Despertar nas crianças o interesse pela leitura e escrita. Com este objetivo, desde o início deste ano, o projeto de extensão Cofo da leitura e escrita é desenvolvido na escola indígena Waikarnãse, localizada na Aldeia Salto, no município de Tocantínia (TO) a 90 quilômetros da capital Palmas.
Na entrevista, a professoraMaria Aparecida da Rocha Medina, mais conhecida como Cidinha, conta ao (En)Cena sobre o despertar do projeto desenvolvido pelo Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA) e como são esses encontros com as crianças Xerente.
(En)Cena - Para entendermos, o que é o cofo? Por que o projeto tem esse nome?
Maria Aparecida - O Cofo é um artefato indígena, confeccionado com folhas de buriti. Ele é utilizado no transporte de mandioca, milho, banana e outros alimentos da roça para a aldeia. Quando cheio, passa-se a alça do cofo na testa é assim que é transportado.
Considerando o valor cultural e utilitário do cofo, colocamos o nome do projeto de "Cofo de leitura". Isso porque o cofo está sendo pouco utilizado, uma vez que a maneira dos indígenas não desenvolve mais as atividades tradicionais: plantar roça e transportar os alimentos. Muitos que antes viviam do cultivo da roça exercem funções que ocupam grande parte do tempo, como cargo de funcionários públicos, prestação de serviço em outras funções. Acabam por comprar grande parte dos alimentos consumidos na aldeia em supermercado das cidades de Tocantínia.
Entretanto, para ressignificar o sentido do cofo e a sua importância no contexto cultural do povo Xerente, pensou-se em colocar esse nome do projeto, atribuindo ao tradicional cofo o artefato de transportar livros. Durante o momento de leitura na aldeia, a professora enche o cofo de livros e passa entre as crianças para que elas escolham o livro que desejam ler.
(En)Cena - E por qual motivo escolheu-se trabalhar com as crianças Xerente da escola indígena Waikarnãse?
Maria Aparecida - Nos 18 anos que estou em Palmas, o primeiro povo que tive contato foi com os Xerente. Embora tenha admiração e carinho pelos demais povos: Karajá, Javaé, Krahô, Apinajé, Krahô kanela, por meio do trabalho no Magistério Indígena. Mas é com os Xerente que o contato é mais freqüente e a cada ano a nossa convivência se fortifica. Talvez seja por ser mais próximo a Palmas e a gente está sempre se encontrando. Seja em trabalho na aldeia com os alunos da Ulbra, seja em atividades culturais que venham desenvolver na universidade. Em nível de universidade, já são quase 10 anos de parceria. Nós levamos acadêmicos à aldeia, e de vez em quando, vem um professor indígena para vivenciar praticas didáticas e metodologias na universidade.
Além da estreita relação com o povo Xerente, por meio dos projetos e trabalhos acadêmicos, também passei um tempo na aldeia Salto Kripre, desenvolvendo minha pesquisa de mestrado. Esse contato mais direto de permanência convivendo com eles proporcionou-me rica experiência e grandes descobertas, antes eram apenas superficiais.
Durante a pesquisa com os professores e as observações em sala de aula, vi o desafio que é alfabetizar um Akwe, uma vez que as crianças são falantes da língua materna, portanto, alfabetizadas nas duas línguas.
A educação dos povos indígenas, tradicionalmente ágrafos era um atributo dos mais velhos que transmitiam os conhecimentos oralmente aos mais novos. Na cosmologia tradicional Xerente, segundo Medina (2013), ler era uma ação cotidiana de decifrar os sinais da natureza, o movimento das coisas e a relação destas com os espíritos protetores que os ajudavam a compreender ao menor sinal da natureza e interpretar os seus significados.
Com o acesso à sociedade ocidental e a intensa relação de contato fez-se adentrar a escrita e a leitura na cultura a partir da catequização, depois, como estratégia para dialogar com os brancos. E, atualmente, o acesso à leitura e a escrita são direitos garantidos da Constituição de 1988, por meio de uma educação diferenciada, bilíngue e intercultural.
A leitura e a escrita, como em todas as modalidades e níveis de ensino é essencial para o desenvolvimento de habilidades e competências na formação de leitores e escritores, bem como no exercício de cidadania. Dessa maneira, é um processo em construção.
Na escola Xerente, as crianças são alfabetizadas na língua materna. Só a partir do 3o ano inicia-se o processo de construção da letro- escrita da Língua Portuguesa, embora o contato com a 2ª língua é uma constante na aldeia. Ao acessar os textos da 2ª língua no livro didático, elas deparam com leituras extensas e descontextualizadas da realidade sociocultural, dificultando ainda mais a compreensão, conforme declarou um professor indígena durante a minha pesquisa.
Diante do exposto, uma maneira de contribuir com essa comunidade, a qual me acolheu e sempre está aberta às ações pedagógicas dos cursos de licenciaturas da ULBRA, foi desenvolver esse projeto em parceria com o cacique e diretor da escola e a e a equipe de professores. Sem eles é impossível alguém de fora desenvolver um projeto, principalmente quando se trata da leitura, considerando a língua e a cultura diferentes dos atores principais.
Segundo os PCNs (1998), a leitura tem como finalidade formar leitores competentes, capazes de compreender o mundo e descrevê-lo por meio da escrita, em diferentes contextos socioculturais, onde o uso do texto tem o seu significado. Na sociedade ocidental, historicamente letrada, o exercício da leitura e da escrita sempre foram vistos como atributos de poder da classe dominante. Enquanto o "outro" conformava-se apenas com a codificação das frias letras do seu nome, desenhadas para legitimar o poder dos dominadores por meio do voto. Para os indígenas, apropriar dessas habilidades é escrever a sua própria história.
(En)Cena - De quais formas o projeto alcançará o objetivo de desenvolver a habilidade da leitura e escrita nestas crianças? Quais são as metodologias utilizadas?
Maria Aparecida - Sabemos que é na relação com a comunidade social que a criança desenvolve as múltiplas linguagens: corporal, verbal oral e não verbal e a escrita. A linguagem corporal e verbal é bem aflorada nas crianças, o que facilita a escrita e a leitura. As crianças gostam de livros. Elas se encantam os livros, principalmente com relação às produções recentes de histórias e mitos na língua Akwen, escritos pelos próprios professores e lideranças Xerente. Essas produções estão inseridas na sala de aula e fazem parte do processo de formação de leitores.
Na 2ª fase do ensino fundamental são cobradas dos alunos a leitura e a escrita escolarizada. Como estes têm planos de prosseguirem os estudos, de certa maneira isso os estimula o envolvimento no projeto.
Por isso, acreditamos que esse projeto na escola indígena pode colaborar no desenvolvimento dessas competências, principalmente com as crianças do 4o e 5o anos, os quais são mais exigidos quanto a leitura, a compreensão e interpretação de textos nos anos seguintes. Nesse caso é necessário articular metodologias e técnicas de leitura, partindo da experiência e expectativa de mundo das crianças indígenas, envolvendo diferentes gêneros literários contextualizados, textos verbais e não verbais produzidos por eles próprios, pois a competência linguística e a prática discursiva se constroem produzindo e lendo textos significativos.
Nessa perspectiva inicialmente fizemos um diagnóstico para saber o nível de leitura e de escrita que se encontram os alunos da escola para assim, selecionarmos e confeccionarmos livros e histórias correspondentes a cada nível, sendo estimulados a potencializá-los gradativamente. Pretendemos, com isso, desenvolver uma prática que favoreça a reflexão crítica e a lógica do pensamento sistêmico das crianças, estabelecendo relações com as atividades culturais, os mitos, as histórias e crenças da cosmologia Xerente.
Para melhor dinamizar o trabalho, atendemos os alunos em horário contrário ao da aula. Os alunos do turno vespertino participam do turno matutino do Cofo de Leitura e os alunos da manhã, participam do no período vespertino. Há momentos em que se envolvem todos os alunos daquele turno, como também, momentos com atividades específicas aos alunos.
O trabalho consta da estimulada a oralidade com contação de histórias dos antepassados pelos pais e anciãos da comunidade. Algumas dessas histórias serão gravadas e transcritas na língua materna, o que vai depender da disponibilidade de tempo de algum professor para escrever em Akwen. Com isso, pretendemos manter a tradição de sentar-se nos terreiros para ouvir e contar histórias como acontecia até alguns anos, antes da chegada da televisão e demais tecnologias na aldeia, como lembra um professor.
Esperamos que as crianças da escola Waikarnãse, na aldeia Salto, envolvidas nesse projeto sejam despertadas para o prazer da leitura e da escrita, significando as histórias tradicionais e desenvolvendo competências que levem a mudanças sociais e intelectuais no processo de ensino e aprendizagem.
(En)Cena - Como têm sido o contato entre vocês? A escola recebeu bem o projeto e as práticas dele? Há alguma resistência?
Maria Aparecida - A minha relação com o diretor que é também cacique da aldeia e com os professores é boa, respeitosa. Com eles tenho aprendido muito. Inclusive a compreender e respeitar o tempo deles. Enquanto na nossa sociedade capitalista, a correria é desenfreada, na sociedade Akwe o tempo é vivenciado com qualidade, o suficiente para manter as relações comunitárias entre os clãs.
(En)Cena - Qual é a reação das crianças da escola Waikarnãse durante os encontros? Elas gostam das atividades do Cofo?
Maria Aparecida - As crianças Xerente são extremamente curiosas. Quando o carro do Cofo de Leitura chega à aldeia, elas saem correndo, carregando os irmãos menores. É aquela correria. Às vezes nem esperam organizar o cofo e o material do projeto. Elas pegam aleatoriamente os livros. E passam rapidamente as folhas, logo trocam e se deixar, passa todos os livros e gibis. Com jeito e ajuda de um professor que fala na língua, as crianças se acalmam e organizamos o trabalho que sempre inicia com uma leitura de história por professor ou ancião. Depois é que iniciamos com a leitura de contos, histórias, mitos. Ao final as crianças espontaneamente recontam a história do seu jeito.
(En)Cena - Por causa do projeto Cofo de Leitura e Escrita, o povo da Aldeia Salto vive novidades e novas práticas de leitura e escrita. Você acredita que esse projeto é também uma maneira de reforçar as tradições deste povo?
Maria Aparecida - Esse é um dos objetivos do Cofo: envolver a comunidade, e estamos trabalhando para que isso ocorra. Para tanto, foram distribuídos livros para as crianças lerem em casa com a família. O livro foi colocado em uma bolsa reciclada. Ela assinou uma ficha de locação do livro. O intuito é a criança ter esse contato individual e familiar por meio do livro. Assim conhecerá diferentes gêneros literários. E, posteriormente essa prática ajudará a crianças descobrir o gênero predileto é mais atrativo para sua leitura pessoal. No próximo encontro cada criança fará um comentário do livro que levou para casa. Vamos ver como será esse processo!
http://ulbra-to.br/encena/2014/05/23/Cofo-da-leitura-e-escrita-na-escola-indigena
PIB:Goiás/Maranhão/Tocantins
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