Os índios gigantes

JT, Geral, p. B11 - 09/05/1995
Os índios gigantes
Documentário narra a saga da tribo Krenakarore, que após vinte anos começa a voltar para o seu território.

Patrícia Campos Mello

Os índios gigantes estão voltando para casa. Depois de passarem mais de vinte anos desalojados de seu antigo território, os krenakarore - que marcaram o imaginário de toda uma geração nos anos 70 - estão se estabelecendo às margens do rio Iriri, no Pará, parte de seu antigo território. A saga dessa tribo acaba de ser reconstituída no documentário "O Brasil Grande e os índios Gigantes", de Aurélio Michiles, que será lançado hoje, às 19h30, no Grande Auditório do Museu de Arte de São Paulo (Masp).
O mistério que envolvia essa tribo, considerada perigosíssima, pois dizia-se que seus índios ultrapassavam dois metros de altura, chegou a merecer, na década de 70, uma ampla cobertura do JT, além de inspirar um poema de Carlos Drummond de Andrade e uma música de ex-Beatle Paul McCartney.
O documentário de Michiles retrata a violenta mudança no destino da tribo dos krenakarores após seu contato com os homens e revelação de que não eram gigantes e nem violentos. "Passei minha adolescência emocionado com estes índios, e no filme tenho a oportunidade de contar toda sua história", diz Michiles. "O Brasil Grande e os índios Gigantes" contém depoimentos do antropólogo Darcy Ribeiro, do economista Roberto Campos, do ex-presidente da Funai, general Ismarth de Araújo, de indigenistas e jornalistas. Também os sertanistas Orlando e Cláudio Vilias-Boas, os primeiros brancos a entrarem em contato com os krenakarore, relatam sua busca aos índios e posteriores esforços para preservá-los.
O filme contou com o trabalho do antropólogo americano Stephen Schwartzman, único capaz de traduzir a língua panará (Krenakarore) para o português.
Com suas aldeias instaladas às margens do Rio Peixoto de Azevedo, no norte do Mato Grosso, os índios eram vistos como uma terrível ameaça ao progresso desenvolvimentista dos anos 70 pregado pela regime militar e o então presidente Emílio Garrastazu Médici. As aldeias dos krenakarore estavam atrapalhando a construção da rodovia Cuiabá-Santarém, perpendicular à Transamazônica, que fariam parte da integração da Amazônia com o resto do Brasil. "Na época, havia a convicção de que os índios gigantes não podiam barrar o progresso do Brasil", conta Michiles. Eles tinham de ser contactados e pacificados.
Um reencontro entre os irmãos Villas-Boas e integrantes da tribo, depois de terem ficado quase 20 anos sem contato, foi realizado no dia 27 de abril, no Masp.
Organizado pelo Instituto Socioambiental, realizador do documentário, o reencontro teve a presença de quatro índios. "Desde que os krenakarore foram contatados pela primeira vez pelo Cláudio Villas-Boas, seu maior desejo era rever os dois irmãos", conta Michiles. "Foi muito emocionante, eles vêem os Villas-Boas como uma entidade, a representação de tudo de bom e mal que existe no mundo", diz.
Agora, os índios querem retomar parte de seu território. Eles já estão preparando sua aldeia às margens do rio Iriri, para que toda a tribo possa, em breve, se mudar para lá: "Eles sabem que nunca mais vão caçar com arco e flecha, livres da presença a do branco; por isso já estão até construindo uma pista de pouso na futura aldeia".

A aproximação
Mito de gigantismo cai em 1973
Contatos tensos
Foi no ano de 1949 que os irmãos Villas-Boas (Cláudio, Leonardo e Orlando) avistaram pela primeira vez os krenakarores. Os sertanistas estavam preparando a área onde seria erguida a base aérea da FAB na serra do Cachimbo, no Pará. Os primeiros índios avistados na região tinham realmente um tamanho impressionante. "Eles deviam medir mais de dois metros de altura e tinham o tórax marcado por cicatrizes paralelas", lembra Orlando.
Em 1967, um incidente levou novamente os Villas-Boas à região dos índios gigantes. Um grupo de krenakarores havia se aproximado da base aérea de Cachimbo. Alguns homens deram tiros para cima, afugentando os "invasores". O governo federal então chamou os irmãos Villas-Boas para acalmar os índios. "Na realidade, eles queriam fazer contatos amigáveis, pois estavam acompanhados das famílias", diz Orlando, que na época estimou em 500 o número de krenakarores.
Depois, nos anos 70, veio a maior ameaça: o Plano de Integração Nacional do governo Médici, que previa a construção da BR-165, a Cuiabá-Santarém, passando pelas aldeias dos krenakarores. Em janeiro de 72, os Villas-Boas assumiam a vanguarda do 9o.Batalhão de Engenharia e Construção, encarregado de abrir a estrada. Os sertanistas levaram quase dois anos para contactá-los.
Em abril de 1973, o sertanista Apoena Meirelles chegava à margens do Peixoto de Azevedo para prosseguir a aproximação iniciada com os Villas-Boas. O mito caía por terra: os krenakarores - reduzidos a 100 e a maioria doente - não eram gigantes.

Tribo ameaçada
Esmolas na estrada
"Só alguns índios eram altos, mas na média tinham cerca de 1,70m", diz Orlando. Depois, a convivência com os dois mil homens encarregados de abrir a estrada acabaria imprimindo marcas profundas na vida dos índios.
Em janeiro de 1974, o sertanista Antônio Campinas foi acusado de ter introduzido na tribo práticas homossexuais e mantido relações sexuais com as índias. Os índios ficaram vulneráveis à BR- 165 e seu povoamento, e já perambulavam pelas estradas pedindo esmolas e prostituíam suas filhas e mulheres.
Liderada pelos irmãos Villas-Boas, a transferência dos krenakarore para o Parque Nacional do Xingu revelaria uma triste realidade. Entre os apenas 75 remanescentes, os efeitos nocivos do contato eram dramáticos. Muitos estavam doentes e não havia nenhuma . mulher grávida. Assentados inicialmente na aldeia dos caiabis, mudaram-se para a dos txucarramães, seus inimigos históricos. A convivência revelou-se perniciosa: eles foram absorvidos culturalmente pelos txucarramães.
Atualmente, há cerca de 130 índios, vivendo no vale do rio Maniçauá-Miçu (Arraias), no Parque Nacional do Xingu. No lugar da principal aldeia dos krenakarores está hoje a cidade de Matupá, no Estados do Mato Grosso.
Os índios entraram no ano passado com uma ação declaratória contra a Fundação Nacional do índio (Funai), o Incra e a União, requerendo o reconhecimento de posse de uma área de 448 mil hectares de seu antigo território, que ainda está preservada. Em 14 de dezembro, o presidente da Funai, Dinarte Nobre de Madeiro, publicou um decreto no Diário Oficial identificando a área panará, primeiro passo para o reconhecimento da posse. Lentamente, os krenakarores estão se mudando pai a área.

Populações nativas
Primeiros donos do Brasil
Eram 5 milhões no século XVI. Hoje restam 260 mil.
O Brasil tem hoje 260 mil índios, pertencentes a 200 povos diferentes e falando 170 línguas. Na época do descobrimento eles eram cerca de 5 milhões, mas hoje correspondem a apenas 0,2% da população brasileira. A maioria dos índios (51 %) vive na região Norte e está confinada a lugares onde o branco ainda não chegou, em 544 áreas indígenas, metade delas ainda não demarcadas.
Há registros de que ainda existem 59 grupos indígenas completamente isolados, que habitam principalmente a floresta amazônica e que ainda não foram nem identificados. Calcula-se que cada um desses grupos tenha, no máximo, 150 pessoas.
Quando todas as áreas indígenas forem regularizadas, cobrirão uma área de quase 90 milhões de hectares - cerca de 10% do território nacional, uma área equivalente à soma dos territórios de Espanha, Portugal e Itália.
Estudiosos reuniram os índios do Brasil em quatro grandes grupos lingüísticos: tupis-guaranis, jês, karibs e arawaks. Até a chegada do homem branco, esses primeiros donos do Brasil desconheciam a escrita, os metais e a escravidão. Várias tribos já desapareceram completamente, enquanto outras se aculturaram, tomando-se populações marginalizadas.

Entrevista
Não cabem mais tribos no Xingu, diz Vilias-Boas.

Os sertanistas Orlando e Cláudio Villas-Boas conviveram ou fizeram os primeiros contatos com cerca de 19 grupos indígenas, entre eles os txucarramães, jurunas, suiás, txicões, xavantes e krenakarores (ou panarás). Eles foram responsáveis pela criação, em 1961, do Parque Nacional do Xingu, que abriga hoje cerca de 6 mil índios falando 12 línguas diferentes. Orlando fala de sua experiência.

Jornal da Tarde - O que poderia ter sido feito para evitar tantas mortes de índios?

Orlando Vilfas-Boas - Quando os krenakarores ainda estavam nas margens do rio Peixoto de Azevedo, que é cheio de riquezas, a invasão dos garimpeiros foi enorme. Mas os índios foram transferidos tardiamente, depois de muitas mortes.

O senhor acredita na acusação de que o homossexualismo teria sido introduzido junto aos krenakarores por um sertanista?

Acredito. Ninguém conhecia direito o sertanista Antônio Campinas, que veio a assumir a frente de atração, e ele fez o maior desastre entre os krenakarores. Com a introdução das práticas homossexuais, antes desconhecidas na tribo, os índios ficaram traumatizados, cheios de pavor e ódio. Foi um crime.

Porque foi feita a transferência dos índios para o Xingu?

Metade dos índios morreu depois do primeiro contato. A invasão de seu território por garimpeiros acabou com tudo, estavam morrendo de gripe e malária, por isso tivemos de transferi-los.

Por que os índios continuaram sofrendo no Xingu?

Não foi fácil porque eram índios arredios. Não se deram bem com os caiabis e se mudaram para a aldeia dos txucarramães, que os superprotegeram e começaram a casar com suas mulheres, destruindo a comunidade.

Qual foi o erro ao ser feita a transferência?

Era necessário que as pessoas encarregadas na época tivessem determinado uma área adequada para eles, longe de outras tribos e protegida.

Os índios devem ser Indenizados de alguma maneira por tudo o que sofreram e pelas terras que perderam?

Esse tem sido o processo de contato desde o descobrimento do Brasil. Se todos os índios pedissem indenização pelas terras das quais foram expulsos, até os tupis do litoral iam receber indenização pelo parque Ibirapuera, que era deles. Não há dinheiro.

Os krenakarores querem se mudar para uma área que é parte de seu antigo território. O que o senhor acha?

Eles querem voltar para uma mata perto do rio Iriri. O problema é que, daqui a no máximo 5 anos, o garimpo também vai chegar lá e eles serão novamente expulsos. Mas eu disse a eles: "Se vocês querem a terra que é de vocês e o Incra se opõe, invadam a terra, do mesmo jeito que os brancos a invadiram".

Estima-se que ainda existam 59 grupos indígenas que nunca foram contactados pelo homem branco. Como deve ser o procedimento com eles?

Eles devem receber o máximo de assistência possível, mas não poderão ser instalados no Parque Nacional do Xingu, porque o parque não comporta mais nenhuma tribo. Teriam de ser criadas novas reservas. O governo tem a obrigação de tutelar esses índios - afinal, tomamos suas terras e as cortamos com nossas estradas. (P.C.M.)

JT, 09/05/1995, Geral, p. B11
PIB:Sudeste do Pará

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