O Globo, O País, p. 12 - 05/06/2005
Avião dos EUA sobrevoou reserva irregularmente
Suspeita é de que aeronave americana tenha feito mapeamento geológico de áreas estratégicas da Amazônia
O governo brasileiro guarda a sete chaves um incidente registrado na passagem de um avião-radar americano pelos céus da Amazônia, numa operação ousada que incluiu sobrevôos na reserva Raposa Serra do Sol, área de grande importância estratégica para o Brasil por ter reservas de minerais como urânio.
O Itamaraty não confirma o incidente. A Força Aérea Brasileira (FAB) nega. Mas O GLOBO teve acesso a informações de um relatório reservado do serviço de inteligência do governo brasileiro que esmiuça a peripécia do avião americano pela Região Norte. Fontes civis e militares também confirmaram o episódio.
O avião, modelo P-3, prefixo VVR-2674, tinha autorização para cruzar o espaço aéreo brasileiro no dia 9 de outubro do ano passado, rumo a Buenos Aires, com escala em Manaus. A chancela fora publicada na véspera no Diário Oficial da União. Dizia que a aeronave seguiria para Buenos Aires, na Argentina, em missão de "pesquisa científica".
O avião, entretanto, acabou subvertendo o que estava no papel. O P-3 passou pelo Brasil apenas no dia 10. E a escala que seria em Manaus acabou transferida para Boa Vista. Na capital de Roraima, nem toda a tripulação desceu. Nenhuma autoridade brasileira teria entrado no avião, segundo consta do documento reservado.
Avião voou baixo e dificultou a detecção por radares
O relatório a que O GLOBO teve acesso informa ainda que, após entrar no espaço aéreo do Brasil, o avião variou altitude e chegou a voar abaixo de três mil pés, supostamente para dificultar sua detecção pelos radares.
Durante o vôo, os equipamentos do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) suspeitaram da irregularidade. Militares do Centro Amazônico, a torre de controle do sistema em Manaus, tentaram fazer contato com a tripulação. Não obtiveram êxito. Os americanos não respondiam aos chamados pelo rádio.
As tentativas de comunicação foram ouvidas por pilotos de aviões civis que voavam na região. A tripulação do P-3 só viria a responder mais tarde. O comandante informou que não respondera antes porque a cabine do avião sofrera "pane de rádio" (o sistema comunicação teria parado de funcionar). "O P-3P Orion foi várias vezes assinalado nos radares de tráfego aéreo, mas não foi possível nenhuma interceptação de vôo porque estava voando abaixo de 3 mil pés", registra o documento.
- Foi um claro golpe - disse ao GLOBO um oficial da Força Aérea Brasileira que acompanhou o episódio.
A terra indígena Raposa Serra do Sol não teria sido a única sobrevoada pelo avião americano. O aparelho teria passado também, a baixa altitude, na reserva Waimiri-Atroari, localizada entre os estados de Roraima e Amazonas.
O avião, de quatro motores e quase do tamanho de um Boeing 737-400, tem sensores eletrônicos que permitem, por exemplo, fazer mapeamento geológico das áreas que sobrevoa. Uma fonte da Aeronáutica informou que autoridades aéreas brasileiras teriam reclamado junto ao Comando Sul, unidade do Pentágono sediada em Miami que coordena as operações militares dos Estados Unidos na América Latina.
Embaixada dos Estados Unidos nega qualquer anormalidade no episodio
Informação é de que avião estava em missão para Nasa rumo à Antártica
A Embaixada dos Estados Unidos em Brasília nega que o avião militar americano tenha cometido qualquer irregularidade durante sua passagem pelo espaço aéreo brasileiro. Um porta-voz da representação diplomática informou que o país serviu apenas de caminho para uma viagem rumo à Antártica. Segundo ele, a aparelho estava numa missão para a Nasa, a agência espacial americana, com o objetivo de medir a profundidade do gelo antártico.
O GLOBO enviou à embaixada americana uma lista de oito perguntas. Nem todas foram respondidas no texto de oito linhas enviado ao jornal. A nota garante que o P-3 seguiu o plano de vôo autorizado pelas autoridades brasileiras. "O avião não desviou da rota ou altitude previamente aprovadas e nenhuma reclamação foi recebida de autoridades brasileiras", diz o comunicado.
Em duas notas, a FAB segue na mesma linha. Diz que o pedido do governo americano para que o avião cruzasse o céu do Brasil foi oficializado no dia 8 de outubro e que havia previsão de pouso em Manaus. O destino informado era Buenos Aires.
FAB diz que americanos modificaram pedido
Segundo os textos da FAB, no mesmo dia os americanos modificaram o pedido e a escala foi transferida para Boa Vista, onde um militar brasileiro, especialista em eletrônica, teria embarcado como "parte de uma rotina de procedimentos internacionalmente usados, no caso da circulação de aviões com sensores". O militar teria seguido até Foz do Iguaçu, onde o P-3 teria feito a última escala. A informação da FAB é repetida na declaração da embaixada americana.
"O ingresso (da aeronave) em território nacional aconteceu no dia 10, com pouso em Boa Vista, conforme autorização do governo brasileiro, por ser esse o primeiro aeródromo internacional no país dentro da rota que seria seguida. Nessa cidade, um militar especialista da Força Aérea Brasileira embarcou como observador e seguiu com o avião até Foz do Iguaçu, no sul do país, última escala do P-3 no país", diz a nota mais recente da FAB, divulgada na sexta-feira.
As manifestações oficiais não conferem com o que está no documento reservado a que O GLOBO teve acesso. Consta do relatório que em Boa Vista nenhuma autoridade brasileira entrou no avião e que apenas uma parte da tripulação americana teria desembarcado. Outras fontes da própria FAB disseram que, logo após o episódio, o centro de controle de Manaus enviou comunicação ao Comando de Defesa Aeroespacial Brasileiro (Comdabra), em Brasília, que por sua vez teria acionado as autoridades diplomáticas. O Itamaraty, entretanto, não confirma. Afirma não possuir registros do assunto.
Especialista diz que governo deve advertir
'E deixar claro que, se acontecer de novo, vai abater avião', opina professor da área militar
Especialista em assuntos militares, o professor da Unicamp Geraldo Cavagnari diz ver com normalidade o fato de o governo brasileiro não admitir oficialmente o incidente, já que nenhuma providência mais enérgica foi adotada à época. Ele diz que, em casos semelhantes, o Brasil deveria marcar posição.
- O governo tem que advertir e deixar claro que, se acontecer de novo, vai abater o avião - afirmou.
Um mês antes do incidente com o avião, um modelo semelhante de aparelho havia passado pelo Brasil em condições turbulentas. Era 9 de setembro do ano passado. Uma aparelho VP-3A, também da Marinha americana, seguiu rota diferente daquela previamente autorizada. Desta vez, porém, o motivo era o mau tempo. Ainda assim, a passagem do avião mobilizou o Sistema de Defesa Aeroespacial Brasileiro, que segundo a própria Aeronáutica monitorou o vôo durante todo o tempo, até que a aparelho deixasse o espaço aéreo do país. O VP-3A estava transportando o comandante das frotas da Marinha dos Estados Unidos, conforme foi informado às autoridades brasileiras.
De patrulhamento marítimo a missões de espionagem
Os aviões da linhagem P-3 Orion são velhas máquinas de guerra e vigilância que vêm servindo aos Estados Unidos há mais de 40 anos. De performance elogiável, foram sendo remodelados ao longo do tempo e deixaram de ser usados exclusivamente no patrulhamento marítimo para ganhar outras missões, inclusive a de espionagem, com a instalação de sensores capazes de fazer prospecção de superfície e de captar imagens e sinais eletrônicos.
Até o ano passado, a Marinha dos Estados Unidos possuía cerca de 230 unidades do P-3 em operação, em diferentes frentes. Os quatro motores do velho avião são impulsionados por hélices. De asa reta, a aparelho tem praticamente o mesmo desenho dos antigos Electra, do mesmo fabricante, também americano. Ao redor do mundo, há atualmente cerca de 450 exemplares deste tipo de avião em uso.
O Globo, 05/06/2005, O País, p. 12
PIB:Roraima/Lavrado
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