Relembrar o contato com a dita civilização sempre foi uma condição traumática para o povo Jiahuí, que até hoje vive isolado no meio da Floresta Amazônica, na bacia do rio Purus, distante 150 quilômetros de Humaitá (AM), numa reserva cortada pela BR-317, a famosa rodovia Transamazônica.
O contato foi estabelecido em meados de 1967, quando o Brasil era governado pelo regime militar e a rodovia Transamazônica representava um dos grandes projetos de integração nacional, até hoje sem conclusão.
São poucos os índios Jiahuí que presenciaram as máquinas chegando, rasgando a floresta e ocupando suas terras. Os que ainda lembram dessa epopéia militar, delírio de engenharia, ou invasão de território, criaram força e coragem para reviver o contato e encenar as primeiras disputas com os brancos, num ritual nostálgico é cheio de significados.
A equipe do Diário da Amazônia, convidada pelo cacique Nilcélio Jihauí e pela ONG Kanindé para registrar a celebração, foi surpreendida logo na chegada à reserva, numa noite de lua em plena floresta amazônica.
Noite de sábado, 21 de agosto. O silêncio da mata foi rompido por gritos e barulhos assustadores de uma típica abordagem indígenas a pessoas estranhas a tribo. No semi-breu da noite era possível apenas observar os vultos de pessoas com adereços, arco e flexa rodeando o carro, ecoando gritos, assovios e batendo com os pés no chão, na estrada erma que dá acesso à reserva.
Os crescentes e ensurdecedores gritos começam a se aproximar cada vez mais e agora já era possível visualizar nitidamente as feições indígenas que cercam o carro, espalhando um misto de odores não identificados junto a poeira e o mato. As flechas e lanças empunhadas eram sacudidas no alto das cabeças, e o som das bordunas de madeira ecoavam na floresta e assustavam os 'intrusos'. Era assim que o grupo se sentia naquele momento. Invadiram um espaço proibido e o que iria acontecer mantinha a todos em cruel suspense, mesmo sabendo que se tratava de uma encenação.
O suspense é elevado às alturas quando cada integrante do grupo de 'intrusos' é levado pela mão dos indígenas mata adentro, até chegarem ao interior de uma oca com alguns representantes da tribo sentados, à espera do grupo, que é convidado para a celebração.
A partir daí, seguros das intenções amistosas, a curiosidade passa a ditar as batidas do coração e o ritmo do dedo indicador no obturador da máquina fotográfica dos integrantes das equipes de reportagem do jornal e de uma TV local, e pesquisadores da Universidade de Brasília. A única pessoa que tinha conhecimento prévio de tal 'recepção' era indigenista rondoniense Ivaneide Bandeira, da ONG Kanindé. Os índios Jiahuí pretendiam nesta encenação remeter ao primeiro encontro contato com os brancos, ocorrido há 43 anos.
Quase extinto, povo Jiahuí resiste e se renova
Quem lembra bem deste contato é a anciã Ariaí Jiahuí, que tem quase 80 anos, nas suas contas. Ela não fala português e precisa que seus descendentes traduzam suas palavras para o idioma dos colonizadores desta imensidão chamada Brasil. É a integrante mais antiga da tribo. Todos a têm como uma referência histórica e muitas vezes a consultam pedindo orientações através de seus ensinamentos. É a memória viva do povo Jiahuí e do ainda recente contato com a civilização na região amazônica.
Após o contato, o conflito e o quase extermínio do povo Jihauí, esta foi primeira vez que eles realizam uma celebração tendo como tema o seu encontro com o homem branco. Essa não era uma data que fazia parte de seu calendário de rituais e celebrações e resolveram fazer depois que alguns integrantes da tribo passaram a conviver com a sociedade branca, em Porto Velho e Manaus, e sentiram a necessidade de maior integração.
Os Jiahui são um povo de filiação lingüística tupi-guarani, do subgrupo Kagwahiva, que vive na região do médio Purus, do Estado do Amazonas. Circunstâncias originadas deste contato da tribo quase acarretaram a dissolução e quase extinção do grupo. Suas terras tradicionais foram ocupadas por trabalhadores na construção da transamazônica ou por fazendeiros.
Em meio a conflitos de resistência, o processo de retomada do território indígena por parte da tribo foi iniciado em 1998, e hoje os Jiahui vêm buscando reorganizar-se de maneira a garantir sua sobrevivência física e cultural. E mesmo econômica.
De uma população quase extinta, começaram então a reorganizar-se, reocuparam o seu território tradicional e reagruparam seus fragmentos buscando moradores descendentes dos seus em outras aldeias e em centros urbanos próximos.
O importante é que, embora tenha havido uma dispersão, os indivíduos nunca perderam totalmente o contato. Muitos deles sabem mesmo nos dias de hoje localizar seus parentes, traçando inclusive suas relações genealógicas. E essa trajetória de nascer, vivenciar e confrontar-se ao contato do homem branco que a anciã Ariaí guarda na sua memória, e relata aos da sua tribo até hoje.
Mais velhos tentam esquecer lembranças do contato
A presença dos Jiahuí no vale do rio Purus é relatada pelo Serviço de Proteção ao Índio na década de 40 do século passado. Nos idos de 1940, intensifica-se a atuação do extinto SPI - Serviço de Proteção ao Índio, na tentativa de atrair os Jiahuí para o contato, mas não obtiveram nenhum sucesso. Já na década de 70, com a abertura da Transamazônica, que cortou as terras próximas ao da tribo, já não era mais possível manter o isolamento do povo com o homem branco.
A abertura da rodovia causou comoção na população indígena, que ouvia o barulho das máquinas e tentava entender o que estava acontecendo. Acossados pela Empresa Paranapanema e seus funcionários, o grupo indígena acompanhava de longe o movimento de homens e máquinas que adentravam cada vez mais a mata. Acuados, se colocavam em pé de guerra.
Após várias aparições rápidas, os Jiahui surpreenderam-se ao ver que entre os trabalhadores da Paranapanema encontravam-se muitos índios Tenharim, vizinhos étnicos com quem os Jiahui não se davam. E a anciã Ariaí, remanescente deste episódio, presenciara tudo.
Um destes Tenharim foi quem esteve à frente para estabelecer o contato com os Jiahui. Segundo relato da anciã, chamou-os, acompanhado de um funcionário não índio, oferecendo comida e roupas. Um córrego separava os bravios Jiahuí dos funcionários da empresa.
A aproximação foi gradativa, mas bastante tensa. O cacique na época não permitia que seus filhos pusessem qualquer alimento na boca, pois não depositava a menor confiança, tanto nos trabalhadores da empresa quanto nos Tenharim.
A relação conflituosa se estende até o início da década de 80, quando então sem alternativa, os indígenas estabelecem contato diário com os brancos. Para Ariaí, deste ponto em diante tudo mudou. Dispersão do seu povo, sequestros de mulheres índias e crianças.
Ela e o marido, na época ainda jovens, foram um dos alvos destes raptos. Ariaí relata que ambos foram levados por uma família de europeus para trabalhos forçados em uma estância na cidade de Humaitá. Ao relembrar os dias de penúria, onde quase nunca lhes era dado o que comer, se emociona: "Não quero nunca mais que alguém do meu povo passe o que eu passei. Muito sofrimento, muito sofrimento", enfatiza em murmúrios.
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PIB:Tapajós/Madeira
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