenças.

Efetividade da Bancada do Cocar
Se, sozinha, Joênia já teve uma atuação relevante, a expectativa para o mandato de duas indígenas na Câmara é enorme. Segundo o coordenador executivo da Apib, Kleber Karipuna, elas devem atuar em conjunto com os legisladores da Frente Parlamentar Mista pelos Povos Indígenas, e se aliar a parlamentares de movimentos sociais, como os sem-terra, quilombolas, feministas e ambientalistas, para criar uma "Bancada da Terra". Entre as prioridades das recém-eleitas está articular a demarcação de TIs, o fortalecimento de órgãos indigenistas e de proteção ambiental.

Mas os desafios da próxima legislatura serão ainda maiores do que os enfrentados por Joênia. Apesar de ter dobrado, a "Bancada do Cocar" encontrará um Congresso mais conservador em 2023, quando menos da metade da Câmara será ocupada por parlamentares alinhados às pautas socioambientais. De acordo com a plataforma Farol Verde, eles são 43% dos eleitos. Já a bancada bolsonarista, considerada anti-ambiental pela ferramenta, aumentou para 48%. Nomes que vão na contramão ambiental, como o do ex-ministro do meio ambiente Ricardo Salles, passam a fazer parte do Legislativo no próximo ano.

"Por outro lado, tivemos um reforço de qualidade muito importante na representação de movimentos sociais que expressam a diversidade do povo brasileiro", avalia Márcio Santilli, sócio fundador do Instituto Socioambiental (ISA). Além das indígenas, entraram no Congresso representantes transsexuais e ligados ao movimentos negro. Um dos nomes que se destacam é o de Marina Silva (Rede-SP). A acreana carrega a experiência de quem ajudou a derrubar em 80% o desmatamento no país como ministra do Meio Ambiente.

Para ela, está no DNA de seu partido fortalecer as candidaturas indígenas. Foi pela Rede que Joênia se tornou a primeira mulher indígena no Congresso. A legenda teve o terceiro maior número de candidaturas indígenas este ano. Mas terá que discutir os motivos de não ter eleito nenhuma delas e aprender a lição para fazer diferente nas próximas eleições, admite a ex-senadora.

Voto não-indígena
O sucesso das mulheres indígenas nas eleições deste ano é a grande novidade do pleito em termos de representatividade feminina no Congresso, aponta a cientista política Débora Thomé, pesquisadora do estudo +Representatividade, do Instituto Update. "Foi um movimento maravilhoso de visibilidade, de se inscrever nos partidos e ir para essa batalha eleitoral e que acabou surtindo muito resultado", diz. "Eram mulheres que estavam fora do jogo da política institucional. Esta é a maior mudança em termos de visibilidade."

A especialista aponta que os indígenas, apesar de formarem um grupo importante, são minoritários, correspondendo a 1% da população brasileira. Com as quatro eleitas na Câmara, as mulheres indígenas alcançaram a chamada representação descritiva. Isso significa que essa população estará proporcionalmente representada pelas quatro cadeiras que vão ocupar dentre as 513 no próximo ano, explica Débora.

O voto urbano e não-indígena foi essencial para a vitória das mulheres indígenas nas urnas. Além de serem uma parcela pequena da população, os povos originários estão espalhados pelo território e, portanto, seu voto seria insuficiente para eleger candidatas e candidatos originários no Congresso.

Dois fatores principais explicam o engajamento não-indígena na histórica eleição de nove indígenas para o Congresso este ano, segundo Débora. O primeiro é o entendimento de parte da sociedade sobre a necessidade de ampliação da diversidade no Congresso. O segundo é o fortalecimento internacional da agenda climática, na qual os indígenas são vistos como atores essenciais.

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o conhecimento originário é essencial para deter a mudança do clima, já que os indígenas, mesmo sendo 5% da população mundial, ocupam 25% da parcela mais preservada do planeta. No Brasil, enquanto 20% da floresta amazônica foi desmatada nos últimos 40 anos, as Terras Indígenas na Amazônia Legal perderam apenas 2% de sua vegetação original, segundo dados do ISA.

Além de impulsionar a participação dos indígenas no processo eleitoral, a supressão de direitos e o retrocesso na política ambiental no atual governo também aumentaram o suporte de não-indígenas à causa indígena, explicam os especialistas.

Amazônia em São Paulo
Um dos maiores indicadores da importância do voto não-indígena no sucesso das candidaturas indígenas foi a eleição de Célia e Sônia em Minas Gerais e São Paulo. Esses estados são majoritariamente urbanos e têm uma menor parcela populacional de indígenas. Segundo Débora, nesses grandes centros urbanos, os eleitores têm maior propensão de escolher seus representantes por afinidade ideológica e não apenas por necessidades imediatas, como vagas em creches, como acontece em parcelas da Amazônia devido à maior vulnerabilidade econômica da população.

Sônia explica que sua mudança para São Paulo há um ano foi estratégica, tendo como um dos objetivos aumentar as chances de ser eleita no maior colégio eleitoral do país. No estado também estão sediadas empresas cujas decisões afetam territórios originários na Amazônia, segundo ela, aumentando a relevância de uma candidatura paulista. "Somos a última geração com a chance de conter as mudanças climáticas. Para isso, precisamos provocar uma mudança no modelo econômico", defendeu.

É também para transmitir o entendimento de que o que acontece na Amazônia afeta São Paulo, onde o céu escureceu por causa das queimadas de 2019, que a candidata amazônica optou por concorrer às eleições ali. "Precisamos nos entender como um só povo. A Amazônia está sofrendo hoje tudo que vocês sofreram aqui no passado: a pressão do desmatamento, das invasões...", disse, durante evento de pré-campanha na aldeia indígena Renascer, em Ubatuba, no litoral paulista.

O fato de as emendas parlamentares serem direcionadas aos estados pelos quais as candidatas se elegerem e não ao seu estado de origem pode ser um fator limitador e seria melhor se candidaturas indígenas da Amazônia tivessem sido eleitas também, pondera Teresa Harari, mestre em administração pública e governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), e coordenadora da campanha de Maial Kaiapó (Rede), candidata indígena a deputada federal não eleita no Pará.

Mas, sem dúvida, a eleição de Sônia é um ganho para a pauta indígena e amazônica independentemente do estado que ela representa, defende Teresa. "A Joênia defendia os direitos de todos os povos indígenas do Brasil e não apenas os de Roraima", lembra ela, que também é autora da tese de dissertação "Políticas para adiar o fim do mundo", na qual analisa qualitativamente o mandato da deputada.

Marina Silva, outra candidata de origem amazônica que saiu por São Paulo, concorda e observa que "o estado é o que reúne as melhores condições para ajudar o Brasil a fazer, enfim, a inflexão na direção de um novo ciclo de desenvolvimento com combate às desigualdades, pela democracia e pela sustentabilidade, que é o desafio deste século". A ex-ministra menciona que, juntamente com Sônia e outros parlamentares ambientalistas, defenderá no Congresso pautas capazes de beneficiar a área de maior população indígena do país, como políticas públicas voltadas ao desenvolvimento sustentável.

Débora Thomé concorda que a atuação das deputadas indígenas deve se concentrar nas grandes agendas do país, barrando projetos que prejudiquem os povos indígenas e o meio ambiente e elevando a visibilidade de pautas socioambientais. Segundo a especialista, para manter as conquistas e expandi-las, as eleitas devem fazer mandatos significativos de modo a conseguirem se reeleger na Câmara.
A deputada federal eleita Sonia Guajajara posa ao lado da liderança indigena ianomami Dário Kopenawa durante o Tribunal Permanente dos Povos, realizado na Faculdade de Direito da USP - Foto: Gabriela Portilho

"Duplicar a representação indígena no Congresso é um sinal de que a Campanha Indígena-Aldear a Política está no caminho certo", avalia Kleber, da Apib. "Nosso objetivo agora é cada vez mais ampliar essa representatividade, seja no âmbito do Poder Legislativo seja no Executivo", planeja ele, que vê a necessidade de ampliar a representatividade nas Assembleias Legislativas, onde apenas uma candidatura feminina autodeclarada indígena saiu vitoriosa este ano; nas Câmaras Municipais, em 2024; e alcançar também no Senado, onde ainda não há nenhuma mulher indígena.

Coordenação: Gabriela Portilho e Martina Medina
Jornalismo de dados e visualização: Cecília do Lago
Consultoria indígena: Olinda Muniz
Fotografia: Gabriela Portilho
Texto: Martina Medina

https://umsoplaneta.globo.com/sociedade/noticia/2022/10/25/como-os-indigenas-avancaram-no-legislativo-com-votos-do-sudeste-e-o-peso-da-pauta-ambiental.ghtml
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