Sobreviventes dos seringais, os arara renascem na selva

O Globo, O País, p. 14 - 04/02/2007
Sobreviventes dos seringais, os arara renascem na selva
Em três aldeias ribeirinhas, índios da nova geração recuperam cultura e conquistam autonomia política

Arnaldo Bloch

'Hora de caçar mitos" - conclama o cineasta Marco Altberg, autor do premiado documentário Noel Nutels (1975), recém-chegado ao igarapé Humaitá, afluente do Alto Juruá, no fundo da Amazônia acreana, ao iniciar os trabalhos de gravação do último episódio da série Taru Andé, que o Canal Futura vem exibindo desde novembro em co-produção com a rede americana CNN.
O filme, décimo-terceiro da seqüência, versará sobre os índios Arara Shawãdawa - uma das chamadas tribos emergentes - que só três anos atrás tiveram homologadas suas terras, de 86 mil hectares, demarcadas em 1985.
Acompanhado do índio Aílton Krenak - secretário dos povos indígenas de Minas Gerais, principal aglutinador de etnias do país e parceiro seu no projeto - Altberg tem o desafio de, em quatro dias, compreender e retratar a cultura de um grupo que, marcado pela herança dos seringais, esteve prestes a vê-la desaparecer por completo.
Os mitos não se arvoram em aparecer facilmente. São poucos os anciãos que ainda se dispõem a falar às câmaras.
O pajé mais velho da aldeia, por exemplo, vive em retiro no meio da floresta, evitando envolver-se nas questões políticas que opõem constantemente os índios mais afeitos à cidade àqueles que se apegam crescentemente às tradições.
Tensão entre o pajé e o caçador
O velho pajé prefere falar, sim, através de seus aprendizes, entre os quais o vigoroso Tshãibu Shawã (Francisco Lima Silva, para efeitos da burocracia cidadã), que em sua habitação na foz do Nilo, numa das três aldeias arara da região, cultiva ervas medicinais e essências da floresta.
- Isso aqui é o meu pólo agroindustrial. Aproveitamos a presença dos jornalistas, que fizeram faculdade, para lançar o estatuto desse nosso estudo da floresta, que é nosso e só nosso, e que muitos querem tirar de nós.
Não está para brincadeira o novo pajé, que comanda também os ritos em torno da ayahuasca, bebida milenar feita de um determinado cipó macerado com as folhas de um arbusto, considerada sagrada por várias nações indígenas das Américas e utilizada, nas décadas mais recentes, por seitas no mundo inteiro (no Brasil, a mais conhecida é a Igreja do Santo Daime).
Antes que os mitos revelem-se mais amplamente, emergem, sim, as contradições e as disputas internas. Uma expedição de caça que estava há dez dias no mato volta enfim à aldeia com uma dezena de animais abatidos: pacas, antas, veados, porcos do mato, devidamente defumados ao natural para manterem-se frescos e nutritivos. No comando da expedição, Anchieta Shawãdawa - importante peça na luta dos arara pela homologação, três anos atrás, das terras demarcadas, e candidato a prefeito de Porto Walter (cidade mais próxima da reserva) - explica por que carrega um aparelho de GPS sempre que sai em expedição:
- Não é por m e d o d e me perder na floresta, que disso não há perigo. O aparelho dos brancos serve, aqui, para fiscalizar os limites da reserva, pois a gente sabe que a qualquer momento um posseiro, um plantador de soja, um criador de boi, pode querer invadir a nossa terra e acabar com a paz da gente.
Apesar de sua luta constante, Anchieta é um índio diferente de Tshãibu Shawã: usa uma voadora, lancha potente e veloz, para deslocar-se entre os afluentes e chegar rápido à cidade, numa região em que os habitantes das reservas indígenas ou os brancos com seus pequenos roçados (hoje em harmonia com os índios graças ao conceito de unidade de povos da floresta, ou "florestania", introduzido pelos últimos governos) trafegam em canoas dotadas de pequenos motores.
Na noite seguinte, convidado para uma pajelança onde se tomou o ayahuasca diante das câmaras de Altberg e entoaram-se cânticos da velha tradição, recuperados pelos jovens das fontes anciãs, Anchieta preferiu ficar em sua casa, ao abrigo da cultura profunda de seu povo, curtindo a plenitude de sua convicção política.
Afinal, foi graças a suas negociações com autoridades do Estado do Acre que se obtiveram melhorias sanitárias para a aldeia e que se instalou um poço artesiano e água encanada, além de um gerador para uso eventual de energia.
Melhorias que, num povo que optou por não consumir álcool, fortaleceram a população de quatro centenas de índios distribuídos em três aldeotas, ao ponto de viverem em relativa abundância dos frutos da terra que lhes pertence.
No solo ribeirinho, ou mais para dentro da floresta, a banana, a mandioca (que eles mesmos transformam em farinha para comer com o caldo da carne e do peixe, ou no preparo da caiçuma, espécie de suco fermentado), o milho, a pupunha, o açaí, a graviola, o mamão, o gergelim, a sananga (folha cujo sumo, gotejado nos olhos, limpa a vista), o rapé e todo o tipo de ervas servem bem à subsistência. Ainda sobram umas mil sacas de farinha para vender na cidade.
Convidado também para a pajelança à qual Anchieta não quis comparecer, outro índio, este da etnia Ashaninka, Francisco Pianko, secretário dos povos indígenas do Acre, também não veio, e, no correr do ritual, quando as câmaras já haviam sido expulsas e as luzes alimentadas pelo gerador apagadas, emergiram, das evocações velozes do pajé, a revolta e a incompreensão de tal atitude de não compartilhamento, como se a função de articulação política houvesse matado no coração deles a coragem e a consciência de pertencer a uma corrente.
- Sinto-me confuso. Ao mesmo tempo que vejo aqui todos esses benefícios, pergunto-me até que ponto a presença do estado, mesmo bem intencionada, não envolve essa gente de novo nas tramas do passado - pondera Aílton Krenak, valendo-se de sua experiência como articulador e de seu estudo formal para analisar as tensões que envolvem o processo de transformação na região.
Eis o nó cego do povo arara: a cultura que, ao mesmo tempo que renasce, traz forte o traço do medo.
- Tudo aqui foi seringal - recorda Maria Cecília Pereira, ou Nãicaiá Shawã, uma das anciãs da tribo, ao convidar a equipe de filmagem para visitá-la em sua casa à noite. - Vou cantar umas três ou quatro canções, só isso.
As três ou quatro canções de Nãicaiá versam sobre histórias envolvendo gente e animais e sobre antigas disputas, do tempo anterior a 1905, quando ocorreu o primeiro contato com a sociedade nacional e os arara eram ainda liderados pelo célebre guerreiro Tescon.
Os velhos como ela foram a chave para, nos últimos anos, animados pela demarcação e pelos esforços de união dos povos da floresta, os jovens puxarem o renascimento cultural que hoje se expande na região e começa a contaminar as crianças. Todos os dias elas se pintam, aprendem canções, começam a talhar lanças de madeira, uns primeiros potes de cerâmica ressurgem entre as mulheres, os ritos espirituais à sombra de samaúmas (árvores gigantescas consideradas rainhas da floresta) ganham força, jovens formados na cidade ensinam os alfabetos índio e branco.
Bem diferente de meio século atrás, quando os arara estavam ainda sob o jugo dos patrões que ocupavam suas antigas terras, e as crianças tinham que acordar antes do sol. Enxotados das redes pelos capatazes do patrão para o meio da mata, os meninos levavam numa mão lanterna, noutra facão, e trabalhavam até o sol ir a pino. Explorados ou massacrados nas correrias promovidas pelos migrantes que vinham do Norte e do Nordeste para abrir frentes, seus avós e seus bisavós, proibidos de falar o idioma da tradição (da família linguística pano) foram vendo sua cultura progressivamente desaparecer e seu poder de resistir à escravidão e à catequese quase extinguir-se.
'A gente luta, mas come fruta'
Dados de recentes indicam que, com 30 anos de luta por seus direitos, os índios do Acre já conquistaram 35 terras no estado. Dessas, 24 estão regularizadas e as demais em processo de estudo ou homologação. As áreas, que ocupam aproximadamente 14% do território, estão distribuídas em 11 municípios, ocupando 2.4000.000 hectares. Estima-se que a população indígena no Acre seja de cerca de 18.000, e que cresceu 150% na última década.
Por isso é comum ouvir-se, hoje, entre os arara, um axioma que resume, com alegria e glória, a sua situação: - A gente luta, mas come fruta.

O Globo, 04/02/2007, O País, p. 14
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