Indígenas abandonam aldeia e ocupam posto desativado da Sefaz.
A água deu na cintura para que os índios se convencessem em deixar a aldeia. Com a subida do rio, os kiriris que vivem numa pequena comunidade pertencente ao município de Muquém do São Francisco, a 70km de Ibotirama, tiveram que abandoar a aldeia às pressas. As 35 famílias, com 120 pessoas, instalaram-se num posto de fiscalização desativado da Secretaria da Fazenda do estado da Bahia (Sefaz). Em instalações precárias, vivem apenas do peixe que o próprio Rio São Francisco oferece com fartura.
Ficaram para trás 62 hectares de terra, 26 casas, poço artesiano, casa de farinha e uma escola. A cheia veio logo depois de a Fundação Nacional do Índio (Funai) realizar melhorias consideráveis na aldeia. "Eles tinham acabado de construir a estrutura sanitária e um posto de saúde", diz o agente indígena de saneamento, José Domingues França, índio kiriri a serviço da Funai. Na ausência do cacique e do pajé, que foram à região de Paulo Afonso em busca de mais apoio da instituição, é ele quem responde pela tribo. "Precisamos de mais alimentos. As lonas dos barracos já estão rasgando. Se chover vamos ter problemas", avisa José Domingues.
Ainda que tenham abandonado a maioria dos hábitos primitivos, os kiriris do baixo São Francisco continuam vivendo, em parte, do que eles próprios produzem. Além da pesca e da caça, fazem artesanato e comercializam para a própria subsistência. "Esse foi o nosso maior prejuízo com a cheia. Ninguém vem aqui comprar nossas bugigangas", lamenta a índia Alzira Francisca Ramos, 54 anos, a melhor artesã da tribo. Com a venda de colares de sementes de sena, pau brasil e bambu, sustenta os três filhos e mais um sem número de crianças. "Tomo conta de 14 bocas. Eles me chamam de mãe e eu não vou negar comida, né", conta Alzira, que ainda produz tapetes, esteiras e louças de barro.
Os índios também criam galinhas, porcos e até algumas cabeças de gado, levadas para local seguro, longe das margens do rio. Enquanto não chega a época de vazante, os kiriris enfrentam a cheia do jeito que podem. Para construírem abrigo nos arredores do posto de fiscalização, foi necessária ação conjunta. As lonas para os barracos foram doadas pela prefeitura de Muquém, que também distribuiu cobertores e colchões. A madeira para sustentação das casas chegou através da própria Funai. Daqui pra frente a ajuda terá que vir reforçada. À tribo Kiriri, também se juntaram duas famílias de brancos que não tinham onde se abrigar da cheia. "Eles nos pediram permissão para ficar aqui. Não tínhamos por que negar", afirma o agente indígena.
Famílias se recusam a sair de ilha
Sozinho, acuado pela enchente, Júlio dos Santos assiste à própria casa submergir. Sempre foi o mais teimoso dos oito filhos de dona Maria Santa. Ela e as crianças estão abrigadas em área mais segura, no alto de pé de serra. Só restou Júlio, deitado numa rede, suspensa entre duas árvores ao lado da casa, quase a tocar as águas. "Tô aqui olhando as nossas coisas. Se subir mais um pouco a gente perde tudo", calcula. É um dos remanescentes da Ilha Grande, a única do município de Ibotirama, a 643km de Salvador, a ainda abrigar algumas famílias. Cravados no leito do Rio São Francisco, os últimos vestígios do que era uma comunidade resume a tragédia de milhares de atingidos pela cheia em todo o estado.
A Ilha Grande é o retrato da fome, mas também de surpreendente resistência. Seu José, 59 anos, 15 filhos, e quase nada para comer. Mais um dos desabrigados da Ilha Grande precisa dormir todas as noites do lado de fora do barraco de lona improvisado. Tudo para que a legião de herdeiros tenha mais espaço. "É muita gente dentro de casa. Eu e minha véia nos arrumamos aqui mesmo", explica seu José, apontando para a cama de casal protegida apenas por um mosquiteiro e um pé de tamarindo. Perdeu 100% da lavoura com a cheia. Nada restou dos quatro hectares de plantação de milho, mandioca, feijão e algodão.
Agora, tenta calcular os prejuízos, sem sequer ter idéia da quantidade de netos que depende diretamente do seu sustento. "Ô Maria, quantos meninos são mesmo?", pergunta à esposa. Mas seu José parece satisfeito e resignado. Bem no núcleo de destruição causada pelo Velho Chico, agradece pelas quatro cabeças de gado que ainda lhe restam, além do peixe que não falta à mesa, fruto da pesca de subsistência. "Aceita um peixinho frito?", oferece à equipe do Correio da Bahia, depois de posar sorridente para foto oficial com toda a família.
Das cerca de 300 famílias que viviam na Ilha Grande, restam pouco mais de 20. A ajuda das autoridades chega devagar e é insuficiente. "Eles mandaram feijão e arroz, mas já acabou", diz a agricultora Benedita de Souza, 57 anosMais 710 cestas básicas vieram anteontem de Brasília, com recursos do governo federal, mas ainda vão demorar a ser distribuídas.
EMERGÊNCIA
Trinta e um municípios baianos estão em situação de emergência, informou ontem a Coordenadoria de Defesa Civil do Estado da Bahia (Cordec) As chuvas e a cheia do São Francisco são a causa do caos que atinge as cidades, que já registram um total de 1.600 famílias desabrigadas e 3.389 desalojadas. A informação consta em boletim divulgado pela Cordec. As cidades são as seguintes: Amargosa, Barra, Bom Jesus da Lapa, Capela do Alto Alegre, Capim Grosso, Carinhanha, Curaçá, Dário Meira, Gentio do Ouro, Guaratinga, Ibirapuã, Ibotirama, Ipiaú, Iramaia, Itagi, Itamaraju, Itambé, Itirucu, Jacobina, Juazeiro, Malhada, Maraú, Morpará, Muquém do São Francisco, Paratinga, Pilão Arcado, Planaltino, Remanso, Serra do Ramalho, Sítio do Mato e Xique-Xique.
PIB:Nordeste
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