'Sob minha responsabilidade está apenas o julgamento da questão dos trilhos'

Século Diário - secuolodiario.com.br - 10/10/2022
No 40o dia de mobilização, juiz federal de Linhares visita ocupação indígena com advogados da Vale

FERNANDA COUZEMENCO
10/10/2022 17:49 | Atualizado 11/10/2022 21:47

Aos 40 dias de ocupação de um trecho da ferrovia que atravessa a Terra Indígena de Comboios, em Aracruz, norte do Estado, completados nesta segunda-feira (10), o juiz federal da Seção Judiciária de Linhares, Gustavo Moulin Ribeiro, visitou o local, acompanhado de três advogados da Vale. A inspeção judicial conta na agenda deliberada na semana passada com ambas as partes, como atividade prévia à audiência de conciliação marcada para esta terça-feira (11), em Linhares.

A "quarentena" Tupinikim tem mobilizado centenas de famílias de pelo menos cinco aldeias, que buscam a revisão do acordo de compensação e reparação dos danos causados pela Vale e a BHP Billiton, proprietárias da Samarco, quando do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, em novembro de 2015, considerado o maior crime ambiental do país e da mineração mundial.

O acordo foi assinado há um ano com a Fundação Renova e, segundo os indígenas, não atende às necessidades das comunidades, tendo sido imposto pela entidade, sem respeitar a organização social tradicional indígena, tampouco a consulta prévia, livre, informada e de boa-fé, determinada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A ineficiência do acordo, bem como de todo o processo anterior de reparação e compensação, foi reconhecida na última quinta-feira (6) pelo perito judicial Frei Philip Neves Machado, responsável por auxiliar o juízo da 12ª Vara Federal, em Belo Horizonte, Michael Procópio Ribeiro Alves Avelar, por meio de laudos técnicos relativos ao eixo socioeconômico do caso. "O processo socioeconômico desenvolvido até o momento não é o que atende a vocês. Isso será levado à Justiça", afirmou o perito em visita à ocupação.

A revisão do acordo é reivindicada pelos indígenas diretamente à Vale, visto que a Fundação Renova perdeu sua legitimidade de negociação e diálogo não só com as aldeias, mas com vários outros grupos de atingidos, em diversos momentos, no último ano ou mais. A princípio resistente em declinar da Renova, ao longo da ocupação da ferrovia, as mineradoras aceitaram a condição e passaram a tratar diretamente do assunto com os indígenas. A inflexibilidade em abrir mão de seus próprios interesses em prol do atendimento dos direitos das vítimas de seu crime, no entanto, não mudou.

Passados 40 dias, a gigante mundial da mineração se nega a aceitar as pautas das comunidades e chegou a impetrar pedido de reintegração de posse, na justiça estadual, que resultou em liminar exigindo desocupação imediata, sob pena de multa de R$ 5 mil por pessoa, por minuto de descumprimento. O próprio juiz estadual, dias depois, reconheceu que a competência para julgar o caso é da Justiça Federal e suspendeu os efeitos de sua liminar.

Já o juiz federal Gustavo Moulin Ribeiro, em sua entrada no caso, demonstrou, até o momento, pré-disposição em ceder aos interesses da empresa e não das aldeias. A percepção é dos próprios indígenas, mediante as palavras do magistrado ao final da visita desta segunda-feira, em que ele invoca uma separação de competências não reconhecida pelas comunidades, onde a ocupação da ferrovia estaria descolada da luta pelos seus direitos como atingidos pelo crime ambiental da mineradora, o maior já registrado no país e na mineração mundial.

"Não sou eu quem vai ensinar vocês a defenderem o seu território, sua ancestralidade, tudo isso que está sendo discutido. Agora, em nome da Justiça, o que eu posso dizer é que essa questão judicializada não está sob a minha responsabilidade, está sob a do colega de Minas Gerais, na 12ª Vara, ou atual 4ª Vara da Seção Judiciária de Belo Horizonte. Sob a minha responsabilidade está apenas o julgamento da questão dos trilhos. Só isso", disse o juiz aos manifestantes presentes.

Em outros dois momentos, Gustavo Moulin Ribeiro chega mesmo a pedir que os indígenas desocupem a ferrovia, mesmo reconhecendo que sua presença ali deveria estar limitada à escuta e observação. "Fiz questão de vir aqui por iniciativa própria antes da audiência de conciliação que vai acontecer na justiça. Aqui não é meu lugar de fala, é meu lugar de escuta e de observação. Meu lugar de fala é na justiça amanhã. Gostaria de falar para vocês que não é um caso fácil de ser julgado, mas precisa ser tomada uma decisão em relação à liberação desse trilho. Um dos motivos que me trouxe aqui é fazer um apelo a vocês, que deliberem isso como comunidade (...) Gostaria que vocês realmente deliberassem e pudessem chegar à conclusão de que, nesse momento, a melhor saída é a desocupação da ferrovia".

Truculência jurídica

Desde o dia primeiro de setembro, homens, mulheres, crianças, jovens e idosos, às centenas, se alternam na ocupação dos trilhos, produzindo suas refeições, acampando, realizando assembleias e também celebrações, rodas de música e dança com a tradicional banda de congo de Caieiras Velha e outras aldeias.

Nesse tempo, a truculência jurídica e econômica das mineradoras - BHP Billiton e Vale são as maiores do mundo - conseguiram sufocar mesmo os esforços de revisão de acordo liderados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na chamada "repactuação". No dia seis de setembro, após 14 meses e mais de 250 reuniões e audiências públicas, um comunicado conjunto informou o fim, sem sucesso, da repactuação.

No documento, os Ministérios e Defensorias Públicas, bem como dos governos do Espírito Santo e Minas Gerais, lamentaram verificar que "Vale, Samarco e BHP não têm responsabilidade ambiental" e afirmam que "a execução de medidas reparatórias e compensatórias restou totalmente inviabilizada, em face dos dilatados prazos de desembolso [propostos pelas mineradoras], uma vez que a aceitação de tais prazos significaria transferir o ônus da mora àqueles que mais necessitam das medidas. É evidente, portanto, que houve o desvirtuamento, por parte das poluidoras, das premissas de celeridade e de definitividade, firmadas na Carta de Premissas de 22 de junho de 2021".

A repactuação e, até o momento, a ocupação indígena da ferrovia, se somam a uma série de outros acordos extrajudiciais firmados pelas mineradoras com comunidades ou instituições de justiça, na tentativa de reparar e compensar os danos provocados pelo lançamento de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração ao longo de mais de 600 km do Rio Doce.

O crime matou 19 pessoas, destruiu comunidades inteiras, inúmeras lavouras, pesqueiros tradicionais, destruiu a coesão social de dezenas ou centenas de comunidades tradicionais, ribeirinhas e costeiras, impediu milhares de trabalhadores de exercerem suas profissões, causando dificuldades financeiras, problemas de saúde física e mental.

Todas as águas atingidas pelos rejeitos continuam contaminadas, conforme laudo do perito oficial do juízo da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte (atual 4ª Vara, ligada ao novo TRF-6), trazendo insegurança ao consumo do pescado oriundo tanto de ambientes dulcícolas (rios), estuarinos (foz do Rio Doce) e marinho, o que levou a Justiça Federal a determinar medidas urgentes de proteção da saúde de consumidores e pescadores.

Desacreditada como entidade capaz de pacificar a situação, mediante medidas justas de reparação e compensação, a Renova tem sido seguidamente esvaziada da função e sofrido decisões judiciais de segunda instância que a obrigam a reverter diversas medidas ilegais, como as suspensões injustificadas de auxílios emergenciais, estornar aos atingidos os valores descontados das indenizações a título de pagamento de honorários advocatícios e a quitação geral de danos, imposta como cláusula nos contratos de indenização firmados via sistema Novel, hospedado em seu site.

Simultaneamente, contra as mineradoras criminosas, foi retomada a Ação Civil Pública de R$ 155 bilhões impetrada pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2016, para a qual o governo do Espírito Santo peticionou ser incluído como polo ativo.

"Já se passaram sete anos do desastre e o que se percebe é que as empresas pouco ou quase nada fizeram. Não é admissível que empresas do porte da Vale e BHP, que distribuem lucros de aproximadamente R$ 100 bilhões anualmente a seus acionistas, se neguem a prover reparação do mal que causaram", salientou o procurador-geral do Estado, Jasson Hibner Amaral, ao comentar sobre as recentes medidas judiciais tomadas pela PGE referentes ao caso, que incluem, além do pedido de integrar o polo ativo da ACP de 155 bi, também a petição do bloqueio de R$ 10 bilhões das contas da Vale e da BHP Billiton, para garantir a implementação de medidas de reparação e compensação de danos no litoral norte capixaba.

O Estado também estuda a possibilidade de recorrer à Justiça britânica contra a BHP Billiton, beneficiando-se de uma decisão recente da Corte de Apelação do Reino Unido, que rejeitou recurso da mineradora e aceitou julgar a ação impetrada em 2018 pelo escritório Pogust Goodhead, em favor de 200 mil atingidos no Espírito Santo e Minas Gerais.


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