Do medo à esperança: como indígenas da região de Palimiú, na Terra Yanomami, vivem três anos após ataque a tiros de garimpeiros

G1 - https://g1.globo.com/ - 10/12/2024
Do medo à esperança: como indígenas da região de Palimiú, na Terra Yanomami, vivem três anos após ataque a tiros de garimpeiros
Em novembro deste ano, o g1 visitou a comunidade para saber o que mudou com o reforço na segurança após o episódio.

Crianças e jovens jogam futebol em um campo enquanto mulheres acompanham, torcendo à beira do rio. A tranquilidade vivida na comunidade Yakeplaopi, em Palimiú, na Terra Indígena Yanomami, nada se parece com os momentos de tensão vividos em 10 de maio de 2021, há exatos três anos e sete meses, quando garimpeiros atacaram a região a tiros. Em novembro deste ano, o g1 visitou a comunidade para saber o que mudou com o reforço na segurança após o episódio.

A região de Palimiú está localizada às margens do rio Uraricoera e distante mais de 200 km de Boa Vista, capital de Roraima. Para chegar ao local, a reportagem embarcou em um táxi aéreo, a convite da Hutukara Associação Yanomami (HAY), em uma viagem que durou cerca de uma hora. A paisagem pela janela é a imensidão da floresta amazônica, mas que enfrenta cicatrizes do garimpo.

A região do rio Uraricoera em Palimiú era usada pelos invasores para acessar as áreas de garimpo ilegal no território através de barcos, o que mudou após a instalação de um cabo de aço de uma ponta a outra no rio, em fevereiro de 2023, para impedir a entrada dos invasores.

"Fechamos a estrada dos garimpeiros", diz um jovem da comunidade.
A barreira de cabos de aço remete às cordas colocadas pelos próprios indígenas durante a pandemia de Covid-19 para fazer uma barreira sanitária, um dos motivos que intensificaram os conflitos na região em 2021. Naquele período, os guerreiros da comunidade confiscavam os materiais dos invasores que eram transportados para áreas de garimpo ilegal. Em resposta, os garimpeiros destruíram a barreira.

No local também há uma base de apoio para agentes federais do Ibama, Força Nacional e Funai que atuam dentro do território. Além disso, os próprios indígenas montaram um grupo de proteção territorial para apoiar as ações, o Jaguar (entenda mais abaixo).


Antes da barreira de aço, havia uma média de cinco barcos por dia entrando na região, que engloba ao menos 11 comunidades em que vivem cerca de 800 indígenas. Agora, as famílias se sentem mais seguras com o reforço na segurança, como conta o cacique da comunidade, Fernando Palimitheli.

"Agora a comunidade está muito feliz. As crianças estão muito felizes na comunidade, antes a água sujava. O rio estava poluído, onde as crianças tomavam banho, tomavam água suja e ficavam com a barriga ruim. Agora as crianças estão tomando água, o peixe está bom, está melhorando", disse.

akeplaopi foi a comunidade mais atingida pelos invasores. No dia do ataque mais emblemático, ao menos sete barcos com garimpeiros armados abriram fogo contra os indígenas em direção ao mesmo campo em que hoje jovens e crianças se divertem. À época, eles até deixaram de jogar bola por medo de ameaças.

Houve relatos de feridos e mortos, correria de mulheres e crianças em fuga dos tiros, dias seguidos de tensão com sucessivos atentados e até troca de tiros dos invasores com a Polícia Federal. Sem segurança efetiva, os sentimentos de medo e insegurança pairaram sobre a comunidade.

Famílias tiveram que deixar as próprias malocas para se esconderem em meio a floresta por temer novos ataques. A fuga durou quatro meses, o que causou prejuízo no plantio e colheita da roça, necessários para subsistência dos indígenas.

rianças, mulheres e idosos foram os mais prejudicados, de acordo com as lideranças ouvidas pelo g1. Uma das testemunhas do ataque foi Adineia Yanomami, de 34 anos. Ela relembrou os momentos de tensão, mas agora afirma que a comunidade vive em um momento melhor.

"Eles [garimpeiros] atiraram lá na pista, as crianças correram, as mulheres, velhinhos. Foi muito triste, choramos".

"Nós não queremos mais garimpeiros, agora nunca mais passou garimpeiros. Não tenho mais medo em Palimiú", completou.
O episódio de violência marcou a comunidade e gerou até mesmo novas configurações. Isto porque, pelo medo, famílias deixaram malocas próximas do campo onde ocorreu o ataque e fizeram novas moradias distantes dali.

A poluição do rio também afetou os moradores, que passaram meses bebendo, cozinhando e tomando banho com a água de um pequeno riacho. O cenário só mudou após a instalação de poços artesianos ao longo da comunidade.

Recentemente, também voltaram a usar água do rio para as atividades do dia a dia. Em maio de 2021, as águas tinham uma coloração barrenta e em novembro deste ano, quando a reportagem esteve na comunidade, estavam escuras (veja abaixo).

Jaguar: proteção ao território
A insegurança deixou de ser uma preocupação no último ano, com a instalação do cabo de aço e a permanência dos agentes federais na comunidade. A rotina também voltou ao normal: homens e jovens da comunidade voltaram a caçar e pescar, mulheres voltaram a pegar água do rio para cozinhar e crianças tomam banho às margens do Uraricoera, onde os invasores costumavam passar.

Mas o que mudou na rotina na comunidade Yakeplaopi após os meses de tensão foi a criação de um grupo de proteção territorial, liderado pelos próprios indígenas. O Jaguar - nome dado ao grupo em alusão ao felino de pelagem preta, assim como uniforme que os integrantes usam, é composto por 19 jovens da comunidade e foi criado há 11 meses.

O ofício de quem integra o Jaguar é usar os saberes ancestrais para auxiliar os agentes federais, já que eles conhecem de ponta a ponta o próprio território. A ideia de criar o grupo surgiu devido ao medo de novos ataques, explicou Sindicley Palimitheli, de 26 anos, que atualmente lidera o grupo.

"Nós decidimos o nome do Jaguar para colaborar no trabalho com os outros não-indígenas. A gente faz parte da segurança nessa comunidade. Nós pensamos e reunimos primeiro e decidimos junto com nossas lideranças para decidir o nome do Jaguar. Aqui na comunidade Palimiú teve muita tristeza, muitos conflitos, por causa disso, nós Yanomami dessa comunidade nós fizemos essa vigilância nesse território".

O trabalho é na barreira, principalmente a noite, quando os agentes federais também atuam. Além de ajudar no patrulhamento, eles passaram por um treinamento para usar o aplicativo ODK Collect, sistema que alertas sobre riscos sanitários e ambientais nas comunidades, e outro de exercícios físicos.

"Somos parceiros, estamos unidos trabalhando aqui nessa comunidade. A gente trabalha junto com Força Nacional, Funai. Eles estão apoiando o nosso trabalho também. A gente trabalha junto com Força Nacional e a Funai para não acontecer o conflito entre Yanomami com os garimpeiros", disse o líder do grupo.

Alfredo Yanomami, de 24 anos, é um dos participantes do grupo de proteção territorial. Casado e pai, ele contou que a maior motivação para entrar foi proteger a própria família dos invasores.

"Eu queria lutar, eu quero segurar minha terra, eu não estou trabalhando triste não. Estou trabalhando feliz porque eu estou cuidando do meu povo, minhas famílias, minhas crianças, meus pais. Estou querendo ajudar meus parentes aqui", disse.

O trabalho não é remunerado, pois é uma iniciativa dos próprios indígenas. Além disso, eles montam uma escala própria de plantão e férias e se comunicam através de radiocomunicadores. A entrada de novos membros é de acordo com a escolha de lideranças da comunidade.

Embora a comunidade aprove a organização do Jaguar, para Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY) - a mais representativa do povo, "é um risco muito grande", já que quem deve fazer o trabalho é o Estado. Por isso, a associação avalia os próximos passos.

"São guerreiros e eles querem proteger seus rios, seus filhos, sua comunidade, proteger da ameaça. Estão fazendo um trabalho excelente, mas a gente está avaliando ainda [...] A gente não está muito 100%, vamos avaliar ainda, porque o nosso é receio é de correr o risco, as pessoas físicas".

"O grupo Jaguar é o dono do casa, conhecem aqui, conhecem os rios, conhecem as cachoeiras, conhece aonde os invasores estão escondidos [...] Isso é um compartilhamento importante e monitorando e mostrando onde os invasores estão escondidos", avaliou.

Pressão e luta dos indígenas por mudanças
As mudanças na região só aconteceram após a pressão das organizações indígenas, de acordo com Dário. À época, a Hutukara e o Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Ye'kwana (Condisi-YY) foram os principais meios para saber o que acontecia na região.

"Esses invasores atacaram como se nós fôssemos animais [...] Foi tipo uma situação de guerra entre outros países, a gente analisou bastante e fez uma grande mobilização internacional, várias autoridades nacionais e internacionais para proteger nossos parentes, nossas crianças", relembrou.

As denúncias fizeram com que as autoridades tomassem iniciativa para proteger o território após as violações de direitos humanos, segundo Dário. Uma das medidas foi o próprio aplicativo de sistema de alertas, que para organização é uma das vitórias na luta pelo território.

Uma das lideranças que lutou por mais segurança em Yakeplaopi foi a coordenadora de mulheres Nelia Palimitheli, de 43 anos. Ela não fala português, mas com a ajuda do filho, Carmélio Palimitheli, de 20 anos, contou à reportagem sobre os dias de terror vividos em 2021.

O filho traduziu cada pergunta feita à ela para a língua Yanomami e ela respondia no próprio idioma. Em seguida, ele traduzia ao g1. O povo Yanomami é considerado de recente contato, por isso, em comunidades mais distantes dos não-indígenas é comum que apenas alguns moradores, como os agentes de saúde indígena (ASI), falem português.

"Por causa disso [ataque] a gente está lutando e está atrás da luta, por causa das crianças. A gente se preocupa, mas agora estamos lutando pela nossa terra. É terra indígena, não é terra dos invasores. Por isso, a gente só quer lutar e defender as terras indígenas", disse a liderança.

"A gente lutou e eu estou muito feliz porque a nossa terra está sobrevivendo. Os invasores aqui ninguém quer mais, a nossa terra indígena a gente só quer viver, as crianças, mulheres, adultos. Enquanto eu sobreviver eu estou lutando pela minha terra".
Do medo à esperança: como indígenas da região de Palimiú, na Terra Yanomami, vivem três anos após ataque a tiros de garimpeiros

Nelia destacou que a luta não é só por melhorias na comunidade Yakeplaopi, mas em toda a Terra Yanomami. Ela chegou a viajar para Brasília em março deste ano, junto com o esposo, o cacique da comunidade, para denunciar as violações no território e pedir mais reforço para as forças de segurança.

"Estou feliz agora na minha comunidade. Eles [autoridades de Brasília] falaram que iam ajudar a comunidade e ajudaram [...] A minha família pescava, nadava, remava de canoa, se eu não fosse atrás desse pedido em Brasília ia morrer minha família toda. Se eu não fosse atrás, todos iam ficar com medo".

Operações na Terra Yanomami
O garimpo ilegal não é novidade na Terra Indígena Yanomami. Desde a década de 80, garimpeiros invadem o território em busca de ouro e cassiterita, porém o problema se agravou nos últimos seis anos devido à desassistência aos indígenas.

A destruição causada pela atividade ilegal atinge o modo de vida dos indígenas, que tem a caça, pesca e roça como subsistência. Malária e a desnutrição também são problemas trazidos pela invasão.

Em janeiro de 2023, o governo Lula (PT) começou a criar ações para enfrentar a crise, com o envio de profissionais de saúde, cestas básicas e materiais para auxiliar os Yanomami. Além disso, forças de segurança foram enviadas para a região para frear a atuação de garimpeiros no território.

Em fevereiro deste ano, o governo federal instalou a Casa de Governo em Boa Vista para concentrar as ações de assistência ao território. O trabalho no local envolve diretamente os ministérios dos Povos Indígenas, da Saúde, da Defesa, da Justiça e Segurança Pública, do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.

De acordo com um levantamento divulgado pelo órgão, desde que foi instalado até o dia 30 de novembro, foram realizadas 3.035 operações. O número representa uma média de 337 operações por mês e cerca de 11 por dia.

Na metodologia, além de apreensões, destruição de acampamentos e prisões, a Casa de Governo também contabiliza deslocamentos e ações fora do território que geram repressão ao garimpo. A explicação é do diretor do órgão, Nilton Tubino.

"Por exemplo, boa parte do combustível que a gente aprendeu foi fora da terra indígena, não dentro da terra indígena ,várias coisas. Porque a gente tem aprendido fora da terra indígena. Então, as ações envolvem todo o trabalho do dia a dia de março até agora", argumentou.

Questionado pelo g1 se era possível fazer um comparativo de operações em Palimiú entre os anos de 2021 a 2024, Tubino explicou que órgão só consolida dados no período em que a Casa começou a atuar, mas avalia que a situação melhorou.

Ainda segundo o balanço, o órgão registrou uma redução de 96,3% na área de novos garimpos, que passou de 1.002 hectares em 2022 para 37 hectares em 2024. Além disso, nos meses de setembro, outubro e novembro de 2024, não houve registros de abertura de novas áreas de garimpo.

Embora os dados mostrem uma redução, garimpeiros ainda resistem em algumas áreas do território. Uma das preocupações das lideranças é a região de Ouro Mil, em Waikás, onde há forte atuação e registro de confrontos com membros de facção. A área fica próxima de Palimiú.

"Eles [garimpeiros] estão jogando drone em cima da barreira, procurando polícia, procurando Jaguar. Drone viu que na barreira tem gente e voltou para trás. Agora estão com medo", disse Fernando, o cacique de Yakeplaopi.
Tubino reconhece que ainda há permanência de garimpeiros e explica que o modo de exploração mudou, agora as máquinas trabalham à noite para dificultar a fiscalização. Para ele, a presença de membros de facção também diminuiu, pois as apreensões recentes não são de armamentos pesados, como os usados pelos criminosos.

"Pode ser que lá atrás tinham pessoas faccionadas trabalhando em garimpo, acho que é uma realidade. Lá atrás podia ter um interesse econômico de grupos mais organizados de facção na questão do ouro, mas desde o ano passado com a quantidade de investigação, de força policial, de prisões, esse pessoal procura um lugar mais fácil".

Ainda sobre a região, Tubino explica que se trata de um lugar estratégico até mesmo para operações, já que aeronaves pousam no local para abastecer, mas que a ideia é desativar a estrutura maior de Palimiu e transferir para outra região, devido à relação de indígenas com os não-indígenas, por recomendação da Funai.

"A gente está discutindo já para até poder de determinação da Justiça Federal um plano maior de manutenção para também a gente cobrir uma área maior para evitar a entrada do território, não só ali. Tem garimpos que tentam se manter entre o Palimiú até a a margem do rio. A gente está vendo alguns locais também para fazer uma outra ou uma outra estrutura, um outro tipo de policiamento para garantir a segurança da região".

Sobre a preocupação dos indígenas de Palimiú, ele adiantou que um Destacamento Especial de Fronteira (DEF) deve ser construído antes de Ouro Mil, com isso, invasores terão que passar pela fiscalização do destacamento, o que deve passar mais segurança para os indígenas.

A Terra Yanomami é o maior território indígena do Brasil com quase 10 milhões de hectares entre os estados de Roraima e Amazonas. Cerca de 30 mil indígenas vivem na região e o território também contém a referência confirmada de um povo indígena isolado, além de seis outras reportadas em estudo, segundo a Funai.

https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2024/12/10/do-medo-a-esperanca-como-indigenas-da-regiao-de-palimiu-na-terra-yanomami-vivem-tres-anos-apos-ataque-a-tiros-de-garimpeiros.ghtml
PIB:Roraima/Mata

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