Curso de graduação da UFSC forma professores e líderes indígenas

G1 - http://g1.globo.com/ - 11/06/2013
Licenciatura é específica para índios e reúne alunos de cinco estados.
Estudantes são motivados pela busca de formação para atuar nas aldeias.


Aos 36 anos, Geraldo Moreira Karai Okenda é índio guarani, pai de 5 filhos e líder espiritual da aldeia Yynn Moroti Whera (reflexo da água cristalina), onde mora, em Biguaçu, na Grande Florianópolis. Além disso, é professor da comunidade há 13 anos e aluno da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) há dois anos e meio.

É com um pouco de timidez, mas com a voz cheia de satisfação que ele fala de cada uma das atividades que desempenha no que chama de 'dois mundos'. "Nós, indígenas, estamos em dois mundos: o indígena e o não indígena. É necessário o diálogo, para aprender com o mundo não indígena. Precisamos de conhecimento e isso se adquire conversando com outras pessoas", diz ele, um dos alunos do curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da UFSC, um dos 22 cursos oferecidos por universidades públicas para capacitar indígenas para atuarem em aldeias.

Conforme a UFSC, o vestibular teve 400 indígenas inscritos, entre as etnias kaingang, xokleng e guarani, presentes em Santa Catarina. Destes, 120 iniciaram a graduação. Dois anos e meio depois, 95 continuam matriculados: 30 alunos da etnia guarani, 25 xokleng e 36 kaingang. Conforme a professora Maria Dorothea Post Darella, a evasão é considerada baixa, em relação a outras licenciaturas e até mesmo cursos superiores.

A turma inclui alunos de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul. Alguns terminaram o Ensino Médio e perceberam na licenciatura uma oportunidade para fazer um curso superior, como Ana Roberta Patté, outros já atuavam nas escolas das aldeias, como Geraldo, que iniciou o curso mais de uma década depois de formar diversas turmas no ensino fundamental. Conforme a professora Maria Dorothea, a maioria, porém, segue o exemplo de Geraldo e já atua em sala de aula.


De professores a alunos

Conforme a professora Maria Dorothea, o curso começou a ser idealizado em 2008, quando o grupo recebeu a primeira verba para a elaboração do projeto. Em 2009, o projeto foi aprovado pelo Programa de Formação Superior e Licenciatura Indígena (Prolind) e a equipe viajou para diversas aldeias e conversou com representantes indígenas. "Queríamos saber a necessidade, conhecer a demanda e entender o que eles apresentavam como importantes. E essa troca não ocorreu apenas na criação do curso, mas é constante", explica ela, que acompanhou todo o processo.

O Prolind foi criado pelo Ministério da Educação para capacitar os cerca de 12 mil professores indígenas do país que atuavam, mas não tinham curso superior. Em 2011, havia apenas 2.000 graduados e outros 3.000 em formação, de acordo com o MEC. Outros cerca de 6 mil índios fazem outros cursos superiores. Na UFSC, além dos 90 alunos cursando a licenciatura, há pelo menos outros 10 matriculados em outros cursos. Já em outras universidades, conforme a Fundação Nacional do Índio (Funai), não há um registro único, mas a agente indigenista Luciana Porta acredita que o número chegue a dezenas em todo o estado.

O modelo do programa prevê aulas presenciais e a distância, denominadas 'tempo universidade' e 'tempo comunidade'. Os estudantes passam cerca de seis semanas por semestre com aulas no campus da Universidade Federal de Santa Catarina e o restante do ano nas aldeias, executando projetos desenvolvidos na universidade. Além disso, conforme os professores, mesmo as atividades no campus incluem a participação dos chamados 'sábios indígenas', que compartilham o conhecimento passado de geração em geração.

A UFSC é responsável pelas aulas, enquanto o governo federal fica com os custos com hospedagem e alimentação durante o tempo universidade. Alguns ainda recebem uma bolsa mensal, como incentivo para continuarem estudando. De acordo com o Ministério da Educação, o investimento por aluno a cada ano é de cerca de R$ 4 mil.


Formar-se para formar

Atualmente, a maioria das aldeias possui uma escola, mas Geraldo conta que estudou em uma escola normal e que a docência na aldeia foi por necessidade. Aos 23 anos, era o único que havia concluído o ensino médio e poderia atuar na aldeia, que possui cerca de 150 pessoas. Mais de uma década depois, quando achou que já era experiente na função, surgiu a oportunidade de fazer o curso superior. "Sempre tive o sonho de fazer ciências, mas surgiu esse curso e aproveitei", comenta ele.
Nós, indígenas, estamos em dois mundos: o indígena e o não indígena. É necessário o diálogo, para aprender o mundo não indígena"

Como professor, dá aulas do 6o ao 9o ano do Ensino Fundamental e 1ª ano do Ensino Médio. Foi professor de 4 dos 5 filhos. Como líder espiritual, já viajou para países como Bolívia, México, Colombia, Venezuela e até para os Estados Unidos. Nestes locais, executou a cerimônia de cura, conhecida como 'Papaendy'. "Atendo de 30 a 40 pessoas por mês, com problemas físicos ou espirituais. São problemas de todos os tipos", conta ele. A função e os conhecimentos foram herança do pai, que tem 104 anos e também é líder espiritual.

Segundo ele, em sala de aula ou como líder espiritual, a universidade é aliada. "Consegui avançar muito. Na escola, a postura como professor mudou. Estou conseguindo atrair mais as crianças e me sinto mais motivado para dar aulas. Cada professor é diferente, mas a graduação ensina um caminho, uma pedagogia que nos faz perceber qual é a melhor maneira das crianças aprenderem", diz ele, que já inclui no 'barco' o desejo de fazer mestrado e doutorado.

Para o professor da UFSC Clóvis Brighenti, a reflexão entre o que aprendem de geração em geração, na aldeia, e o que a universidade proporciona, é complementar. "Aqui eles fazem um diálogo entre as lógicas. Na cultura indígena tudo tem uma explicação específica. Aqui, eles aprendem outra e o curso é a ponte", diz o professor.


Formar-se para atuar

Ana Roberta, de 21 anos, passou pelo dilema da maioria dos adolescentes que termina o Ensino Médio com o anseio de ingressar em um curso superior. Ela mora na cidade José Boiteaux, no Vale do Itajaí. Conforme o IBGE, a cidade possui 4741 habitantes, sendo oito aldeias, que também avançam sobre o território de Victor Meirelles. A dela, chamada Laklãnõ, que significa 'povo debaixo do sol', faz parte da etnia xokleing e reúne cerca de 300 pessoas. A exemplo de muitos de sua aldeia, decidiu fazer uma graduação assim que terminou o Ensino Médio.

A mãe é formada em Letras Espanhol e foi uma das primeiras a terminar um curso superior na aldeia. Incentivada por ela, ainda na escola, Ana viu um cartaz que divulgava a licenciatura indígena da UFSC e decidiu que iria fazer o vestibular. Atualmente, dois anos depois, ela ainda comemora a aprovação. Segundo Ana, seus três irmãos mais velhos chegaram a começar um curso superior. A irmã, hoje com 28 anos, cursou cinco anos de Direito em uma universidade particular, mas precisou desistir por dificuldades financeiras. Outro irmão também cursa a graduação da UFSC.

Para Ana, a primeira vantagem foi poder continuar na aldeia, perto da família e da filha, de 3 anos. A segunda, foi conhecer melhor mundo fora de Laklãnõ. "Gostei de tudo. Quando comecei o curso, era uma oportunidade de fazer um curso superior. Agora, com o passar do tempo, percebo que tem muito a ver comigo. Principalmente quando estudamos direitos indígenas, descobri muitas formas de ajudar minha aldeia, de lutar por nossos direitos", diz a jovem, que a pouco mais de um ano da formatura já planeja outra graduação. "Quero fazer Direito, para poder ajudar ainda mais", complementa ela, que vai seguir a prima, Lucimara Patté, que já cursa Direito na UFSC.
O queria fazer realmente não era atuar em sala de aula, mas atuar junto à comunidade xokleng na área do meio ambiente"

Colega de Ana Roberta, Vougce Camlem tem 29 anos e mora na Aldeia Palmeira, outra comunidade de José Boiteux. Quando soube do curso da UFSC, Vougce já estava no segundo ano da graduação em Comunicação Social, curso de pretendia fazer para divulgar mais a cultura de seu povo. Trancou por tempo indeterminado e decidiu fazer o curso por um motivo específico: "O queria fazer realmente não era atuar em sala de aula, mas atuar junto à comunidade xokleng na área do meio ambiente", explica ele.

Há dois anos ele atua na área de informática de sua aldeia, além de assessorar o cacique de outra aldeia da região. Para Vougce, o principal desafio dos índios não é superar o preconceito, já que a convivência costuma ser pacífica, mas mudar expressões. "Para alguns é uma novidade. Quanto sabem de indígenas na universidade, ficam pasmos. Mesmo na UFSC, eles perguntam se ainda vivem morando em ocas ou vivem pelados. Talvez eles acham estamos atrasados, mas estamos acompanhando o tal progresso". Para exemplificar, Vougce diz que pelo menos 40% das famílias de sua aldeia possuem internet e telefone em casa.

Segundo a professora Maria Dorothea, a mesma intenção de Vougce fez com que muitos caciques buscassem a formação. "Os caciques são líderes nas aldeias e muitos professores também são. Alguns caciques também são professores. As disciplinas incluem direito, conhecimento ambiental, saúde e outras áreas que os ajudam a embasar argumentos diante dos direitos e deveres na terra indígena e como cidadãos", afirma a professora.
"Eles relatam que a percepção sobre os problemas ambientais, por exemplo, tornou-se mais aguçado. Alguns também estão auxiliando lideranças sobre como avançar em diversos aspectos. Já fora da universidade, em um congresso, um aluno pediu a palavra e, antes de falar, citou a frase de um pesquisador que havia conhecido no curso. Achei incrível porque isso demonstra uma articulação de saberes", complementou ela, que expõe o desejo de tornar a graduação um curso regular da UFSC. "Depois de 2012, não tivemos mais ingresso, mas a adesão faz com que pensássemos na possibilidade", complementa.

Em comum, os alunos têm o desejo de beneficiar de alguma forma sua etnia. Na Terra Indígena de Vougche e Ana Roberta, que inclui 8 aldeias, já há indígenas que concluíram serviço social, licenciaturas, farmácia e comunicação social. Conforme Vougche, todos voltaram para aldeia e trabalham nas comunidades, que incluem mais de 2 mil indígenas entre as cidades de Vitor Meireles e José Boiteux.

"Meu sonho sonho é terminar a graduação na UFSC e ser militante da causa indígena xokleng. Principalmente evitar conflitos que podem ocorrer e causar mortes. Acho que esse é um desejo de todos", reflete ele.



http://noticias.ufsc.br/2013/06/ufsc-na-midia-curso-de-graduacao-da-ufsc-forma-professores-e-lideres-indigenas/
PIB:Sul

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