Veja, Imigração, p. 94-95 - 14/12/2005
Índios por imposição
A Funai quer transformar descendentes de bolivianos em aborígines, em Mato Grosso
José Edward
Criada há trinta anos, a Funai tem uma história repleta de conflitos, mas as razões da polêmica que começou há três meses em Mato Grosso são surpreendentes. A fundação pretende demarcar reservas indígenas para cerca de 2.000 pessoas que moram na fronteira de Mato Grosso com a Bolívia. Elas são conhecidas como chiquitanos, descendem de povos indígenas bolivianos, mas não se consideram índios nem querem ser tratadas como tal. A grande maioria dos chiquitanos acha que é humilhante ser chamada de índio e acredita que está integrada à vida econômica do país. Muitos deles foram beneficiados pelo programa de reforma agrária e temem perder tudo se a Funai levar o projeto adiante. De acordo com a lei, os chiquitanos perderão o direito à propriedade caso sejam classificados como índios. Seu patrimônio voltaria ao controle da União. Seriam proibidas a exploração econômica da terra e a construção de estradas perto das "aldeias". Não lhes seria permitido recorrer a empréstimos bancários nem receber dinheiro destinado pelo governo aos assentados da reforma agrária. Um manifesto assinado por 143 chiquitanos mostra o tom da revolta: "Não aceitamos a condição de índios que a Funai tenta de qualquer maneira nos impor".
A Funai afirma que a rebelião dos chiquitanos foi insuflada por fazendeiros e pelo governo estadual. Há dois meses, demarcou uma gleba de 43.000 hectares para 209 chiquitanos. Batizada com o nome de Terra Indígena Portal do Encantado, a área foi dividida em duas aldeias. Numa delas, a Funai entronizou Odir Mendes no cargo de cacique. Aos 28 anos, Mendes é agente da Fundação Nacional de Saúde e professa o catolicismo. Como todos os brasileiros de sua etnia, não fala o dialeto chiquitano, mas adorou a idéia da Funai de abrir uma escola na sua "aldeia" para aprendê-lo. Essa, no entanto, é apenas uma entre as 32 comunidades de chiquitanos existentes no Brasil.
O projeto oficial de conversão dos chiquitanos em índios foi baseado em um estudo antropológico. O documento informa que eles descendem de onze povos bolivianos que foram reunidos e cristianizados por jesuítas no século XVII. Os primeiros registros indicam que os chiquitanos chegaram ao Brasil há pouco mais de 100 anos. Apenas 5% do povo vive hoje no país. O aposentado Joaquim Surubi Ferreira revoltou-se ao saber que uma foto sua foi usada para ilustrar o estudo antropológico da Funai. "Nunca fui nem quero ser índio", diz. Os fazendeiros da região fizeram propaganda do caso de Ferreira para provar que a demarcação é um equívoco. Para rebater o laudo da Funai, contrataram um ex-diretor de etnologia da própria entidade, Carlos Siqueira. Ele não só refutou o laudo como afirmou que os chiquitanos que não querem ser considerados índios estão sendo ameaçados de expulsão por funcionários da Funai e por missionários católicos. Curiosamente, a Funai contraria seus próprios princípios para levar o projeto adiante. A fundação adotou uma tese da Organização Internacional do Trabalho segundo a qual só é considerado índio o indivíduo que se declara como tal. No caso dos chiquitanos, está longe de ser assim.
Veja, 14/12/2005, Imigração, p. 94-95
http://veja.abril.com.br/141205/p_094.html
PIB:Oeste do Mato Grosso
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