O ocaso de Payakan

O Paraense-Belém-PA - 04/03/2002
Cacique caiapó foi a grande estrela do Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em 1989. O calvário veio após a denúncia de ter estuprado a estudante Silvia Letícia em Redenção

O índio caiapó Paulinho Payakan tinha tudo para dar certo. Filho do cacique da aldeia Aukre, nasceu na gigantesca reserva caiapó no sul/sudeste do Pará, com 3,2 milhões de hectares. Criou-se na floresta, nadou nos rios límpidos que cortam a área indígena, aprendeu a caçar e pescar e viver da natureza e teve a grande oportunidade de estudar na capital, Belém, com o apoio da Fundação Nacional do Índio (Funai). Foi quando o conheci. Como chefe da sucursal da Revista Veja na Amazônia, o convenci, em 1988, a escrever um artigo para a seção Ponto de Vista, respondendo ao então presidente da Bombril, que na semana anterior havia publicado o artigo "Eu quero ser índio", onde criticava o excesso de terras nas mãos dos poucos índios brasileiros e a impunidade que cercava o índio, livre dos rigores da lei do homem branco. Escrevemos, eu e Payakan, o artigo "Eu quero ser empresário" onde, entre outras coisas, denunciávamos a facilidade com que os empresários brasileiros mamavam nas políticas de incentivos fiscais do governo e o fato de não haver no Brasil - como ocorre até hoje - empresário na cadeia. No Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em fevereiro de 1989, realizado em Altamira, Paulinho Payakan foi uma das grandes estrelas ao lado de artistas internacionais como o roqueiro inglês Sting. Os índios conseguiram uma vitória histórica à época, sepultando a idéia da Eletronorte de construir no rio Xingu a usina hidrelétrica de Cararaô. Foi nessa festa de ambientalistas em Altamira que a índia Tuíra, irmã de Payakan, encostou um facão na testa do então diretor de Operações da Eletronorte, José Antonio Muniz Lopes - hoje presidindo a estatal. Três anos depois eu estava no Rio de Janeiro, no Riocentro, cobrindo para o Jornal do Brasil a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento - a Eco-92 - quando recebi a notícia de que Paulinho Payakan estava preso após ter estuprado uma estudante em Redenção, no sul do Pará, num episódio em que também estava envolvida a mulher do cacique, a índia caiapó Irekran.
Fugitivo - Quase 10 anos depois, o processo envolvendo Paulinho Payakan chegou ao fim com o Supremo Tribunal Federal (STF) determinando que o cacique caiapó - condenado a seis anos de reclusão pelo estupro da estudante Silvia Letícia em 1992, cumpra pena em regime fechado, em uma prisão comum. Payakan se encontra na aldeia Aukre e está sendo considerado pelo Ministério Público como um fugitivo da justiça. Como é temida uma reação dos índios para impedir a detenção dele, foi encaminhado um pedido à Funai para que o órgão apresente o cacique às autoridades. Na sua versão do acontecido, a estudante Silvia Letícia acusou Paiakan e sua mulher, Irekran, de a terem estuprado - na época, ela tinha 18 anos -, numa chácara próxima a Redenção. A estudante disse à época que, depois de ser agredida pelo casal com mordidas e socos, foi obrigada a manter relações sexuais com o índio. O crime chocou o mundo, pois Paiakan era conhecido por fazer campanhas em vários países defendendo a floresta e os povos indígenas. No primeiro julgamento, em 1994, Paulinho Paiakan e sua mulher foram inocentados. Quatro anos depois, porém, na segunda instância, ele foi condenado a seis anos de prisão pelo Tribunal de Justiça do Pará. Recorreu da sentença. Mesmo assim, teve que cumprir dois anos de prisão domiciliar, dentro da aldeia. Irekran foi excluída do processo, por ter sido considerada não integrada à sociedade. O argumento dos advogados de defesa, afirmando que Paiakan não conhecia a "lei do homem branco" e não sabia o que estava fazendo quando violentou a estudante não foi aceito pelo STF. O Supremo considerou o cacique como um índio aculturado, o que afasta sua suposta inimputabilidade. Para a Justiça, Paiakan deve agora cumprir a pena em regime fechado. A Funai designou um de seus procuradores para atuar como defensor do caiapó. Ele irá recorrer da decisão do juiz das execuções penais de Redenção por não ter concedido ao índio o livramento condicional na época do inquérito, uma vez que a denúncia não fala em crime hediondo, mas apenas em estupro. O procurador afirma que, caso Paiakan venha a ser obrigado a cumprir pena em prisão fechada, isso não só o afetará, como também criará uma comoção em toda a nação Caiapó. Como a reserva onde ele se encontra hoje tem mais de 3 milhões de hectares de terra, o advogado acredita que é quase impossível que o cacique seja localizado pelos agentes da Polícia Federal que tentarão fazer cumprir a decisão judicial.
Resistência - Prender Payakan dentro da reserva caiapó não será tarefa fácil. Até porque os índios caiapós da aldeia Aukre decidiram não entregá-lo à Justiça. Na avaliação dos líderes caiapós, embora Paiakan tenha cometido crime sexual contra uma mulher "branca", sua prisão dentro da aldeia representaria uma "desmoralização" para a tribo. Além disso, colocaria em risco toda a comunidade indígena, que ficaria sujeita "às leis da cidade". Entregar Paiakan à Justiça também está fora de cogitação. Velhos e novos guerreiros garantem que nem a Polícia Federal ou o Exército se atreverão a enfrentar os guerreiros caiapós dentro de suas terras. Se isto vier a ocorrer, os índios afirmam que irão "lutar até a morte". Segundo o juiz do TJ paraense José Torquato de Alencar, que assinou o mandado de prisão, Paiakan é considerado foragido de Justiça e tem ainda quatro anos de pena para cumprir, em regime fechado. Desde 1999 que o cacique, após tomar conhecimento de que sua apelação contra a decisão do Tribunal de Justiça do Pará havia sido rejeitada pelo STF, Paiakan refugiou-se na aldeia Aukre, embora tivesse residência fixa na cidade de Redenção, onde possui casa, carro e é comerciante. O superintendente da Polícia Federal no Pará, Geraldo Araújo, ainda negocia com dirigentes da Funai uma maneira de cumprir o mandado de prisão. Para o delegado, o ideal seria que a própria Funai convencesse o cacique a se apresentar à Justiça. Mas isso ficou muito mais difícil depois da posição tomada pelos índios. O advogado de Payakan, João Ferreira Neto, assegura que a Funai não está estimulando o índio a entregar-se para cumprir pena em regime fechado. A Funai, segundo Ferreira Neto, defende que Payakan cumpra o resto da pena em prisão domiciliar. Alega que o cacique já cumpriu dois anos e quatro meses em regime domiciliar, quando ficou recolhido à aldeia. "Os três anos e meio que faltam podem ser cumpridos dessa forma", argumenta. Que o bom senso prevaleça.
PIB:Sudeste do Pará

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