Decisão do STJ ameaça as garantias constitucionais dos direitos indígenas

Informativo NDI (Brasilia - DF) - 01/05/1993
Em recente decisão no Mandado de Segu­rança no 1.835-5, o STJ entendeu ser ilegal a decretação da interdição de área indígena pelo Ministro da Justiça na Portaria que declara como de posse permanente e usufruto exclusivo indígena determinado território. O MS foi impetrado pelas empresas usineiras Rio Vermelho Agropastoril Mercantil S/A, Destilaria Miriri S/A e Usina Cen­tral Nossa Senhora de Lourdes S/A, todas repre­sentadas pelo advogado Oscar Dias Correia, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e Ministro da Justiça durante o governo Sarney.
O objetivo do mandado de segurança é tornar insubsistente a Portaria do Ministério da Justiça que, em 1/6/92, declarou com o de posse perma­nente dos índios Potiguara aproximadamente 4.500 hectares da área indígena denominada Jacaré de São Domingos, localizada no Município de Rio Tinto, na Paraíba.
A decisão contradiz a jurisprudência predominante nos tribunais brasileiros, que afirma não ser o MS a via judicial adequada para discutir tais questões, as quais dependem de pro­dução e análise substancial de provas - o que só é possível por meio de um procedimento ordinário. Os ministros integrantes da 1ª Seção daquele Tri­bunal admitiram a documentação apresentada pe­las usineiras, na tentativa de demonstrar a sua posse sobre a área em questão, como prova preconstituída suficiente dos fatos e fundamentos por elas sustentados, contra os quais, na opinião dos ministros, não se insurgiram o Ministro da Justiça, sequer o Ministério Pública Federal. Isto porque, do processo administrativo de demarcação não participaram as empresas usineiras, não tendo sido levados em consideração os eventuais tíiulos, a despeito do 6o do Art. 231 da Constituição Federal, que estabelece a nulidade de pleno direito de todos eles.
A decisão é grave além de equivocada pois, embora partas da premissa de que na Constituição Federal "a propriedade privada distanciou-se do seu conceito tradicional... ficando excepcionado o direito adquirido do particular", termina por con­cluir que o Art. 231 da Constituição Federal pressupõe a verificação da ocupação tradicional pelos índios por meio de uma ação judicial demarcatória que, absurdamente, teria prazo de 5 anos nos moldes do Art. 67 das Disposições Cons­titucionais Transitórias, quando não de uma discriminatória para examinar a legitimidade dos títulos e "depois dizer se as terras pertencem aos particulares ou aos índios".
E em sendo assim, não poderia o Executivo interditar determinada área enquanto durasse a dis­cussão judicial sobre ela, tudo isso em nome da "paz social" já que os "princípios destinados aos relacionamentos com as nações indígenas" não po­dem ser entendidos de modo a "semear a discórdia ou o desajuste social ou, com o sacrifício da cida­dania, a duras lidas, semeada pela Constituição Fe­deral".

ALVO: A INTERDIÇÃO
O grande alvo da discussão durante o julga­mento foi, no entanto, o item da Portaria ministerial que se referia à interdição da Área Indígena Jacaré de São Domingos. Entenderam os ministros que interdição de área indígena só se justifica em cará­ter excepcional, não existindo base legal para a previsão do Decreto no 22/91, que a incorpora ao processo administrativo de demarcação. Neste sentido, afirmam que "os aspectos culturais e o re­conhecimento do direito dos índios à posse perma­nente das terras por eles habitadas" independem da proibição de acesso à área por terceiros.
Se, por um lado, os direitos indígenas não estão realmente condicionados a qualquer ato ad­ministrativo, posto que anteriores e originários conforme concebidos na Constituição, por outro, é claro que os doutos julgadores deixaram de considerar a obrigação também constitucional da União de proteger as terras indígenas, bem como de garantir aos índios o usufruto exclusivo dos re­cursos naturais nelas existentes.


INTERDIÇÃO DISTORCIDA
Desses conceitos decorre, obviamente, a ne­cessidade de proibir o ingresso, o trânsito e a per­manência de terceiros não-autorizados nas áreas declaradas com o de posse permanente de determi­nada comunidade indígena, sem o que não é possí­vel proteger ou garantir exclusividade. Tal proi­bição nada mais é, na prática, que a tão com batida Interdição que, portanto, advém do próprio dispo­sitivo constitucional - só não vê quem não quer.
as considerações dos ministros prosseguem durante o julgamento do MS, não se sabe se por engano ou erro consciente, interpretando de ma­neira absurda e única os dispositivos constitu­cionais e fazendo letra morta dos maiores avanços alcançados pelo constituinte de 1988.
O que dizer, por exemplo, da afirmativa de que "em face da garantia do direito de propriedade - o qual, por sua vez, é uma garantia da Cons­tituição - não poderia... a FUNAI levantar dados e o Sr. Ministro declarar, desde logo, como terra tra­dicionalmente ocupada pelo índios" determinado território? E do comentário de que é nisso "que consiste... o arbítrio do Sr. Ministro da Justiça ao declarar, de pronto, numa Portaria, que toda essa documentação (referindo-se aos títulos apresenta­dos pelas usineiras), legitimamente registrada em cartório, até prova em contrário, não tem nenhum valor jurídico. A constituição garante esse direito de propriedade até prova em contrário"?

INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
Ora, trata-se aqui de inversão total do ônus da prova, despejando sobre os índios a obrigação de provar que Já estavam antes dos usineiros, fa­zendeiros, madeireiros, garimpeiros e quem mais se dispuser a usurpar-lhes os direitos. É temerário perceber que os ilustres ministros resolveram ignorar a garantia constitucional expressa quanto aos direitos originários dos índios às suas terras, colocando em risco todo o processo de demarcação no país, consolidado a custa de imensos esforços nos últimos quatro anos.
O Ministério Público Federal já apresentou imbargos de Declaração ao STJ, a fim de esclare­cer o que considera serem pontos obscuros na de­cisão proferida pelos ministros. Prepara também um Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal já que tal decisão fere matéria constitucio­nal e, por isso, precisa ser revista.
Esperamos que o STJ, corte encarregada da guarda de nossa Constituição em última instância, mantendo-se inclusive fiel aos seu próprio enten­dimento jurisprudencial, reforme totalmente a de­cisão em questão, reconhecendo os direitos indí­genas e a legalidade do ato do Ministro da Justiça, para remeter às vias ordinárias todas as demais questões.
PIB:Nordeste

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