Um professor Kaxinawá me contou da visita que a educadora Nietta Monte fez à sua aldeia, no Acre, há muitos anos, quando ela conversou durante horas com um velho sábio. Enquanto ouvia as narrativas tradicionais saborosas e cheias de vida que circulam em língua indígena, ela viu passar um jovem, caminhando em direção ao igarapé. Nietta, então, perguntou ao velho:
- Este menino aí conhece as histórias que o senhor me contou? Ele fala a língua Kaxinawá?
O velho respondeu:
- Não, minha filha! Coitadinho! Ele não sabe nada. É que ele frequentou a escola.
A escola, para os índios, durante muito tempo foi o lugar onde se desaprendia todas as coisas que sabiam sobre eles próprios. Se não me falha a memória, minha amiga Nietta descreveu essa experiência, com outras palavras e maior competência, em algum livro ou artigo, mas quem também me contou foi um aluno do Curso de Formação de Professores Indígenas, onde ministrei, em três ocasiões diferentes, módulos de História da Amazônia Indígena, convidado pela Comissão Pro-Indio do Acre (CPI/AC).
Para quem, como nós, trabalhamos com a escola e nela acreditamos, é terrível essa imagem de uma escola que des-ensina, de um lugar aonde os alunos desaprendem língua, tradição, saberes. Se não tivesse frequentado a escola, o menino dominaria língua e conhecimentos transmitidos através da pedagogia da oralidade, que ele desaprendeu dentro da instituição. Em muitos casos - é preciso reconhecer - a escola fez com extraordinária eficiência aquilo que a senadora Kátia Abreu sonha: eliminar os índios do mapa do Brasil.
Fábrica de brancos
No Brasil durante cinco séculos, a relação dos índios com a escola foi sempre tensa e conflituosa. Embora seu alcance tenha sido bem restrito, essa escola para índios, inaugurada com a catequese, atravessou o Império e a República. O estado neo-brasileiro herdou o modelo de escola que reprimia as línguas indígenas e excluía os conhecimentos tradicionais, as narrativas orais e os processos próprios de aprendizagem. Essa escola nunca contou com um único professor indígena.
Para os índios, a escola foi historicamente devoradora de identidades, apagadora de memórias, exterminadora de línguas. Aliás, num mito andino, a escola é apresentada como um monstro que maltrata e engana as crianças com mentiras.
Há alguns anos, pedi a meus alunos indígenas do Programa Kuaa Mbo'e de Formação de Professores Guarani da Região Sul que desenhassem a escola onde estudaram. Cada um dos 80 alunos fez o trabalho pedido. Um deles, Vanderson, revelou-se um grande artista do traço. Ele morava então na aldeia Pinhalzinho (PR), mas havia nascido em Laranjinha, onde ninguém mais falava guarani, porque a escola não-indígena já havia cumprido seu papel devastador de des-ensinar.
O desenho do Vanderson é uma obra prima. Trata-se de uma história em quadrinhos com muito movimento que acontece na sua escola. Ele desenhou um grande prédio, com uma chaminé, que ocupou toda a folha de papel. Escreveu na fachada, com letras grandes: FÁBRICA DE FAZER BRANCOS. Do lado esquerdo, na parte inferior, frente à porta de entrada, uma fila de crianças indígenas com cocar e tanga. Um agenciador com um megafone grita: - Entrem, entrem, crianças!
No quadro seguinte, as crianças que ingressaram encontram um cesto onde está escrito: "Deixem aqui os vossos adornos". As crianças se despem, então, do símbolo externo estereotipado de suas identidades. Prosseguem seu caminho em direção a um chuveiro, onde tomam banho de água sanitária para embranquecer. Daí, saem para outro espaço, onde lhes aguarda um laboratório. Lá, colocam na cabeça das crianças um capacete com fios para realizar uma lavagem cerebral.
Depois de mudados por dentro e por fora, as crianças passam por uma engrenagem sofisticada, com rodas dentadas, que parecem máquina de moer carne. Os coitadinhos são triturados, moídos, pulverizados e reformatados. Saem de lá para uma sala com guarda-roupa, onde vestem calça, camisa, sapato. No outro lado da página, no canto inferior, fica a porta de saída. O agenciador observa as crianças que saem e exclama com júbilo:
- Deu certo! Eles viraram brancos!
Embaixada estrangeira
Foi contra essa fábrica de fazer brancos que, em princípio, foram criadas as escolas bilingues interculturais garantidas pela Constituição Federal de 1988. Pela primeira vez na história do Brasil, o estado nacional, pressionado pelo movimento indígena e por seus aliados, manifestou vontade política de reconhecer e valorizar as línguas e culturas indígenas e de sepultar a velha escola para índios, criando um novo modelo de escola de índios, bilingue, intercultural, específica e diferenciada.
Nos últimos 25 anos se estruturou dentro do sistema nacional de educação um sub-sistema escolar indígena, do qual fazem parte, hoje, cerca de 2.700 escolas, com 11 mil professores (10 mil deles são índios) que dão aula para mais de 205.000 alunos no ensino fundamental e médio, segundo o Censo Escolar de 2008 elaborado pelo INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. A escola indígena é, talvez, a única coisa nova na educação brasileira. Um pouco mais de 66% das escolas indígenas no Brasil são bilíngues e interculturais, seja lá o que isso signifique.
Cabe, então, perguntar: Qual o bilinguismo e a interculturalidade praticado? Como é que os índios veem hoje essa nova escola e qual a imagem que ficou da velha escola que legalmente deixou de existir? Registrei ao longo dos anos, nos cursos de formação de professores bilíngues que ministrei em 14 estados do Brasil, algumas histórias que revelam a imagem que tem os índios da escola.
Bartomé Meliá - uma vida inteira dedicada aos guarani - escreveu: "a interculturalidade é uma teoria bonita e uma proposta racional, ao se constituir também como pedagogia do diálogo e exercício de superação de diferenças sem eliminá-las, inclusive potencializando-as. A interculturalidade tem sido, no entanto, na prática, um rotundo fracasso. E precisamos perguntar: por que?". Para Meliá, "a farsa" engloba uma área particular da interculturalidade que é o bilinguismo: "Sem bilinguismo, ao menos intencional, não existe interculturalidade. O fracasso de um leva ao fracasso da outra".
Os avanços significativos não são ainda compartilhados por todas as escolas indígenas. Um controle rigoroso por parte de zelosos funcionários das Secretarias Municipais e Estaduais de Educação e um desconhecimento de muitos índios sobre seus direitos nesse campo, acabam evidenciando as limitações dessa escola.
"A escola dentro da aldeia é como se fosse uma embaixada de outro país". Foi assim que Leonardo Werá Tupã, professor bilingue guarani definiu a Escola Indígena da aldeia Massiambu, Palhoça (SC), numa entrevista para a dissertação de mestrado de Helena Alpini. A imagem, de forte valor explicativo, sinaliza para o fato de que embora a escola esteja localizada em território Guarani, quem tem controle sobre ela não é a comunidade local, mas o Estado nacional brasileiro, da mesma forma que a embaixada de um país estrangeiro é inviolável, conforme a Convenção de Viena.
Como escreveu o antropólogo José Augusto, o Guga, "a escola não é dos índios, é do Estado que constrói prédios, dá merenda, paga salários dos professores. É uma instituição de fronteira, de diálogo entre instituições sociais, instância de comunicação, campo de disputas, de efervescência política, de luta no plano simbólico".
A imagem e os avanços da escola indígena - esse foi um dos temas do I Congresso Internacional América Latina e Interculturalidade organizado pela UNILA - Universidade Federal de Integração Latinoamericana nos dias 7, 8 e 9 de novembro, em Foz de Iguaçu, dentro do Parque Tecnológico de Itaipu, de onde escrevo. Envio este resumo da minha fala para os leitores do Diário do Amazonas que devem ter percebido que no campo da educação indígena, como poetou César Vallejo em Los Nueve Monstruos: "Hay hermanos, muchísimo que hacer".
http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1059
PIB:Acre
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- TI Pinhalzinho
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