Construção de rodovias no governo militar matou cerca de 8 mil índios

Último Segundo - http://ultimosegundo.ig.com.br - 25/09/2013
Projetos de governos militares são investigados pela Comissão da Verdade. Maior parte das mortes, em quatro frentes de construção de rodovias, não foi registrada

As investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) pela região Amazônica indicam um verdadeiro genocídio de índios durante o período da ditadura militar. Não há como falar em um número exato de mortos devido à falta de registros. Os relatos colhidos, no entanto, apontam que cerca de oito mil índios foram exterminados em pelo menos quatro frentes de construção de estradas no meio da mata, projetos tocados com prioridade pelos governos militares na década de 1970.

Os trabalhos da Comissão da Verdade miram os processos de construção e o início do funcionamento das rodovias BR-230, conhecida como Transamazônica; a BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, a BR-210, conhecida com Perimetral Norte e a BR 163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA).

Essas estradas fizeram parte do Plano Nacional de Integração (PIN), instituído pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, em 16 de julho de 1970, e que previa que 100 quilômetros em cada lado das estradas a serem construídas deveriam ser destinados à colonização. A intenção do governo era assentar cerca de 500 mil pessoas em agrovilas que seriam fundadas.


Transamazônica

A Transamazônica foi escolhida como prioridade e, por isso, representou uma verdadeira tragédia para 29 grupos indígenas, dentre eles, 11 etnias que viviam completamente isoladas. Documentos em poder da Comissão da Verdade apontam, por exemplo, o extermínio quase que total dos índios Jiahui e de boa parte dos Tenharim. O território dessas duas etnias está localizado no sul do Estado do Amazonas, no município de Humaitá.

O Ministério Público Federal no Amazonas também abriu um inquérito para apurar as violações de direitos humanos cometidas contra esses povos no período da ditadura militar. Os documentos indicam ainda que indígenas sobreviventes acabaram envolvidos nas obras em regime de escravidão.

Atualmente, a população Jiahui, de acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), não chega a 90 índios. Antes da construção da estrada, eram mais de mil. Já os Tenharim somam hoje 700 pessoas. Eram mais de dois mil antes da chegada das frentes de construção.


Matança

Entre as práticas de violência contra índios já identificadas estão as "correrias", expedições de matança de índios organizadas até o final da década de 1970, principalmente no sul do Amazonas e no Acre. Essa prática foi detalhada no primeiro relatório do Comitê Estadual da Verdade do Amazonas, um documento de 92 páginas, ao qual o iG teve acesso.

O relatório descreve a matança do povo Waimiri-Atroari, que habitava até 1967 a região entre Manaus e o município de Caracaraí, em Roraima. A região corresponde à parte norte do vale do rio Urubu e inclui os rios Uatumã, Curiuaú, Camanaú, Alalaú, todos no Amazonas, além dos rios Jauapery e Anauá, em todo Estado de Roraima, até a fronteira com a Guiana. Esse povo foi diretamente impactado pela construção da BR-174.

"Muitos dos episódios de 'correrias' tiveram a participação direta de agentes públicos", aponta o relatório elaborado pelos coordenadores do comitê local, Egydio Schwade e Wilson Braga Reis.

"Pais, mães e filhos mortos, aldeias destruídas pelo fogo e por bombas. Gente resistindo e famílias correndo pelos varadouros à procura de refúgio em aldeia amiga. A floresta rasgada e os rios ocupados por gente agressiva e inimiga. Esta foi a geografia política e social vivenciada pelo povo Kiña desde o inicio da construção da BR-174 em 1967 até sua inauguração em 1977", descreve no documento. O termo "Kiña" é uma outra denominação para os Waimiri-Atroari.

O relatório também informa que, entre os povos mais duramente atacados em "correrias", estão os Kaxinawa e os Madiha no Acre, além do povo Juma, no sul do Amazonas.


Lista de mortos

O relatório também pede mais investigação sobre o desaparecimento dos índios Piriutiti e sobre o que ocorreu com outras etnias durante a execução das grandes obras do governo militar. "Documentos apontam também para o genocídio do grupo Piriutiti, na mesma região, que merece uma investigação mais específica", diz o texto.

Para Schwade, a investigação da Comissão Nacional da Verdade sobre a violência sofrida por índios terá que apontar o que ocorreu com os Cinta Larga e Suruí, na região dos rios Aripuanã e Rooswelt, entre Rondônia e Mato Grosso; os Krenhakarore do rio Peixoto de Azevedo, na rodovia Cuiabá-Santarém (conhecidos como Índios Gigantes); os Kanê ou Beiços-de-Pau do Rio Arinos no Mato Grosso; os Avá-Canoeiro em Goiás; Parakanã e Arara no Pará, entre outros, em função dos projetos políticos e econômicos da Ditadura.


Restrição de informação

De acordo com Schwade, apesar de o episódio ser relativamente recente e ter ocorrido bem próximo à capital amazonense, a cerca de 200 quilômetros, as pessoas sabem menos dessa matança do que sobre os massacres acontecidos aos mesmos índios há 150 anos. "Apesar da farta documentação existente, que comprova o exercício de uma política genocida, instalou-se junto ao povo Wamiri-Atroari um programa de controle da informação", aponta. Os militares, de acordo Schwade, mantiveram afastados do local indigenistas, cientistas e jornalistas. "Não houve acesso, a não ser dos que tinham vinculação com os interesses empresariais instalados no território indígena", denunciou.

O conluio de agentes públicos com empresários e fazendeiros ligados a lideranças políticas locais é outro ponto observado por técnicos da Comissão da Verdade que estiveram na Amazônia para colher informações. Onde as frentes para a abertura de estradas chegaram, também chegaram os fazendeiros, que se instalaram demarcando latifúndios em terras antes pertencentes aos índios.


Yanomamis

A construção da rodovia Perimetral Norte também é objeto de estudo da Comissão da Verdade. A obra representou um desastre para o povo Yanomami e estima-se que pelo menos dois mil índios dessa etnia tenham sido exterminados no período. Uma avaliação da Comissão da Verdade indica que o desastre só não foi maior porque o governo militar não chegou a concluir a obra. Com isso, muitas aldeias acabaram preservadas, já que o projeto da estrada, que cortava inteiramente o território Yanomami, não foi executado na integralidade.

O traçado planejado para a rodovia passava pelos Estados de Amazonas, Pará, Amapá e Roraima. A proposta era cortar toda a Amazônia brasileira, desde o Amapá até a fronteira colombiana no Estado do Amazonas. Até hoje, somente um trecho, em Roraima, com pouco mais de 400 quilômetros, e outro no Amapá, com cerca de 100 quilômetros, foram construídos.

Embora o trecho executado seja considerado relativamente pequeno, a construção foi capaz de exterminar, quase que por completo, os índios Yawarip, um subgrupo Yanomami, na década de 1970. Mais tarde, a publicidade dada no governo militar ao grande potencial mineral do território Yanomami desencadeou a instalação de garimpos ilegais nas terras dos índios, o que provocou mais destruição.


Prazo

A avaliação preliminar da Comissão da Verdade é de que os relatos sobre a violência indígenas são muitos, mas ainda pulverizados. De acordo com técnicos, o desafio da comissão para finalizar um texto capaz de promover consequências jurídicas está em estabelecer uma narrativa dos fatos. Diante desse desafio, os conselheiros da Comissão da Verdade estudam pedir novamente um prazo à presidente Dilma Rousseff para a apresentação do relatório final, pelo menos em relação ao tema indígena.

As três estradas estão sendo usadas como eixos da investigação, no entanto, os técnicos e conselheiros querem ainda contemplar no documento aspectos importantes como a militarização, na época, dos órgãos encarregados de proteger os índios. No caso, esse órgão seria a Fundação Nacional do Índio (Funai).

Outro ponto importante do texto será o de estabelecer a cadeia de comando. Como os militares alegam que muitos documentos foram destruídos, fica quase impossível para comissão indicar de quem partiram as ordens para os ataques. A ideia é, nesse caso, que o texto indique quem ocupava cargos importantes na hierarquia militar em determinados Estados, municípios ou frentes de trabalho e que, pela rígida hierarquia militar, teria que ordenar ou consentir os ataques.



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