'Esperamos é que eles possam prosseguir o seu modo de vida tradicional', diz antropóloga sobre índios do sul da Bahia

O Globo - http://oglobo.globo.com - 19/02/2014
Criação de Terra Indígena de 47.376 hectares coloca proprietário e índios em lados opostos


SÃO PAULO - Coordenadora do estudo que resultou na delimitação da Terra Indígena Tupinambá Olivença, a antropóloga Suzana de Matos Viegas, professora e pesquisadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, estudou a vida da etnia por onze anos. Nesta entrevista, ela diz que não pode restar dúvidas sobre o direito dos índios.

A criação da Terra Indígena, de 47.376 hectares, colocou o Sul da Bahia em pé de guerra. De um lado, grandes e pequenos proprietários de terras. De outro, um contingente de cinco mil pessoas que se declaram índios e que passaram a ocupar fazendas nos últimos anos para pressionar o governo a efetivar o território indígena.


Quando a senhora teve contato com o povo tupinambá?

Primeiro na literatura antropológica sobre os povos indígenas no Sul da Bahia (textos publicados nos anos 1990 já relatavam a situação por eles vivida); segundo, em contatos com colegas da Universidade Federal da Bahia. A partir de agosto de 1997 em contato direto com eles, quando iniciei o trabalho de campo na região. Foi no desenrolar dessa pesquisa de campo que pude ir conhecendo, por indicação de contatos interpessoais ao longo de meses, a realidade vivenciada por esta população.


Muitos falam que as características físicas dos tupinambás hoje em nada lembram índios. Como a senhora vê isso?

Falar hoje sobre características físicas de um qualquer povo é um erro histórico e um atentado aos princípios de respeito humano. Como sabe, as teorias raciais que sustentaram, num determinado tempo histórico, esse tipo de reflexão não só foram totalmente refutadas como estão na origem de gravíssimos conflitos mundiais e dos mais graves atentados contra a dignidade humana, como o holocausto.


O que caracteriza o modo de vida dos tupinambás?

Os Tupinambá de Olivença desenvolvem um modo de vida próprio que se carateriza, por exemplo, por dinâmicas de parentesco e uma constituição da pessoa centrada nas transformações do corpo. Essas duas dimensões do corpo/pessoa e dinâmicas de parentesco se articulam com formas de vivenciar o espaço e a sua 'territorialidade', isto é, a sua vivência histórica numa região de Mata Atlântica marcada, por um lado, pelo deslocamento cíclico e abandono dos espaço onde alguém morreu e, por outro lado, pela reconfiguração do espaço habitacional face à pressão fundiária.


Quando a senhora esteve no Sul da Bahia, visitou alguma aldeia ou comunidade específica?

O meu contato foi com todos os índios que me foram sendo apresentados à medida que, durante o ano em que vivi na região (1997-1998), sabiam que eu fazia um estudo sobre os índios ou caboclos de Olivença. Na época não havia um mapeamento que eu pudesse seguir, assim como um guião de quem eram os índios . O meu guião foi a persistência, dia após dia, de seguir as indicações da população que vivia na região - não apenas os índios, mas também os não índios e até os fazendeiros me sabiam dizer quem eram os índios.


Quantos eram?

Os órgãos competentes em censos realizaram um levantamento da população em 2004, chegando à conclusão de que existiam cerca de 3.500 índios a habitar naquele momento na região. Como muitos dos seus familiares, que se viram forçados a abandonar a região, poderiam voltar, estimou-se ainda nessa altura que a população possa ascender ao dobro ou até ao triplo.


Seu estudo foi fundamental para a criação da Terra indígena Tupinambá de Olivença. Fazendeiros do Sul da Bahia dizem, porém, que as pessoas que se declaram indígenas hoje o fazem apenas para obter o benefício de viver na terra indígena e que não seriam índios. Como a senhora vê essa questão?

É um argumento estritamente político, isto é, a parte contrária a um processo tenta defender-se acusando ou tentar retirar legitimidade ao adversário. Devo dizer que essa acusação é em absoluto espúria, pois já foi objeto de resposta formal/legal, mostrando não ter qualquer fundamento. Lembro que entre abril de 2009 e meados de 2010 decorreu um período legal de contestação ao processo de demarcação. Muitas destas são as mesmas pessoas que hoje tentam manter essa acusação, que nessa altura exerceram o seu direito cívico de contestar o processo, foram atendidas com respeito e dignidade e sabem que a questão não tem fundamento.


A senhora acredita que eles poderão retomar a vida dentro da Terra Indígena, como seus antepassados?

Desde 1988 que o Estado Brasileiro, com uma dignidade desde então citada e respeitada por órgãos internacionais, declarou não querer oprimir nenhum ser humano, esperando que ele se comporte como se vivesse noutro tempo histórico. Por isso todos esperamos que nenhum índio no Brasil volte a viver como os índios do século XVI! Seria uma terrível opressão termos essa expectativa. O que esperamos é que eles possam prosseguir o seu modo de vida tradicional que carateriza a sua "ocupação tradicional" da terra. O Estado brasileiro tem mecanismos próprios para salvaguardar a continuidade de modelos de vida dos índios em terras indígenas: por exemplo, não poderão nunca voltar ao princípio que rege a lógica capitalista sobre a terra. Como se sabe, a terra indígena é propriedade do Estado Federal e, ao aceitarem viver sob o regime da ocupação tradicional que rege uma Terra Indígena, os atuais Tupinambá de Olivença estão a seguir um rumo histórico que necessariamente os distingue - terão que continuar a encontrar modos de viver que implicam uma relação com a terra como não-mercadoria.



http://oglobo.globo.com/pais/esperamos-que-eles-possam-prosseguir-seu-modo-de-vida-tradicional-diz-antropologa-sobre-indios-do-sul-da-bahia-11645527
PIB:Leste

Áreas Protegidas Relacionadas

  • TI Tupinambá de Olivença
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.