Índia Yawanawá vence preconceito e faz revolução feminina na floresta

O Globo- http://oglobo.globo.com - 19/10/2014
A voz é mansa. O tom é baixo. A fala é pausada. Rucharlo Yawanawá, de 35 anos, conversa como se a tranquilidade a habitasse. Nunca encara o interlocutor nos olhos, não gesticula, não grita ou gargalha. Seus modos contrastam com a revolução que liderou em sua própria vida e na tribo Yawanawá. Em uma aldeia no meio da densa Floresta Amazônica e distante sete horas de barco do município acriano mais próximo, Rucharlo se tornou a primeira mulher pajé - líder espiritual - de seu povo e, talvez, do país. É um raríssimo caso de liderança espiritual indígena feminina no Brasil.

O xamã ou pajé é, ao lado do cacique, a maior autoridade de um grupo indígena. No caso dos Yawanawá, são eles os guardiões dos conhecimentos da tribo, desde a medicina até as artes. Acredita-se que tenham dons sobrenaturais - de adivinhação, de cura e até mesmo de matar inimigos telepaticamente. Fazem também a interlocução entre os vivos e os ancestrais. Segundo a sabedoria indígena, são os espíritos que ensinam ao pajé os segredos mágicos. Tais comunicações acontecem em rituais em que os líderes espirituais tomam ayahuasca (chamada por eles de uni) e inalam rapé (uma mistura de tabaco em pó e da casca moída de uma árvore amazônica chamada por eles de tsunu).

O efeito alucinógeno e estimulante das substâncias permitiria aos xamãs entrar no mundo dos mortos e nos sonhos das pessoas doentes. As doenças, segundo os Yawanawá, sempre têm explicação espiritual. E é o xamã quem descobre a causa do problema nessas incursões oníricas. Os pajés gozam de tanto respeito entre os Yawanawá que, com frequência, eles preferem fazer o tratamento religioso a recorrer à medicina convencional. Em caso de picada de jararaca, por exemplo, toda a família faz uma dieta, e a ferida é tratada com ervas, enquanto que, em hospitais convencionais, normalmente recorre-se à amputação do membro ferido. Dadas a escassez de recursos médicos e a distância entre a tribo e serviços hospitalares básicos, muitas vezes os ritos mágicos do pajé são a única opção.

PROCESSO AFUGENTOU OS HOMENS

Nesse contexto, é de se imaginar que muitos queiram se tornar pajés. Mas, além de vocação, o processo de formação de xamãs exige tantos sacrifícios e provações que, no começo dos anos 2000, a tribo enfrentou uma crise.

- Os pajés foram morrendo, e havia o risco de perdermos esse conhecimento. Os únicos que sobraram foram o Yawá e o Tatá - afirma Rucharlo, referindo-se a dois xamãs que, hoje, têm 102 e 97 anos, respectivamente.

O processo para se tornar líder espiritual é, assim como o uso da ayahuasca, milenar. Até 2005, era também exclusivamente masculino. Para que o conhecimento seja revelado, é preciso que o índio coma um tubérculo considerado sagrado (o mucá) e passe um ano isolado dentro da floresta, sem contato com ninguém além dos demais pajés. A dieta é rigorosa: ao longo de 12 meses, não se pode tomar água nem comer carne de grandes animais. A alimentação se restringe a pequenas quantidades de uma bebida de milho chamada caiçuma e de peixes menores do que a palma da mão, além de banana verde. O recluso não pode ter contato com alimento adocicado - nem mesmo frutas. Os aspirantes a pajé recebem doses diárias de ayahuasca e de rapé e têm que manter a pele coberta pela tinta preta extraída do jenipapo. Eventualmente, devem tomar pequenas quantidades da saliva de uma jiboia, considerada a dona da sabedoria entre os indígenas. São proibidos de ver ou mesmo ouvir a voz de filhos e companheiros. Sexo, nem pensar. De tão penoso, o processo afugentava os homens.

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- Vários deles já tinham tentado fazer a dieta e não tinham conseguido terminar. Por isso, quando Rucharlo resolveu se candidatar para a missão, esses homens se sentiram humilhados. O povo inteiro se revoltou, a vontade dela soava como um insulto para os espíritos dos velhos ancestrais. Nunca se havia visto nada parecido - afirma Júlia Yawanawá, irmã da agora pajé.

Até então, as mulheres eram proibidas até de se sentar ao lado das autoridades religiosas máximas, de tomar a ayahuasca, de participar dos rituais, de cantar as músicas tradicionais do povo.

- Havia muita resistência da tribo porque todo mundo tinha essa ideia de que a mulher não seria capaz de ser pajé - admite Shaneiru Yawanawá, filho do principal cacique Yawanawá.

Até então, a sina de Rucharlo era semelhante à de muitas mulheres da tribo. Casada aos 10 anos, aos 11 ela pariu o primeiro filho, com apenas sete meses de gestação, porque a barriga de criança não comportou o bebê até o fim. Mãe de família tão jovem, ela não pôde estudar. Relata que sofria espancamentos do marido com frequência. Mas ninguém na tribo intervinha diante das marcas arroxeadas no corpo e no rosto de Rucharlo:

- Quando resolvi fazer a dieta, meu marido disse que me largaria, mas para mim isso já não importava. Minha mãe ficou desesperada, achava que eu ia morrer. Os pajés riram de mim. Virei piada, mas fui em frente.

DESENHOS EXPOSTOS NO RIO E EM MINAS

No período da reclusão, começou a desenhar as revelações que recebia. Sem conhecer as letras, ela se fazia entender e registrava seu aprendizado por rabiscos. De tão bonitos, seus quadros já foram expostos em museus no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Com o tempo também descobriu que tinha o dom de "sentir o cheiro das doenças", como descreve - habilidade fundamental para qualquer curandeiro. Mas, no processo, também chegou muito perto da morte. Aos nove meses de isolamento, acabou sendo levada a um hospital em Rio Branco com anemia severa. Mal se levantava. Recusou-se a fazer qualquer tratamento:

- Eu tinha que provar que era capaz. Sabia que era minha missão colocar as mulheres em um novo patamar, eu tinha que resistir - afirma Rucharlo, que foi se recuperando aos poucos, com um reforço da alimentação na própria tribo.

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Depois que ela se formou, outras cinco mulheres passaram pelo ritual. Quando a reportagem do GLOBO visitou a aldeia, Mariazinha Yawanawá, de 45 anos, que já é cacique por lá, completava sete meses de reclusão no processo para se tornar também pajé. Suas bochechas macilentas e seu tom de pele pálido denunciavam o sacrifício do corpo. Ela perdera cerca de 20 quilos no período. E já sabia possuir o dom da premonição.

- No ritual, a gente sente falta das coisas mais básicas. Eu sinto muita falta de água. Ao mesmo tempo, não encontro barreiras para o conhecimento. O mundo todo é diferente depois da experiência - disse Mariazinha, em tom quase inaudível e ainda mais lento que o de Rucharlo, em uma entrevista breve e que teve que ser autorizada, segundo os índios, pelos espíritos.

Na crença indígena, pajés são seres evoluídos, a meio caminho entre os vivos e os mortos. Por isso falam vagarosamente e não encaram um olhar. Se o mundo de Rucharlo mudou depois de sua experiência, ela também mudou a tribo e o mundo das demais mulheres da aldeia.



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PIB:Acre

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