A suspensão de liminar e os direitos fundamentais

Valor Econômico, Opinião, p. A10 - 13/01/2015
A suspensão de liminar e os direitos fundamentais
Instituto serve a empreendimentos que violam direitos de povos indígenas e populações tradicionais

Por Felipe Bogado Leite e Leandro Mitidieri Figueiredo

Há um ano caía mais uma medida liminar que impedia o prosseguimento da construção de uma hidrelétrica na Amazônia Legal. Dessa vez, além do impacto ambiental, da ausência de participação da população afetada e da não realização de consulta às comunidades tradicionais atingidas, outro fundamento da medida liminar derrubada chamava a atenção: a inexistência do devido estudo do componente indígena, tendo em conta a presença de índios isolados na área impactada pela hidrelétrica a ser construída na bacia do rio Teles Pires, na divisa entre Mato Grosso e Pará.
A notícia parece um déjà vu de várias outras que pululam os jornais, mas é de se notar um fenômeno muito grave que vem cada vez mais se consagrando em nosso sistema judiciário, que é a utilização indiscriminada do instrumento da suspensão de liminar, por meio do qual os presidentes de tribunais suspendem medidas liminares concedidas por juízes constitucionalmente competentes sobre a causa e mais próximos dos fatos.
Longe de ser usada excepcionalmente, a suspensão de liminar vem sendo o principal instrumento para o governo implantar sua política desenvolvimentista de grandes empreendimentos, todos altamente questionados por serem executados com violação de direitos fundamentais. Nos últimos anos o governo fez prevalecer seus projetos fazendo uso desse instrumento extraordinário em pelo menos 10 demandas, só envolvendo grandes empreendimentos na Amazônia Legal. Tal ocorre de forma tão sistemática que já há uma assessoria da Advocacia-Geral da União junto aos tribunais, só para despachar suspensões de liminar e os principais empreendimentos do país somente vão adiante, apesar de inúmeras irregularidades, graças ao instituto.
Mas as demandas às vezes seguem seu devido processo, com a interposição dos recursos tradicionais, julgados pelos órgãos naturais, sem serem objeto de suspensões de liminar. Exemplo disso é a confirmação da multa diária de R$ 500 mil à empresa Norte Energia S.A., por descumprimento de um acordo firmado com indígenas e ribeirinhos, sobre as compensações relativas à construção da hidrelétrica de Belo Monte. Ou a determinação recente, no dia 16 de dezembro de 2013, relativa também a Belo Monte, para que cumpra as obrigações constantes das condicionantes da licença ambiental prévia, impedindo o Ibama de emitir licença de instalação e o BNDES de liberar qualquer recurso financeiro enquanto tais condicionantes não forem integralmente cumpridas.
Mas quando se elege a via de exceção do pedido de suspensão de liminar, a história é outra e as decisões obstaculizando os grandes empreendimentos caem com grande facilidade. Isso talvez porque, como expressamente consignado na jurisprudência dos tribunais, basta a alegação de que a decisão tenha aptidão para causar lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas para a suspensão ser concedida, sendo os eventuais erros de mérito, em suposta ofensa à ordem jurídica, resolvidos nas vias recursais ordinárias, no plano do juízo natural.
E os casos demonstram que o ente público sequer precisa fazer prova do prejuízo que está alegando: basta que argumente que há tal prejuízo, qualquer que seja a natureza, dentro daquele genérico rol elencado na lei, que poderá haver a suspensão, já que há a presunção de legalidade e veracidade de suas assertivas.
Assim, quando o pedido de suspensão de liminar é feito para assegurar o planejamento e o cronograma do setor elétrico, impressiona a celeridade com que ele é apreciado e, via de regra, deferido. Exemplo disso foi o caso de uma liminar postulada pelo MPF deferida por um juiz federal de Mato Grosso, no dia 26 de setembro de 2013, e no mesmo dia, poucas horas depois, o vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no exercício da presidência, deferiu o pedido para suspendê-la.
Já quando se postula a suspensão de liminar para garantir, por exemplo, o direito reconhecido dos povos indígenas à preservação de sua cultura e tradições históricas ou, quando menos, ao direito de se verem consultados sobre empreendimentos que possam lhes afetar, a mesma sorte não acompanha os precedentes. Exemplo é o pedido de suspensão feito pelo Procurador Geral da República ao Presidente do Supremo Tribunal Federal contra decisão do TRF1. O pedido em favor do povo indígena denominado Isolado Apiaká, passados quase 5 meses, ainda não foi apreciado.
E não é só a discrepância na celeridade dos pedidos que chama a atenção. O próprio instituto, da forma como hoje é admitido, causa perplexidades. Talvez a maior delas esteja no fato de que a suspensão, quando deferida, prevalece até o trânsito em julgado da ação correspondente. É possível, assim, que uma decisão de suspensão proferida monocraticamente pelo presidente de um Tribunal se sobreponha a decisões de mérito de órgãos colegiados do próprio Tribunal e até mesmo dos Tribunais Superiores.
As razões e os argumentos para se sustentar a inconstitucionalidade do instituto são inúmeras. Mas, ainda que não o fossem, bastaria visualizar o histórico de seu manejo para se perceber que ele tem servido a possibilitar a continuidade de empreendimentos que violam direitos fundamentais de povos indígenas e populações tradicionais, além de vulnerar o meio ambiente.

Felipe Almeida Bogado Leite e Leandro Mitidieri Figueiredo são Procuradores da República

Valor Econômico, 13/01/2015, Opinião, p. A10

http://www.valor.com.br/opiniao/3856682/suspensao-de-liminar-e-os-direitos-fundamentais
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