Como Belo Monte desestruturou um ecossistema e as vidas de indígenas, ribeirinhos e pescadores
Cinco anos após colocar em operação sua 18ª turbina, a usina hidrelétrica de Belo Monte deixou um impacto ambiental e social.
A obra de R$ 19 bilhões alterou o curso do rio Xingu, deslocou dezenas de milhares de pessoas e provocou a morte de espécies da flora e da fauna locais - mais de 85 mil peixes, segundo o Ministério Público Federal, entre 2015 e 2019.
Moradores assistiram à invasão de madeireiros ilegais e à transformação dos rios.
Eles reclamam da falta de assistência da Norte Energia, concessionária que administra Belo Monte, e do poder público, que prometeu diálogo - segundo eles, isso não ocorreu.
O UOL esteve na região de Altamira (PA) entre novembro e dezembro de 2023 e entrevistou moradores, indígenas e ribeirinhos, que dizem viver uma "guerra pela água".
Há aldeias que vivem constantemente no escuro. Linhas de transmissão de Belo Monte passam praticamente na porta de algumas comunidades, mas não entram.
Dentro de uma delas, o que existe é uma máquina a diesel fornecida pela usina que funciona apenas por algumas horas por dia.
Quando a reportagem visitou o local, três turbinas de Belo Monte estavam operando, e por apenas duas horas. Embora a capacidade instalada seja de 11.233 MW, em 14 de dezembro de 2023 Belo Monte gerou apenas 243 MW. O sistema vivia uma seca prolongada, com impacto na produção de energia elétrica.
Embora a usina obedeça o regime de cheias e secas do rio Xingu, Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e hoje coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, afirma que os alertas sobre as variações hidrográficas do sistema deveriam ter repercutido mais na decisão de construi-la.
Em um relatório de outubro de 2023, o Ibama pede à Norte Energia que ajuste o hidrograma de Belo Monte para permitir que o rio disponha de "água suficiente para que a ecofauna se reproduza, sobretudo nas áreas de piracema".
Procurada pelo UOL em dezembro de 2023, a Norte Energia retornou apenas em fevereiro, após nova consulta da reportagem. A empresa afirmou que, ao longo de 2023, Belo Monte gerou 87 MW por dia - o que corresponde, segundo cálculos, a uma potência média de 3.634 MW, atendendo "cerca de 20 milhões de pessoas diariamente".
"Devido a sazonalidade da região Amazônica, essa quantidade diária de geração varia, chegando ao atendimento de 50 milhões de pessoas entre dezembro e maio, período de cheia do rio Xingu."
CEMITÉRIO DE FLORESTA
Comunidades ribeirinhas, vilarejos e aldeias indígenas lidam diariamente com as consequências de Belo Monte, visíveis por toda parte.
A angústia e o Parkinson não permitem que Raimundo Braga Gomes contemple o rio Xingu com tranquilidade. "O rio era meu pai e minha mãe. Hoje, tudo acabou", disse, ao levar a reportagem do UOL a bordo de uma voadeira ao cemitério de árvores inundadas pelo Xingu.
Pescador por cinco décadas na região, ele diz que não foram apenas os peixes que sumiram. Sua vida, como conhecia, desapareceu.
Em 7 de dezembro de 2018, ao voltar do trabalho, descobriu que sua casa havia sido incendiada, com tudo dentro. Nunca soube quem ateou o fogo.
Ele e centenas de moradores da região de Volta Grande do Xingu (PA) tiveram de sair de suas casas para dar lugar às obras de Belo Monte. Raimundo foi colocado num bairro afastado de Altamira, construído para abrigar as pessoas removidas.
Ao lado da reportagem, o ex-pescador visitou o que é conhecido hoje como cemitério da floresta, ou paliteiro, uma área alagada pela barragem.
"Isso era a coisa mais bonita que existia", disse. "Nem pássaro mais voa sobre o rio. Vão comer o quê?", completa.
À ESPERA DO CHAMADO
O território indígena do povo arara é um dos que sentem os efeitos de Belo Monte.
Uma das promessas era que, em paralelo à obra, haveria a regularização das terras indígenas, inclusive com a desintrusão de famílias não indígenas da Terra Indígena Cachoeira Seca. Até hoje, isso não ocorreu.
Tatji Arara, o cacique da aldeia Tagagem no TI Arara, conta que seu grupo havia criado um protocolo de consultas. A esperança era que, se a obra fosse adiante, eles seriam chamados para dialogar.
"Só vieram falar quando já estava tudo pronto. Vieram nos apresentar a usina e, agora, nem falam mais", lamentou o cacique.
Para barrar os invasores, uma parte da comunidade decidiu sair e criar uma nova aldeia, dentro da mesma terra. Mas, longe da sede, o grupo ficou sem escola e posto de saúde. Hoje, a única escola fica numa cidade próxima e sequer ensina sua língua autóctone.
"Antes, não adoecíamos tanto. O rio secava, mas jamais como está acontecendo agora", disse Tipi, de 80 anos, numa referência ao rio Iriri, que banha o território Arara.
Raul do Valle, advogado que acompanhou de perto a aprovação do projeto, afirma que a usina embute uma "crise planejada". Segundo ele, seria muito improvável que ribeirinhos e indígenas da região não viessem a ter suas vidas afetadas, mas o discurso oficial não quis reconhecer o fato.
SECA E DESMATAMENTO
Wogaraumium Arara, esposa do cacique, é outra que alerta para a dimensão inédita da seca. "Hoje, andamos mais a pé que de barco por alguns dos rios", disse.
Para ela e uma dezena de entrevistados, há uma relação direta entre a obra e a explosão da presença de madeireiros na região.
Segundo os indígenas, as autoridades locais insistem que eles não deveriam ter abandonado a sede de sua terra. "Tinha muita invasão e fizemos essa nova aldeia para poder conter", explicou o cacique.
A poucos quilômetros dali, em outra aldeia, o cacique Motjibi Arara aponta que, depois de concluída, a obra deixou centenas de homens sem emprego que foram buscar sobrevivência extraindo madeira.
Segundo ele, alguns dos ramais e rotas de retirada de toras de dentro da floresta chegavam a ter 20 quilômetros de extensão. Outras desembocavam a 500 metros das bases do Ibama.
Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama, explicou ao UOL que o órgão espera concluir ainda no começo de 2024 a análise de renovação da licença ambiental de Belo Monte, vencida em 2021. A licença é automaticamente prorrogada quando a empresa entrega os documentos. Agora, cabe ao órgão analisar seu impacto.
Ele admite que existem "muitos problemas de cumprimento dos condicionantes". "Nem tudo o que estava nos estudos originais de confirmou", afirma. "Há um atraso na época de chuvas e secas mais intensas. O desenho original nunca foi confortável. Mas, hoje, isso se agravou com as mudanças climáticas."
Ainda assim, Agostinho afirma que o Ibama não será "irresponsável". "Sabemos da importância que a usina tem para a geração de energia no Brasil. É essa complexidade que hoje o Ibama avalia."
O projeto de Belo Monte surgiu em 2007. Naquela época, o país precisava atender à crescente demanda energética, sob o risco de apagões, e estudou alternativas na região Norte, como a instalação de um parque eólico, mas essa opção não era competitiva.
Estudos para implantar uma hidrelétrica na bacia do rio Xingu, desenhados em 1975, foram revistos. Assim surgiu Belo Monte, uma usina fio d'água (sem reservatório) em que a produção de energia segue a vazão natural do rio.
A construção começou em 2011, não sem debate. As obras foram atrasadas pelas discussões relacionadas ao meio ambiente e direitos indígenas, que levaram a um racha no governo do PT. Em 2016, ela começa a operar.
Como o sistema de produção elétrica do Brasil é todo interligado, a produção de Belo Monte durante os meses de cheia, entre janeiro e maio, ajuda a poupar os reservatórios no Nordeste e os da bacia do rio Paraná. Nesse período, ela aciona todas as turbinas e opera sem pausa. De julho a novembro, a seca do rio faz com que a produção diminua consideravelmente.
Na média, a potência para geração de Belo Monte fica em 4,5 mil MW. Ao longo de 2022, a energia gerada por Belo Monte atendeu a 6% de todo o consumo de energia do Brasil segundo a Norte Energia, e no primeiro semestre de 2023, gerou 9,4% de toda a energia elétrica do país.
"Não é um percentual desprezível para uma única usina", avalia Altino Ventura Filho, ex-presidente da Eletrobras e secretário de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério de Minas e Energia, entre 2005 e 2016.
A NOVA TRANSAMAZÔNICA
Há um questionamento científico sobre o argumento de que Belo Monte seria uma energia limpa.
Segundo um estudo coordenado pela Instituto de Geociências da USP, em parceria com a Universidade de Linköping, na Suécia, a Universidade de Washington (EUA) e a UFPA (Universidade Federal do Pará), a implantação da hidrelétrica aumentou até três vezes as emissões de gases de efeito estufa na região.
Os dados comparam as emissões antes e depois da construção e implantação da usina, levando em consideração as estações seca e cheia. O aumento é causado pela decomposição de matéria orgânica em áreas inundadas, entre elas o cemitério de floresta visitado pelo UOL.
Questionada sobre o tema, contudo, a Norte Energia afirma que uma pesquisa conduzida pela COPPE, centro de pesquisas de engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, concluiu que as emissões de CO2 de Belo Monte estão em níveis similares a de outras fontes de energias renováveis, como eólica e solar. A pesquisa, publicada em fevereiro, "detalha que Belo Monte é a hidrelétrica que menos emite no bioma Amazônia, sendo a quinta usina mais eficiente do Brasil em termos de taxa de intensidade de gases poluentes".
*
Dom Erwin Krautle, bispo emérito do Xingu, conta que foi conversar com Lula duas vezes em Brasília durante a construção de Belo Monte.
Segundo ele, os representantes do PT na cidade eram contra a usina, mas Lula estava convencido da obra. "Ele dizia que o governo não iria repetir os erros de outras obras e que havia aprendido com outras usinas."
O bispo conta que o discurso usado durante as obras era o mesmo que existia quando a rodovia Transamazônica foi construída.
"Diziam que ia chover dinheiro e que seria o progresso", afirmou o religioso austríaco que há 60 anos vive na região.
"Hoje, o dano está feito. Fui chamado de bispo contra o progresso e desenvolvimento. Tive de andar com escolta policial. Mas quem me xingou, hoje diz que eu tinha razão."
FIM DA VIDA
Pescadores da região contam que existe um braço de ferro sobre a partilha do volume que vai para as turbinas e o que fica na região de Volta Grande.
Sara Rodrigues Lima, pescadora de um vilarejo, afirma que "há anos não há uma piracema e o sistema está em colapso", diz.
Sara e seu pai, Francisco Valeriano Rodrigues, levaram a reportagem a um afluente do Xingu. Era possível andar quilômetros sobre o que era o leito do rio.
Pelo chão, as frutas que deveriam cair sobre a água, como o sarão, já não encontram os peixes que se alimentavam delas. Espécies como o pacu são cada vez mais raras.
Quando sai para pescar, Sara viaja com outras nove pessoas e, cinco dias depois, volta com cerca de 50 quilos de peixes. Antes, em dois dias, eles voltavam para casa com 500 quilos.
Se a renda mensal de uma família poderia chegar a R$ 6.000, hoje ela não passa de R$ 500.
A GUERRA É AQUI
O Ibama decidiu que, diante do colapso da pesca, era necessário estabelecer um sistema de recompensa financeira pelos prejuízos.
Mas, num primeiro momento, coube à Norte Energia definir quem eram os pescadores, e uma lista com apenas 1.900 mil nomes foi aprovada - há outros 4.000, segundo a comunidade.
"Os jovens não têm mais trabalho ou opção. Bebem e consomem drogas", lamenta Sara. Seu próprio irmão deixou de pescar para vender castanha na travessia da balsa no rio Xingu.
Ela conta que funcionários de Belo Monte vieram propor que sua família atuasse dentro das atividades de apoio à navegação.
"Tiraram o nosso rio, e aí nos empregam para puxar canoa? Queriam nos empregar para que não houvesse mais quem brigasse pelo rio", afirmou Sara.
Sara ainda acusa o atual governo de ignorar a crise. "Lula fala de combate à fome. Mas, aqui, quem causou a fome foi o PT", disse. "Lula está preocupado com a paz no mundo. Mas estamos em guerra aqui."
RESISTÊNCIA RIBEIRINHA
Para realocar cerca de 22 mil pessoas, a Norte Energia criou bairros na periferia de Altamira - vilarejos artificiais cujas ruas não levam a lugar algum e com transporte precário. Foram construídas cerca de 6.000 casas, de 63 m² cada uma.
O reassentamento desmontou o tecido social e as comunidades foram desfeitas. Grupos criminosos se infiltraram e o resultado não demorou a aparecer. A taxa de homicídios aumentou 1.100% entre 2000 e 2015.
A família de Mauro Juruna, que estava em Vitória do Xingu (PA) há meio século, foi retirada da área em 2013.
A indenização de R$ 250 mil que seria dividida entre 20 famílias não era suficiente para compensar o que perdiam. "Não dava comprar outra área e não queríamos que as famílias se fragmentassem", explicou.
Segundo ele, não houve negociação. "Davam dez dias, depositavam o valor em juízo e mandavam a Força Nacional", lembra.
Alguns foram morar de aluguel em Altamira, enquanto os homens foram aprender a trabalhar na construção civil.
"Foi um desastre para nós. Fomos humilhados", disse. Hoje, ele tenta reunir de novo a família em outro terreno, na esperança de não ver sua cultura se perder.
Em sua pesquisa sobre Belo Monte, a antropóloga Ana de Francesco conclui que a usina provocou uma "desconfiguração do mundo" dessas pessoas.
Como resposta, um dos primeiros avanços ocorreu em 2016, quando coube aos próprios ribeirinhos expulsos de suas casas definir o tamanho da comunidade. Isso ocorreu graças à criação, naquele ano, do Conselho Ribeirinho.
Desde então, eles lutam para que um território ribeirinho vire realidade.
PELA SOBREVIVÊNCIA
Em outra frente, resistir também é tentar salvar espécies no rio Xingu.
As 22 famílias da aldeia Muratu do povo juruna, na terra indígena Paquiçamba, estavam sem luz havia dois dias. Um dos anciões se fortalecia com uma bebida com osso de capivara e espinha de arraia - há tempos nenhum profissional de saúde passava pela região.
As jovens Weslane e Railane se lembram quando entenderam que uma barragem seria construída na Volta Grande do Xingu (PA) - epicentro do dano causado por Belo Monte.
"Dá para parar um rio?"
Ambas passaram semanas tendo pesadelos.
Diel, um dos representantes da aldeia, integra o Monitoramento Ambiental Territorial Independente, uma rede de indígenas, pescadores e cientistas criada para propor um regime de águas que permita a continuidade das piracemas, evitando um ecocídio.
No dia da visita do UOL à aldeia, a comunidade falava em salvar os tracajás.
Diante da seca por causa da barragem, os animais ficavam perdidos, não conseguiam procriar, e a espécie vinha sofrendo uma queda dramática em números.
As crianças se reuniram para soltar no rio pequenos tracajás que tinham nascido, com a presença de técnicos vestidos com o uniforme da Norte Energia.
Naquela noite, depois de semanas sem uma gota do céu, finalmente choveu no Xingu, mas o volume de água na madrugada não seria suficiente para mudar a realidade da floresta e nem do rio.
Sobreviveriam?
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*Colaborou Camille Lichotti
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