Ritual para um homem branco
Povos do Parque Nacional do Xingu, na Amazônia Legal, incluem o sertanista Apoena Meireles entre os homenageados deste ano da cerimônia tradicional do Kuarup, que evoca o espírito dos mortos
Ullisses Campbell
No meio da mata fechada do sul da Amazônia Legal, oito povos indígenas mantêm viva uma tradição que atravessa gerações. Uma delas é o ritual internacionalmente conhecido como Kuarup, uma cerimônia fúnebre em que os índios chamam pelas almas dos mortos. Na edição deste ano da festa, realizada na semana passada no Parque Nacional do Xingu, eles evocaram pelo espírito de três índios e de um homem branco importante para eles, o sertanista Apoena Meireles, morto em outubro do ano passado, em um suposto assalto. 0 parque fica no nordeste do Mato Grosso.
A festa do Kuarup tem origem nas tradições indígenas do Xingu, um mundo mágico cheio de lendas e histórias fantásticas. A reserva é uma ilha verde de 260 mil quilômetros quadrados do tamanho do estado de Sergipe. É uma república formada por várias famílias lingüísticas, entre elas a tupi-guarani. Segundo a Unesco, trata-se do mais rico mosaico de línguas das Américas. Na região, vivem quatro mil índios de 14 etnias diferentes. São mais de 30 aldeias espalhadas ao longo do rio Xingu e seus afluentes.
Na crença dos índios que habitam a região, a reserva é a casa de centenas de espíritos, todos representados pela natureza. Nesse reino sagrado, o Sol é o símbolo maior, onde mora Mavutsinin, o deus da criação. Reza a lenda que os índios estavam tristes, sentindo a falta dos líderes que já tinham morrido. Para aliviar a dor, pediram a Mavutsinin que os trouxesse de volta Na festa, os mortos homenageados são representados por troncos de Kuarup, uma madeira nobre da Amazônia.
Na festa deste ano, foram homenageados o cacique Nahu, que morreu de parada cardíaca com quase 100 anos, e sua mulher, Sesuaka. Ela morreu de tristeza logo depois que o companheiro se foi. Além de Apoena Meireles, que foi presidente da Fundação Nacional do índio (Funai), a índia Auamajâ, morta de velhice, também teve seu espírito evocado na festa. Com isso, foram precisos quatro toras de Kuarup para a festa deste ano. A cerimônia começa com os índios cortando e carregando sob os ombros o tronco de madeira, retirada da floresta momentos antes. Na crença deles, junto com a árvore segue o espírito dos homenageados. Em seguida, começa um longo ritual de mais de 18 horas.
Os índios enterram os troncos no meio da aldeia durante o dia. Vão esculpindo e enfeitando um a um, transformando-o na figura simbólica dos mortos. Os pajés acompanham tudo entoando um longo lamento. À noite, eles imploram para que as almas dos homenageados venham para se despedir dos vivos. 0 som ritmado vai envolvendo as pessoas. As famílias dos mortos assistem a tudo bem de perto. 0 filho de Apoena, o advogado Francisco Meireles, não resistiu e chorou de, emoção. "Foi uma bela homenagem ao meu pai", disse, com as mãos trêmulas.
Cena comovente
Ainda de dia, dois índios seguidos de suas mulheres entram de oca em oca sem pedir licença. Eles tocam um som melancólico numa flauta artesanal de jacuí de quase dois metros de cumprimento. E o sinal de que a homenagem vai começar. Quem nunca esteve no Kuarup não imagina uma cerimônia tão comovente. À noite, todos estão em transe profundo ao pé dos troncos. Os índios choram. Eles têm certeza que os mortos voltaram e que estão entre eles. A cena dá medo. Todo mundo chora a mesma saudade. É o grande momento do Kuarup. "Nunca vi homenagem tão tocante", diz a viúva de Apoena, Ana Valéria Cassola, que viajou do Rio de janeiro ao Mato Grosso para ver a festa.
Quando o dia amanhece, os índios são pintados de preto, vermelho e branco. A tinta vem da semente de urucum e do carvão. É o sinal de que a tristeza está acabando. O choro pela morte começa a se transformar em alegria. Inicia-se uma dança para comemorar o fim do luto. Todos seguem o mesmo ritmo e coreografia. Os movimentos são quase instintivos. As tribos convidadas se unem e fazem a grande roda do Kuarup. Elevam as vozes em um coro ensurdecedor.
No momento da dança, todas as atenções estão voltadas para um grupo de 12 meninas que saíram do confinamento depois de quase um ano. Elas correm em paralelo. Trata-se de outro costume que ainda vigora entre os jovens habitantes do Xingu. Tão logo as adolescentes dão o primeiro sinal de maturidade sexual, eles são trancados numa oca sem janelas e privados do convívio com outros índios.
No escuro, eles esperam pelo próximo Kuarup. 0 confinamento pode durar até três anos. Neste período, as meninas passam uma faixa apertada no joelho para engrossar as pernas. São obrigadas a deixar a franja do cabelo crescer para esconder o rosto, caso precisem sair da toca. As meninas, geralmente saem prometidas para casamentos já acertados pelos pais. Antes da festa, elas têm a franja cortada.
Os meninos também ficam no escuro e tomam um chá de ervas para fortalecer os músculos tão logo nascem os pêlos pubianos. Dentro das ocas, os jovens da aldeia recebem os últimos ensinamentos do avô pajé para se tornarem guerreiros. São treinados para a luta. Na clausura, o avô dá a eles um chá de raízes.
Noite em claro
No meio da manhã, o luto é esquecido e começa a luta do Uca Uca, que marca o fim do funeral. Os guerreiros passaram a noite acordados. "Acham que um sonho ruim o faria perder a luta", explica a antropóloga Cibele Verani, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). No meio da aldeia, eles lutam de par numa batalha que lembra o sumô. Cada lutador representa uma aldeia. 0 curioso é que os perdedores é que são premiados.
Para assustar o adversário, os índios pintam o corpo com carvão. Na hora da luta, os índios formam uma grande roda no centro da aldeia. O cerco se fecha em volta do cacique, que comanda a batalha. Ao sinal do líder, os adversários se ajoelham. Eles se enfrentam imitando o rugido das onças. Não existe juiz. Ganha quem derrubar o adversário ou tocar na coxa dele. Apesar da vergonha da derrota, todas as lutas terminam em abraço.
Formado na floresta
José Apoena Soares de Meirelles conviveu com índios desde os quatro anos de idade, acompanhando o pai, Francisco Meireles, no contato com índios isolados da floresta. Desde essa época, desenvolveu a vocação que o consagrou como um dos maiores sertanistas do país. Tanto que recebeu do pai nome de índio em homenagem a um Xavante.
Guerreiro da paz, Apoena morreu vítima da violência. Num suposto assalto ocorrido no dia 9 de outubro de 2004, num caixa eletrônico do Banco do Brasil, em Porto Velho (RO), o sertanista levou três tiros. Tombou na Amazônia, onde desenvolveu toda a sua trajetória pela proteção, respeito e dignidade dos povos indígenas.
Seguidor dos princípios humanistas do Marechal Rondon e de seu próprio pai, Apoena era um homem tranqüilo, e de gestos nobres. Foi o último representante da geração de sertanistas autênticos, daqueles que não se formam nas universidades. Só no mato. Com 17 anos, fez o seu primeiro contato com uma nação isolada, os Cinta-Larga, em Rondônia.
Quando administrava o Parque Indígena Aripuanã, ele alertou sobre o risco do programa de integração da Amazônia para os povos indígenas. Previu que a construção da Belém-Brasília causaria a extinção de várias etnias. Chegou a ser punido e afastado pelo então presidente da Funai, general Bandeira de Mello. Anos depois, suas previsões virariam realidade. Com sua morte prematura, Apoena contrariou um ditado antigo. Há, sim, pessoas insubstituíveis. (UC)
CB, 28/08/2005, Brasil, p. 14
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