Guajajara faz balanço positivo, mas garantia de direitos preocupa

Valor Econômico - https://valor.globo.com/ - 15/04/2024
Guajajara faz balanço positivo, mas garantia de direitos preocupa
Ministra dos Povos Indígenas diz que políticas públicas precisam ganhar força e elogia protagonismo do tema na área de sustentabilidade

Rafael Vazquez

15/04/2024

Um ano e três meses depois de assumir um ministério que nunca havia existido na história do país, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, faz um balanço positivo do período e disse que este mês de abril é mais para celebrar do que para se preocupar em relação ao momento atual. Por outro lado, admite que as políticas públicas que envolvem a pasta ainda precisam ganhar força para aumentar a proteção e garantir direitos, enquanto valoriza o protagonismo que povos originários têm ganhado no debate internacional sobre sustentabilidade.

Em relação a questões internas, a ministra afirma que a lei aprovada no Congresso ano passado que instituiu o marco temporal - tese segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar somente terras que já ocupavam antes da Constituição de 1988 - virou obstáculo para o ritmo das demarcações de terras, mas garantiu que não vai paralisar os trabalhos. "Enquanto em dez anos foram apenas 11 territórios demarcados, nós já demarcamos oito terras indígenas em um ano e estamos trabalhando para avançar mais ainda este ano."

Sobre a crise Yanomami, Guajajara comenta que o governo dimensionou mal a complexidade da situação depois de ações realizadas no ano passado que retiraram garimpeiros do território. Contudo, a ministra garante que o governo federal replanejou a estratégia, que agora consiste em uma presença permanente do Estado dentro do território para assegurar a segurança física e alimentar do povo que habita a maior terra indígena do Brasil, com 9,5 milhões de hectares - o dobro do tamanho da Suíça.

No cenário global, Guajajara agradece o reconhecimento da comunidade internacional sobre a importância do seu ministério, enquanto pede que o mesmo valor seja dado dentro do Brasil, algo que ela acredita que vem acontecendo gradualmente. A ministra ressalta o protagonismo que representantes indígenas estão obtendo em eventos internacionais relacionados ao meio ambiente e destaca que a articulação entre governos e empresários com povos originários tende a gerar melhor compreensão sobre o que é, de fato, praticar a sustentabilidade e gerar valor à produção econômica. Diz ainda estar atenta ao que habituou-se chamar de "greenwashing" - conduta de empresas ou governos que vendem uma autoimagem sustentável, mas não são. Ela também sinaliza que engrossa a fileira dentro do governo contra a exploração de petróleo na foz do Amazonas.

"Mundo está trazendo povos indígenas para o centro do debate político e de sustentabilidade"

Guajajara concedeu entrevista exclusiva ao Valor antes de sua apresentação no Skoll World Forum, evento de sustentabilidade e empreendedorismo social realizado em Oxford, Reino Unido, semana passada. A seguir, os principais trechos:

Valor: Embora eventos sobre sustentabilidade aconteçam há décadas, só mais recentemente vemos representantes de povos originários ganhando protagonismo. O que a comunidade internacional passou a observar que não via antes?

Sônia Guajajara: Realmente tem aumentado a visão de que os povos indígenas são importantes no papel de garantir um uso sustentável dos territórios e acho que esse entendimento também ganhou força a partir do Acordo de Paris [assinado em 2015], no âmbito das Conferências do Clima [COP], e pelas falas do papa Francisco ressaltando os conhecimentos dos povos indígenas como ciência. Tudo isso ajudou a abrir um pouco mais a visão das pessoas para trazer esse tema para o palco, pois os povos indígenas são os que mais fazem o sustentável. Porém, eu sempre chamo atenção para o cuidado com a apropriação indevida do conceito, pois a sustentabilidade está nas várias formas que os povos indígenas exercem a relação com a natureza. Quando falam como se tudo fosse sustentabilidade, às vezes, pode não corresponder ao que realmente significa. É o caso de monoculturas, por exemplo. Temos que tomar cuidados com várias iniciativas que usam o termo sustentável, mas que, na verdade, não condizem.

Valor: Milhares de pessoas estão em Oxford nesses dias para debater sustentabilidade, mas, do ponto de vista dos povos indígenas, o que é de fato promover um desenvolvimento sustentável?

Guajajara: É usufruir sem destruir a própria relação e os modos de vida com a natureza. Proteger a floresta, cuidar dos animais. E trazer essa relação também como cultura porque parte da cultura dos povos indígenas tem a ver com o que a natureza oferece. Por exemplo, os cantos. Na cultura, os indígenas falam de árvores, dos bichos, da água. Se não tivermos tudo isso protegido, a cultura fica enfraquecida. Portanto, é utilizar, mas também conhecer e proteger tudo isso faz parte desse bem viver que tanto defendemos. É respeitar a natureza e toda a sua diversidade de

Valor: E o quanto é preciso abrir mão para fazer isso de fato? No Brasil existe a discussão sobre se o governo deve ou não explorar o petróleo na foz do Amazonas.

Guajajara: Olha, nós estamos em um mundo em transição e quando falamos de sustentabilidade, de proteção do meio ambiente, redução das mudanças climáticas, estamos falando também de mudanças de comportamento, sejam elas na forma de consumo, sejam nas formas de produção. Hoje, as Nações Unidas e a FAO têm falado muito dessa mudança nos sistemas alimentares, por exemplo. São novas formas que precisam ser adotadas urgentemente para um sistema de agroflorestal e um sistema de produção múltipla para que possamos impedir que a temperatura [média do planeta] aumente acima de 1,5 grau. É o tema que está pautado e poucas medidas estão sendo efetivadas para evitar isso. Reduzir o petróleo também é uma dessas medidas que precisam ser adotadas urgentemente para evitarmos o ponto de não retorno. Portanto, não é somente uma questão de abrir mão de certas coisas, mas é de realmente promover a mudança e aproveitar o momento de pensar a transição justa para que, de fato, possamos contribuir para as metas globais. Envolve mais do que uma única tomada de decisão. Trata-se de uma tomada de consciência no mundo inteiro para que possamos realmente alcançar as metas da redução dos efeitos das mudanças climáticas.

"Lula e eu temos o compromisso de devolver o território e a dignidade aos Yanomami"

Valor: Depois de um ano e três meses de assumir um ministério totalmente novo, dos Povos Indígenas, é possível fazer um balanço de conquistas e obstáculos que precisam ser superados?

Guajajara: O ministério nasceu num momento muito oportuno em que o mundo está trazendo os povos indígenas para o centro do debate político. É um ministério que reúne as principais pautas globais, como a agenda ambiental, climática, sustentabilidade, biodiversidade, cultura, e direitos humanos. O país ganhou muito com a criação desse ministério e o mundo olha para isso hoje como um grande avanço. Como efeito direto, nós retomamos imediatamente a demarcação das terras indígenas no Brasil. Enquanto em dez anos foram apenas 11 territórios demarcados, nós já demarcamos oito terras indígenas em um ano e estamos trabalhando para avançar mais ainda neste ano. Nós fizemos a desintrusão de quatro terras
indígenas, retirando invasores, seja garimpeiros, madeireiros, ou grileiros dessas terras e temos mais uma lista de 28 [demarcações] prioritárias para fazermos nos quatro anos de mandato. E a desintrusão nesses territórios já contribuiu significativamente para a redução do desmatamento na Amazônia. Sei que é um desafio, mas também é uma grande oportunidade para que possamos avançar nas pautas que estavam paralisadas por decisão política no governo anterior.

Valor: O marco temporal é o maior obstáculo para as metas do seu ministério no atual momento?

Guajajara: Olha, o processo de demarcação de terras é um processo que tem várias etapas e prazos legais a serem cumpridos. Então, é difícil falar que vamos conseguir demarcar todas as terras em quatro anos porque temos um passivo muito grande e tudo precisa passar bem por diversas etapas que podem ser demoradas. Dito isso, é claro que a tramitação do marco temporal acabou atrapalhando o ritmo que pretendíamos porque mesmo que o Supremo Tribunal Federal tenha considerado o marco temporal como inconstitucional, a lei aprovada pelo Congresso trouxe várias outras orientações que nos obriga a atualizar todos os processos. Portanto, enquanto o Supremo não reafirmar sua posição de inconstitucionalidade, essa lei está vigente. E, com a lei valendo, há vários pontos ali que precisam ser considerados. Mas isso não nos faz paralisar todos os processos porque temos a Constituição Federal, que é maior e garante esse direito territorial e o dever da União em demarcá-las. Mas de momento seguimos trabalhando para atualizar todos os processos de modo que não infrinja uma lei vigente.

Valor: Em relação aos Yanomami, vimos cenas terríveis no ano passado que continuam se repetindo. Qual é a real dificuldade que o governo e o seu ministério têm para solucionar essa crise humanitária?

Guajajara: O território Yanomami é o maior território indígena do Brasil, talvez do mundo. É uma área que corresponde a duas suíças e é de difícil acesso, com muitas complexidades. Quando assumimos o governo e a situação, havia 20 mil garimpeiros dentro do território e as crianças estavam morrendo de desnutrição, malária e várias outras doenças tratáveis. É uma situação crônica e histórica. Trabalhamos durante um ano inteiro, a partir do decreto de emergência instalado pelo presidente Lula, para restabelecer a saúde do povo Yanomami. No entanto, logo de início, entendemos que o problema maior ali não era somente garantir o atendimento à saúde, mas retirar primeiro a raiz do problema, que eram os garimpeiros. Desde então, houve uma redução de mais de 80% de garimpeiros na área. No entanto, após a ação, houve a informação dada pelos próprios Yanomami de que os garimpeiros estavam voltando, o que nos fez retomar o planejamento. Instalamos ali uma Casa de Governo para ter uma presença permanente com ações articuladas entre vários ministérios que têm atribuição com povos indígenas e o meio ambiente para que agora comecemos a instalar bases interagências dentro do território. A ideia é manter essa Casa de Governo em Boa Vista e, com uma equipe mais estruturada, garantir a fiscalização permanente, retirando os garimpeiros que ainda estão lá. Mas é preciso destacar que não são somente garimpeiros. É o crime organizado que está lá, pessoas perigosas, e precisamos ter muito cuidado nessas operações para que não se acirre ainda mais o conflito e a violência contra os indígenas.

Valor: O que mais está sendo feito principalmente em relação à emergência de saúde alimentar dos Yanomami?

Guajajara: Continuamos fazendo entrega de cestas básicas e fornecendo ferramentas para que eles possam voltar a produzir seus alimentos de acordo com os seus próprios hábitos alimentares. Para isso, o governo autorizou, por meio de medida provisória, R$ 1,2 bilhão para fazer essas operações [para retirar todos os garimpeiros] e acabamos de assinar um contrato entre o MPI [Ministério dos Povos Indígenas], Funai e MGI [Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos] para que possamos fazer agora essas ações de entrega direta pelos ministérios, além da reforma e construção de 22 unidades básicas de saúde que estão sendo erguidas dentro do território.

Valor: Por que a crise dos yanomami ainda não foi solucionada?

Guajajara: O que dificultou foi entender qual é o panorama ali, o que de fato precisava ser feito. Fizemos isso durante um ano e agora estamos continuando com ações permanentes. A diferença é que antes havia a conivência do próprio governo [Jair Bolsonaro], que dava estímulo para que os invasores permanecessem. Agora nós temos o compromisso de retirar esses invasores, estabelecer a saúde dos povos indígenas ali e fazer a restauração com reflorestamento e produção conforme os modos de vida dos povos indígenas. Estamos fazendo esse acompanhamento diretamente. Sabemos que um ano não foi suficiente para fazer tudo o que precisava diante de todo o histórico de situações adversas. Agora vamos acompanhar de perto no dia a dia e retirar todos os garimpeiros. Esse é um compromisso do governo Lula e um compromisso meu como ministra dos Povos Indígenas. Vamos devolver o território e a dignidade para o povo Yanomami.

Valor: O que justifica seguir culpando o governo Bolsonaro?

Guajajara: Porque na gestão passada havia uma certa articulação para regularizar minérios em terras indígenas. Tinha um projeto de lei no Congresso. Isso fazia com que os invasores que estavam ali acreditassem que isso poderia acontecer e eles permaneciam. Agora não há essa expectativa mais. Todos sabem que estão lá ilegalmente e precisam sair.

Valor: Como a sra. vê a recepção dos empresários brasileiros às causas e políticas públicas que envolvem os povos indígenas?

Guajajara: Temos muitos empresários conscientes de que é preciso proteger o meio ambiente e apoiar a demarcação de terras indígenas, até porque muitos deles sabem que a floresta em pé é sinônimo de chuva que vão irrigar inclusive as suas lavouras. Tem esse grupo que está mais consciente, que faz parte inclusive do Pacto Global da ONU. Eles realmente se preocupam. Mas há outros, como o próprio presidente Lula diz, que são aqueles que ficam insistindo em trabalhar ilegalmente, sem obedecer as regras, sem obedecer a legislação ambiental. Esses têm dificuldade de entender e aceitar que é preciso produzir com sustentabilidade. E mesmo as empresas que não são dessa área de produção precisam entender também que o momento exige muito de todo mundo. A articulação entre indígenas, empresários, governo e a sociedade como um todo é essencial para promover uma mudança comportamental e de produção no mundo. Portanto, há aqueles que não conseguem entender, mas têm aqueles que já estão aumentando a sua consciência. Da nossa parte no ministério, estamos trabalhando muito com esses [que já entenderam], inclusive no âmbito internacional, pensando na rastreabilidade no processo todo de produção e comercialização. Tem muita coisa para ser feita e muito diálogo para fortalecer o comprometimento em promover as mudanças nas formas de produção.

Valor: Existe uma percepção de que o seu ministério é mais protagonista fora do Brasil do que dentro do próprio país. O que a senhora acha?

Guajajara: Temos realmente um reconhecimento internacional gigantesco. O mundo inteiro sabe da criação desse ministério e desse protagonismo que o presidente Lula está dando para os povos indígenas. No Brasil, já há também boa conscientização das pessoas que nos procuram, mas realmente precisa melhorar ainda. Aumentar essa visão da importância que os povos e os territórios indígenas exercem para o mundo. No ano passado, no início do ministério, foi incrível a quantidade de pessoas que eu recebi para fazer essa discussão. Universidades, reitores e reitoras representantes de conselhos das embaixadas, de prefeituras, parlamentares estaduais, federais, senadores. Pude ver também como está crescendo o interesse sobre a visão dos povos indígenas. Acredito que é um crescente. E agora, com o ministério, isso possibilita aumentar ainda mais a compreensão.

Valor: Estamos no meio do Abril Indígena. Diante de todo o contexto no momento presente, há mais para comemorar ou mais para se preocupar?

Guajajara: Abril sempre foi considerado um mês de luta e resistência dos povos indígenas. Embora tenhamos tantas adversidades e ainda não tenha sido possível conter toda a violência [contra indígenas], creio que seja mais para celebrar a oportunidade que representa chegarmos ao Poder Executivo. Foram 135 anos de República para que pudéssemos ter o primeiro ministério, 57 anos de Funai para ter a primeira presidência indígena [da instituição], ter mais de um parlamentar indígena no Congresso Nacional. Portanto, é tempo de celebrar, sim. Mas, para que possamos ser compreendidos nas estruturas legais do país, precisamos também provocar essas mudanças de conscientização, de combate ao racismo, de aceitar os cocares e os povos indígenas com seu jeito, com sua cosmovisão. Temos muito a avançar, mas o momento é de oportunidade e creio que estamos aproveitando bem esse momento.

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