Ianomâmis: Festa de vida e morte na floresta

O Globo, País, p. 01; 12-15 - 29/06/2014
Ianomâmis: Festa de vida e morte na floresta
O rito fúnebre de um povo milenar, na iminência de uma nova corrida do ouro

Na divisa entre Amazonas e Roraima, sobreviventes de 13 tribos nômades vindas das montanhas celebraram, em março, o reahu, festa fúnebre de 15 dias em honra de um caçador. Documentado por Sebastião Salgado e Arnaldo Bloch, o rito, na aldeia Watoriki, descortina a espiritualidade e a simbiose dos ianomâmis com sua "terra-floresta". Donos da maior área demarcada do país - do tamanho de Portugal e rica em minérios -, seus 23 mil habitantes temem uma nova corrida do ouro no rastro de obras do governo e de projetos do Congresso que alteram a reserva.

Ianomâmis: a guerra de um povo entre a vida e a morte
O grito dos irredutíveis de Watoriki, microcosmo da maior área indígena do país, sob ameaça

Arnaldo Bloch e Sebastião Salgado

Março, 2014. Amazonas, divisa com Roraima, entre as bacias do Rio Negro e do Rio Branco. Ao entrar na casa-aldeia de Watoriki, convidados para testemunhar a festa fúnebre de reahu -, durante expedição às terras ianomâni organizada por Sebastião Salgado e acompanhada pelo GLOBO - somos saudados em coro.
- Awei napë pë kopema!
"Os brancos chegaram", traduz o lendário Davi Kopenawa, chefe da aldeia. Mas, no vernáculo, napë é um ser incorpóreo, oposto de yanomam (ser humano). Ou, nos relatos dos anciãos "espectros calvos esbranquiçados vindos das costas do céu e subindo os rios para comer carne humana defumada como carne de macaco".
Cansados de quatro horas num monomotor vindo de Manaus, fazemos a volta da maloca, saudando seus habitantes. Mas a marcha é refreada por uma visão: 60 cadáveres de macacos atados por cipó pendem em fogo baixo. De cócoras, os corpos familiares fazem pensar que os brancos poderiam estar ali: na trilha das missões e das comissões de limites, das estradas abertas pelo exército nos anos 1970 e da corrida do ouro na década seguinte, 80% dos ianomâmis morreram.
O pensamento sombrio é aplacado por sorrisos e mãos abertas dos mais velhos, nus; pelos meninos com pequenas flechas e os curumins carregados por jovens mães; pelo mirar tímido das mulheres de tanga, seios e nádegas à mostra; e pela cautela dos homens da nova geração, de bermudas (algumas com as cores do Brasil) e peito aberto pintado de jenipapo e carvão.
Os duzentos quilos de macacos são apenas parte do rito que viemos testemunhar e, neste primeiro dia de exéquias - em honra de um morto cujo nome não se pronuncia - o sol é refletido pela parede lisa e úmida da Serra Demini, visível de qualquer ponto dos 80 metros de diâmetro da maloca. Coberta de palha e folhas, com uma praça de terra batida ao ar livre, lembra um estádio. No centro, sob efeito da yakuana, pó marrom feito de ráspas de árvores que dá acesso aos espíritos (os ianomâmis são donos de vasta etnobotânica e um menu de plantas mágicas, médicas, letais, afrodisíacas), Genésio, membro da elite de pajés, solta gritos que imitam as vozes dos animais, faz poses que emulam fantasmas de árvores e gestos que repetem as coreografias dos espíritos protetores e dos maléficos. Com espanto, aponta para a serra Demini, onde reside o vento, ou para o céu, pedindo que o firmamento não caia sobre urihi-a, a "terra-floresta" criada a partir de matéria amorfa. Tragédia que passa facilmente do símbolo milenar à realidade, na interpretação de Davi, que observa a cena.
- A terra não morre. Só a gente. A terra só morre se o branco destruir. O chão fica frio, as árvores secam e as pedras esquentam. Os xapiripë, espíritos da serra, não podem mais dançar e vão embora. Os espíritos ruins reinam e todos morrem.
Registrada no livro "La chute du ciel" ("A queda do céu") escrito pelo antropólogo francês Bruce Albert (maior estudioso dos ianomâmi) em parceria com Davi, a ideia de queda, que faz pensar nos irredutíveis gauleses de Asterix, afina-se com o discurso ambientalista, cada vez mais convergente com a cosmologia indígena.
Sob o céu que anoitece, os brancos se deitam cedo, em redes, entre famílias e "parentes" convidados para a festa, e curtem o breu que, numa aldeia sem luz elétrica, é permeado por lanterninhas e pequenas fogueiras que vão amenizar o frio da madrugada amazônica. Logo começam os discursos em yanomae, sobre os fatos do dia, a festa e o surto de gripe que ameaça duas anciãs e três crianças com pneumonia. Espirros, tosses agudas e gemidos de dor se alternarão, noite adentro, com roncos sobressaltados dos idosos.
Quando o dia nasce, o povo da aldeia já partiu à caça e à coleta de pupunha para fazer o "mingau". Caçadores com arcos e flechas (e, raramente, espingarda) aventuram-se, usando as artes de imitar os animais, procurando seus alimentos típicos, seguindo seus rastros. Mais tarde chegarão com mutuns, e, nos dias seguintes, uma onça, um tatu, antas, porcões, cotias.
No posto da Funai, chefiado por Davi, enfermeiras e um médico cubano animados por um papagaio peripatético de asas cortadas que atende por Kiko (mas é fêmea), comunicam-se por rádio com a metrópole e outras comunidades. Parece que vai chegar remédio novo.
No fim da tarde, a pupunha macerada e misturada à água trazida pelas mulheres do igarapé onde todos se banham já fermenta em grandes galões. Nas franjas das telhas, secam os bijus de mandioca. Nesta madrugada, os brancos serão despertados por danças rituais, nas quais os homens e as mulheres marcham batendo os pés, em dezenas de voltas, enoando cantos polifônicos. Entre o fascínio e a insônia, os brancos experimentarão o banheiro reservado a eles. Contaminados pela alimentação da cidade e a corrupção da alma, os dejetos dos brancos são considerados impuros para a mata. Só à medida que a confiança mútua se estabelecer, os napë terão licença de usufruir das abluções in natura, segundo usos e costumes locais.
No dia seguinte o mingau de pupunha ligeiramente fermentado repousa numa grande arca. Em cuias de coco, os participantes da festa recolhem o vinho alaranjado e oferecem uns aos outros em grande quantidade, para regurgitar. Então, recomeçam a beber. O ciclo se repete até que a arca se esvazie. Cercado de grande hilaridade, é um tipo de guerra satírica, no qual uns "matam" os outros mas a morte nunca chega, já que vão dormir exaustos, e dançar na noite seguinte, e, ao amanhecer, correr, de novo, para a arca.
A negação da morte é levada a sério, e só com muito esforço é possível descobrir o que aconteceu - já que, pelas regras, falar do morto é proibido. Seus objetos foram queimados, seu nome é proscrito, os fatos da morte não interessam. Mas, com o passar dos dias, a história por trás do luto vai se desvelando, em relatos curtos e pequenas catarses. Irmão caçula de Raimundo, chefe de família, um dos líderes locais, o jovem caçador morreu depois de matar um mutum azul. Ao subir a árvore para recuperar sua flecha, caiu de costas. Mortes assim, na mitologia ianomâmi, só ocorrem quando se mata o seu duplo animal. Daí a importância e a grandeza da festa.
Envolto numa espécie de rede feita de folhas de bananeira, o corpo foi suspenso entre duas árvores próximas ao igarapé, e assim ficou até poder ser descarnado, e seus ossos foram queimados, e suas cinzas guardadas nas urnas que ora aguardam o desenrolar da festa, na maloca sob a serra, no mesmo local onde os 60 macacos são assados, dia e noite, em fumaça lenta e persistente.
Só no último dia o povo terá a liberdade do pranto. Antes, pajés e visitantes soprarão yakuana nas narinas. Alguns vão se unir em duplas e realizar o waymou, de diálogo arcaico, de metáforas entrelaçadas, em forma de desafio. No ápice da pajelança que envolve até crianças, estão todos atados ao que vem da montanha e do céu.
Então, os brancos são expulsos da maloca. As cinzas são enterradas ou guardadas por parentes.
E o pranto, ouvido do lado de fora, é tão intenso que parece que o céu caiu sobre a terra.

Expedição integrará novo livro de Sebastião Salgado

Organizada e liderada por Sebastião Salgado e acompanhada pelo GLOBO, a expedição ao território Ianomâmi em março último é parte de um projeto de fôlego que consiste em duas viagens por ano para documentar a vida e as lutas das principais etnias indígenas do Brasil. Editadas, as imagens recolhidas até o fim do ciclo deverão constituir a temática do seu próximo livro.
A expedição, da qual participaram também o assistente de Salgado e guia de montanhas Jacques Bartelemy, e o mateiro maranhense Agostinho de Carvalho, foi em duas partes: primeiro, 15 dias na aldeia Watoriki, divisa do Amazonas com Roraima, na segunda metade de março, quando se iniciava a importante festa fúnebre de reahu, que acontece no máximo uma vez por ano, na ocorrência de uma morte considerada não-usual, causada por um tipo de acidente místico. Repleta de simbolismos, a festa remete, à luz de nossos dias, à relação com os brancos.
A segunda fase da viagem foi uma aventura cuidadosamente planejada: a partir da aldeia de Maturacá, ao pé do Pico da Neblina (dividida entre a tradição e as tentações do garimpo ilegal, próxima a um pelotão de fronteira e catequizada por uma missão salesiana), reunir vinte guerreiros e xamãs para subir os 3 mil metros do ponto culminante do Brasil, montanha sagrada dos ianomâmis, castigada pela corrida do ouro e fechada à visitação.
A empreitada de Salgado iniciou-se ano passado, quando fotografou os índios isolados awás, do Maranhão, incursão relatada por Míriam Leitão, que acompanhou a viagem, em reportagem no GLOBO que terminou com a expulsão, pelo Exército e pela Funai, de madeireiros e fazendeiros que ocupavam suas terras.

A diáspora de 13 tribos nômades expulsas da montanha
Durante o funéreo do caçador, morte de um cão expõe crise de liderança

Cercada de floresta fechada, a casa tem quatro portas, que apontam para as trilhas, que levam ao igarapé - onde se toma o banho diário -; à área de caça além do horizonte; aos leitos para pesca (praticada por homens e mulheres com plantas venenosas que tiram dos peixes o oxigênio e os fazem se multiplicar às margens); e às roças onde cultivam suas raízes, frutas e ervas encantadas.
Pela porta que leva ao roçado chega-se à casa de Lourival, que vive em retiro. Maior autoridade espiritual da aldeia, patriarca dos ali chegados, ele não foi a Watoriki nenhuma vez nos dias em que durou a festa. Era visto frequentemente caminhando pelas trilhas com alguma raiz à mão, ou em visitas ao posto da Funai, em seu traje característico: completamente nu, só o cipozinho amarrado à glande, e uma cartola de pierrô decorada com tarjas verdes e amarelas.
O suposto motivo corria à boca miúda: semanas antes, o cão de caça de seu genro, o chefe Davi Kopenawa, teria sido morto a facadas por um dos filhos de Lourival. Os cães comuns não gozam de reputação entre os aldeões e parecem até ter consciência disso, pois apresentam-se diariamente, de forma voluntária, para levar saraivadas na cabeça e se alimentam de restos de pupunha e ossos. Um bom cão de caça, contudo, é altamente respeitado e sua morte equivale à de um "parente". A morte do cão de Davi tem, além disso, um agravante: remonta ao elo que permitiu a fundação de Watoriki, 25 anos atrás, como refúgio da diáspora de 13 tribos que viviam nas montanhas, dispersas pela expansão da fronteira branca e por conflitos com povos vizinhos (como os moxihatetea, até hoje isolados).
A articulação política fora arquitetada por Lourival e tivera Davi como pivô. Nascido nos anos 1950 no Alto Rio Toototobi (Amazonas) - a pouco mais de 300 quilômetros do leito do Uriracoera, onde, na ficção de Mário de Andrade, nasceu Macunaíma - Davi deixara suas terras após a morte da mãe, de um surto de sarampo trazido por missionários. Aprendeu português para ler a bíblia e acabou virando intérprete da Funai. Militava no Posto Demini, num acampamento abandonado da Camargo Corrêa, encarregada das obras da BR-120, a Perimetral Norte, interrompida depois de causar destruição e mortes (ainda se veem traços de tubulações e do chão tomado pela mata). A essa altura, o posto fazia manobras de atração. Líder de sua tribo, Lourival se deixou seduzir com intenção de encontrar uma brecha e ter acesso a medicamentos e a ferramentas.
Nos sonhos estranhos que Davi tinha, Lourival anteviu vocação xamanística e fez dele seu aprendiz, oferecendo-lhe uma das filhas em casamento. Como a relação sogro-genro é o suporte do modelo de autoridade ianomâmi, o casamento político esvaziou a força do chefe do posto, e Davi foi ao topo da administração regional. Numa cultura na qual o poder é compartilhado pelos chefes de família, em que crianças de cinco anos andam com facões sem serem incomodadas, não há ação coercitiva firme, a não ser quando algo extremamente grave ocorre. Não à toa, o suposto matador se encontrava em fuga na floresta.
Cada vez mais requisitado por compromissos fora da aldeia, Davi perdeu poder local nos últimos anos. No meio da festa, um avião veio apanhá-lo para ir a Manaus e, dali, partir numa viagem de várias escalas até São Francisco, Califórnia, onde iria discursar num fórum da ONU. As lideranças emergentes, da geração do meio, formada por gente que ora serve à Funai, ora a ONGS ou órgãos ligados à saúde indígena - ou se formam como professores na cidade - é uma horda dividida.
Anselmo, que vive a maior parte do ano em Boavista e veio para a festa, vai ao roçado, no importante momento de se colher a mandioca para a confecção do biju, munido de um aparelho de MP3 que toca remixes indígenas e interfere nos sons ritualizados da colheita.
- Estou confuso - confessa. - Mas tenho certeza que ainda farei muito por este povo.
Os mais jovens, garotada que vai à cidade de barco e volta com espelhinhos, gel e o cabelo penteado à Neymar, consideram a reles calabresa trazida pelos visitantes como ouro, metáfora involuntária dos minerais que os brancos arrancaram da terra e que são protegidos pelos espíritos, por não constituírem alimento.
Em meio à confusão, só no último dia da festa, Lourival, que durante todo o período não se deixara fotografar, enfim apareceu na maloca para chorar, com os seus, a morte do jovem caçador, irmão menor de seu afilhado, Raimundo, órfão de pai e mãe, mortos de doença de branco, no tempo em que as 13 tribos vieram da montanha...

Sinal de alerta: terras demarcadas na mira de Brasília

Desde o contato no fim do século XIX a população ianomâmi no país foi reduzida a 20%, segundo indigenistas e antropólogos, o Instituto Socioambiental (ISA) e a Frente de Proteção Ianomâmi, ligada à Funai. Hoje, são 23 mil, dos 40 mil no Brasil e na Venezuela - a maior população humana em alto grau de isolamento na mais extensa área indígena no planeta na floresta tropical.
O massacre também atingiu sua terra, riquíssima em reservas minerais, invadida, na década de 1980, pelo garimpo e por mineradoras, numa corrida do ouro estimulada pelo presidente da Funai à época, o hoje senador Romero Jucá (PMDB/RR). O número de garimpeiros chegou a ser cinco vezes o de ianomâmis. O reconhecimento, em 1992, dos 9,6 milhões de hectares, maior área demarcada do Brasil, de alta relevância para a proteção da biodiversidade amazônica, estancou a sangria.
Recentemente, com a alta de 100% no preço do metal, uma nova corrida se iniciou, mas o complexo foi desbaratado em operações da Funai com o Exército e a Polícia Militar, que retiraram 1.500 garimpeiros, explodiram 22 pistas e afundaram 84 balsas. Sucateada, com orçamento reduzido (R$ 566 milhões para as 692 TIs no Brasil, ou 13% do território nacional) e vítima de interferências de outros órgãos, a Funai resiste como pode.
Mas a grande ameaça vem de Brasília: com projetos de construção de grandes hidrelétricas e novas rodovias (como a Usina Jirau e o reasfaltamento da BR 319, de Porto Velho a Manaus), o governo pode vir a promover uma exploração recorde dos recursos naturais da Amazônia.
Paralelamente, 54,8% da superfície ianomâmi está requisitada por mineradoras, de olho no artigo 176 da Constituição, que libera a exploração com legislação específica. O que trouxe de volta o projeto de Lei 1610, proposto por Jucá em 1996, parado desde então após aprovação no Senado. Um substitutivo de 2012 em fase adiantada de tramitação tem por relator o deputado Édio Lopes, do mesmo PMDB/RR de Jucá, historicamente ligado ao garimpo.
A filha de Jucá é sócia majoritária da Boa Vista Mineração, que tem 90.000 hectares requeridos.
Além disso, tramita uma Proposta de Emenda à Constituição (a PEC 215), determinando a revisão das demarcações em aberto e das homologadas, o que vai contra a Constituição.
Por fim, o projeto do Novo Código de Mineração, de maioria ruralista, procura compensar as limitações impostas à contestada PL 1610 para incluir no documento as terras indígenas, o que é inconstitucional, segundo já afirmou e reiterou o ministério das Minas e Energia.

O Globo, 29/06/2014, País, O Globo, País, p. 01; 12-15

http://oglobo.globo.com/brasil/ianomamis-guerra-de-um-povo-entre-vida-a-morte-13067578

http://oglobo.globo.com/brasil/expedicao-ao-territorio-ianomami-integrara-novo-livro-de-sebastiao-salgado-13068198

http://oglobo.globo.com/brasil/a-diaspora-de-13-tribos-nomades-expulsas-da-montanha-13067654

http://oglobo.globo.com/brasil/sinal-de-alerta-terras-demarcadas-na-mira-de-brasilia-13067700
PIB:Roraima/Mata

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