Os esquecidos

Carta Capital, Seu País, p. 32-34 - 16/05/2007
Os esquecidos Visita do PAPA Missionários ligados à causa indígena e à Teologia da Libertação são excluídos das audiências com Bento XVI

Por Leandro Fortes

Pela primeira vez, uma visita do papa ao Brasil não contou com uma delegação indígena no comitê de recepção ou na agenda de encontros preparada em conjunto pelo Vaticano e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A exclusão dos índios do comitê de recepção de Bento XVI teve como alegação formal as dificuldades de agenda do líder da Igreja Católica.

Tratou-se, na verdade, de uma estratégia dos organizadores para evitar levar ao papa as crises de varejo do catolicismo brasileiro, sobretudo as ligadas à Teologia da Libertação. A questão indígena é tratada, no âmbito da CNBB, pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entidade de atuação bastante crítica, tanto em relação à Igreja quanto ao governo federal.

O máximo de participação indígena conseguido pelo Cimi foi a inserção de 50 jovens descendentes de índios, moradores da periferia de São Paulo, na multidão de quase 40 mil fiéis que lotou o estádio do Pacaembu, na quinta-feira 10, durante o encontro de Bento XVI com a juventude católica. Do grupo de índios, dois foram selecionados para participar das leituras das preces. A dupla pertence aos povos potiguara e pankararu.

Nas visitas de 1980 e 1991, o papa João Paulo II fez questão de receber lideranças indígenas. Na primeira vez, o encontro do santo padre com os índios ocorreu . em Manaus, onde o pontífice ouviu o cacique Marçal Tupã-i, do Mato Grosso do Sul. Na visita seguinte, 11 anos depois, João Paulo II recebeu 60 indígenas de 36 povos, em Cuiabá.

Nem mesmo a elaboração de um documento com o quadro geral da situação dos índios brasileiros foi concluída pela CNBB, apesar da insistência dos missionários. De última hora, o movimento indígena decidiu preparar uma carta a ser entregue aos bispos participantes da 5ª Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe (Gelam), com abertura prevista para 13 de maio. O encontro, a ser aberto pelo papa, vai discutir os rumos da Igreja na América Latina, região de grande concentração de fiéis vulneráveis, aos olhos do Vaticano, aos apelos das seitas evangélicas pentecostais.

Em fevereiro deste ano, ao discursar para os núncios (espécie de embaixadores do Vaticano) latino-americanos, o papa Bento XVI advertiu os clérigos católicos contra o "proselitismo das seitas". Uma das brigas do Cimi e de entidades ligadas à luta indígena diz respeito, justamente, ao trabalho de missionários evangélicos nas tribos, encarado como prejudicial à preservação das culturas originais dos índios brasileiros. Por outro lado, o pontífice chamou de "feliz fusão" o encontro entre o cristianismo e a cultura indígena durante a colonização das Américas. Historicamente, essa fusão celebrada pelo papa é considerada uma tragédia cultural responsável pela destruição de muitos dos referenciais indígenas da América Latina.

Entre os religiosos presentes à conferência estará o presidente do Cimi, Erwin Krautler, 67 anos, bispo do Xingu. Nascido na Áustria, mas naturalizado brasileiro, ele vive na Amazônia há 41 anos, onde incomoda grileiros e fazendeiros envolvidos em invasão de terras. Sob constante ameaça de morte, é obrigado a conviver com uma escolta permanente de dois policiais militares. Ligado à Teologia da Libertação, sabe que Bento XVI não compartilha das mesmas idéias dele, mas espera sensibilizar o papa com as informações levantadas pelo Conselho. "O papa é um bom ouvinte", costuma dizer.

Os missionários querem fazer chegar ao papa o quadro geral da política indigenista brasileira e denunciar violações de direitos humanos promovidas contra os povos indígenas no País. Mostrar, por exemplo, que, desde a madrugada de 20 de abril de 1997, quando Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe foi queimado vivo por jovens de classe média de Brasília, até março de 2007, mais de 270 indígenas foram assassinados no Brasil, segundo levantamento do Cimi. A falta de terras ou as disputas pela posse e pelos recursos naturais nelas existentes são responsáveis por grande parte das mortes.

Assessor teológico do Cimi, Paulo Suess lamenta a falta de esforço do papa Bento XVI para receber lideranças indígenas ao visitar o Brasil. Segundo ele, é uma deferência histórica importante e simbólica, da qual o pontífice não deveria ter aberto mão por causa de dificuldades de agenda, segundo justificativa da organização da visita, sob responsabilidade da CNBB. "É como ir à África e não receber as lideranças negras", compara. "Por isso, a questão indígena, para o papa, vai ficar genericamente colocada'; diz.

Suess posicionou-se contra a participação de jovens descendentes de índios no encontro com o papa, no Estádio do Pacaembu. Sobretudo, a inclusão dos dois representantes no grupo de leitura de preces. "Fazer preces pré-formuladas não faz sentido, passa uma impressão colonialista'; avalia o teólogo. Para ele, o mais importante é marcar posição sobre os conflitos de terra e o lugar do catolicismo no conflito. `A luta pela terra faz parte da evangelização", explica. "No momento, a catequese não é tão importante."

Em 2006, somente no Mato Grosso do Sul, a média de morte foi de mais de um indígena por semana, com um total de 50 durante o ano. Lá, no ano passado, ocorreram 21 assassinatos, 20 suicídios e 9 atropelamentos, todos noticiados pelos jornais do estado. Os conflitos na região são provocados, basicamente, pela falta de terra. A realidade tanto tem provocado uma guerra generalizada contra invasores como tem aumentado as tensões internas nas comunidades, causadas pelo confinamento em espaços exíguos, principal razão dos suicídios.

De acordo com o Cimi, hoje, no Brasil, há pelo menos 272 territórios reivindicados por povos indígenas que nem s, quer são considerados como demandas para demarcação pela Fundação Nacional do índio (Funai). O Conselho alega que a Funai não cumpre a função de receber e encaminhar as demandas fundiárias indígenas. Essa, aliás, é a única função do órgão, uma vez que, a partir da década de 1990, o atendimento à saúde e à educação passou à competência dos ministérios responsáveis pelas áreas. Nos últimos quatro anos, diminuiu a criação de grupos de trabalho de identificação de novas terras indígenas, apesar de existir um grande número de áreas a ser regularizadas.

A Funai diz que os dados do CIMI não são corretos. Segundo a assessoria de imprensa da fundação, há 111 áreas em estudo e 392 registradas pela autarquia.

De 2004 a 2006, os recursos públicos para a gestão indigenista caíram de 47,1 milhões de reais para 40,6 milhões de reais. Grande parte do corte atingiu os programas de regularização e proteção dos territórios. Esses, ignorados pelo governo, passaram a ser ameaçados pela expansão de grandes empreendimentos imobiliários.

A comunidade indígena e os movimentos indigenistas esperavam coincidir a visita do papa com o julgamento, no Supremo Tribunal Federal, do mandado de segurança responsável pela impugnação da demarcação da terra Raposa Serra do Sol, em Roraima. Em 4 de maio, o ministro Carlos Ayres Brito, relator do caso, concedeu uma liminar a arrozeiros ainda instalados na região, de 1,7 milhão de hectares. Mas, em seguida, encaminhou o processo para votação em plenário. A decisão do ministro, válida até julgamento do mérito, vai contra notificação da Funai, que havia determinado a desocupação da área até 30 de abril. A inclusão da ação na pauta do STF depende, agora, da presidente do Tribunal, a ministra Ellen Gracie Northfleet.

Também está sob responsabilidade de Ellen Gracie a retomada do processo de homologação da Jacaré de São Domingos, localizada na Paraíba. Iniciado em 5 de outubro de 2005, o julgamento foi interrompido, há 18 meses, por conta de um pedido de vistas do ministro Gilmar Mendes. Somente em 30 de abril deste ano, Mendes devolveu à presidência do STF o mandado de segurança responsável pela impugnação da jacaré de São Domingos, tradicionalmente ocupada por comunidades potiguares. A devolução dos autos do processo foi o primeiro passo para a continuidade do julgamento, reivindicado pelas lideranças indígenas e por movimentos de luta pelos direitos humanos.

O precedente aberto pelo resultado do julgamento do mandado de segurança da jacaré de São Domingos servirá de jurisprudência para os processos referentes à Raposa Serra do Sol e também à terra Ñande Ru Marangatu, do povo guarani-kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Nos três processos, está em discussão a competência do presidente da República de poder ou não homologar a demarcação de terras indígenas com procedimento administrativo ainda submetido à apreciação judicial em ação ordinária. Um documento específico sobre o tema foi entregue, durante as manifestações do chamado Abril Indígena, há menos de um mês, à presidência do STF.


Nem tão católicos
A história da associação de militares e salesianos contra uma tribo xavante

Por Felipe Milanez

Quando ainda era um menino de 8 anos, Damião Paradzané levou quase um mês para receber a notícia de que o pai, Ru'waê, tinha falecido.

Morador de um internato comandado por freiras e padres, no fim de 1966, ele mal sabia onde estava. Damião e toda a aldeia haviam sido despejados de uma área em Mato Grosso pelos militares. As terras foram entregues a um grupo de posseiros, com apoio da missão salesiana de São Marcos.

Na mesma hora em que soube da morte do pai, o índio descobriu que mais 170 nativos da aldeia haviam morrido nas duas primeiras semanas após a transferência. Ele foi um dos 50 sobreviventes de uma fulminante epidemia de sarampo. Desestruturado pela mortandade, levou 40 anos, numa longa diáspora por diversas terras indígenas do território xavante, para conseguir reorganizar o grupo e retornar à terra onde nasceu, Marãiwatséde.

Até falar com Carta Capital, na terça-feira 8, Damião não sabia da visita de Bento XVI ao Brasil. Mas mandou um recado. "Ele precisa pagar pelo que a Igreja fez com o meu povo", afirmou. "E a gente vai cobrar. Como a Igreja ajudou no passado pra expulsar índio pra São Marcos, agora precisa ajudar a gente a voltar', completa.

Quando esteve na Itália nos anos 1990, convidado por deputados italianos, na negociação com a petrolífera Agip para ceder a fazenda Suiá-Missu à União, o cacique não conseguiu ser recebido por ninguém do Vaticano. Como o Estado comandado pela igreja é acionista da empresa italiana, que comprou as terras na década de 80, Damião achava que poderia sensibilizar a cúpula episcopal e obter apoio no processo fundiário, em curso até hoje.

A transferência forçada, o líder indígena sabe como poucos, foi armada pela ditadura. A Igreja não é a única responsável pela truculência, mas foi a ação dos padres que deixou as cicatrizes mais profundas na cultura dos xavante. Associada ao Estado, a Igreja oferecia missões evangelizadoras como depósito dos índios. "A gente não perdeu nossa cultura, mas tinha que fazer os rituais escondido'; relembra.

Desde agosto de 2004, o grupo vive na Terra Indígena Marãiwatséde, ao norte do Mato Grosso, próximo do Tocantins. Mesmo tendo sido homologada em 1998, a área estava de tal maneira tomada por posseiros que os índios não podiam nem chegar perto. E ainda está. Dos 165 mil hectares, eles conseguiram retomar menos de 40 mil. Uma ação na Justiça, decidida no início do ano, determinou a reintegração de posse para os índios, condenando os posseiros a sair e a reflorestar a área. Mas, até o momento, não foi executada. A questão era considerada a mais importante na política indigenista do ex-presidente da Funai Mércio Gomes. 0 atual presidente, Márcio Meira, visitou a aldeia neste mês.

0 reflexo da situação em que vivem está nas crianças. Entre as 280 com menos de 12 anos, 67 apresentavam um grave estado de desnutrição no fim de 2006. No ano passado, 17 morreram de fome. Em 2007, houve duas mortes. Há 50 mulheres grávidas, e Damião teme pela falta de água.
"Poço não funciona, e no riacho ta cheio de veneno agrícola e sujeira:'
0 cacique xavante não nutre ódio ela Igreja, e é político nessa questão, apesar de muitos na aldeia, como a ex-mulher Carolina, não suportarem a presença cristã.
"0 único que nos ajuda é o padre Zacarias. Mas ele faz isso por peso na consciência, porque estava presente na época das mortes, viu tudo, e nos acompanhou por todo esse tempo. Mas só ele, ninguém mais'; lamenta o índio.

Carta Capital, 16/05/2007, Seu País, p. 32-34
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