Acampamento Guarani-Caiová é atacado a tiros no Mato Grosso do Sul
Ministério Público Federal investiga a formação de milícias particulares pelos fazendeiros no Estado. No sábado (29), um índio morreu durante confronto com proprietários rurais
RAFAEL CISCATI
04/09/2015 - 19h42 - Atualizado 04/09/2015 20h35
Um acampamento indígena Guarani-Caiová foi atacado por homens armados na noite de quinta-feira (3). O ataque aconteceu na Terra Indígena (TI) Panambi- Lagoa Rica, próximo ao município de Douradina, no Mato Grosso do Sul. Segundo informações do Comitê Indigenista Missionário (CIMI), instituição de defesa dos direitos dos índios que atua na região, um grupo de homens armados abriu fogo contra o acampamento, que abrigava cerca de 100 pessoas - crianças e adolescentes entre elas. Para se proteger, elas deixaram as barracas onde estavam e se esconderam no matagal.
Segundo o CIMI, os índios notificaram a Funai logo que perceberam a aproximação de caminhonetes e homens armados.
A Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica é um dos focos de conflito entre fazendeiros e indígenas no Mato Grosso do Sul. Apesar de reconhecida como TI, a região ainda não foi demarcada - sua extensão não foi delimitada e nem foi liberada para ocupação dos índios. O processo se arrasta há anos. Situações semelhantes se repetem em outros pontos do Estado, onde a demarcação das terras indígenas não avança. Ante a morosidade do governo, alguns grupos de Guaranis-Caiová invadiram fazendas nessas áreas: "Os indígenas já não têm paciência para esperar o governo estabelecer um diálogo que não é efetivo", diz Flávio Machado, do CIMI de Mato Grosso do Sul. Os fazendeiros responderam com armas.
O conflito ocorreu um dia depois de o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, se reunir com fazendeiros e indígenas em Campo Grande, para discutir soluções para os conflitos fundiários.
No sábado (29), outro confronto entre fazendeiros e índios culminou na morte de uma liderança indígena. Simião Vilhal Guarani-Caiová morreu com um tiro na cabeça no território indígena Ñande Ru Marangatu, município de Antônio João, próximo à fronteira com o Paraguai. Vilhal foi baleado perto de um rio, enquanto procurava pelo filho pequeno e a mulher, que haviam se perdido dele durante a confusão. No confronto, um bebê de 1 ano sofreu ferimentos de bala de borracha nas costas e na nuca. A morte violenta de Vilhal foi condenada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, que criticou a demora do governo em demarcar as terras indígenas da região.
Os índios se queixam da ação do Estado que, segundo eles, não lhes oferece proteção suficiente. Dizem que a Força Nacional, enviada para a área de conflitos, é omissa, e protege mais os fazendeiros que as populações tradicionais: "No dia do ataque, nós fomos avisar a Força Nacional que um índio tinha sido baleado", diz Joel, liderança indígena Guarani-Caiová que presenciou o conflito. "Eles não acreditaram. Dissemos que alguém precisava de ajuda. Quando chegamos à beira do rio, o companheiro Simião já tinha morrido." Joel conta que, no sábado (29), a Força Nacional chegou ao acampamento com o ataque já em andamento.
Em Antônio João, os fazendeiros tentam acuar os Guarani-Caiová de diferentes maneiras: "Nós não conseguimos mais comprar comida nas vendas. A população tem medo dos fazendeiros, então não vende para a gente", diz Joel. "A ideia dos fazendeiros é nos isolar." Segundo ele, a presença da Força Nacional tornou o ambiente mais calmo. Mesmo assim, ele continua inseguro: enquanto falava com ÉPOCA, por telefone, um helicóptero sobrevoava o acampamento onde estava. Foi e voltou algumas vezes. Joel ficou apreensivo: "Não tem o emblema do exército nem da polícia. Deve ser um helicóptero de um dos fazendeiros".
O MICI, em seu site, diz que as forças de segurança haviam sido avisadas da iminência do ataque do dia 29 antes de ele acontecer - mais cedo naquele sábado, uma reunião do Sindicato Rural de Antônio João fora encerrada rapidamente. A presidente da associação, a fazendeira Roseli Maria Ruiz, deixou a reunião logo no início, segundo a imprensa local, dizendo que ia voltar a sua fazenda, pois sabia que ela seria invadida. O deputado federal Luiz Henrique Mandetta (DEM) estava presente à reunião. Em depoimento em seu site, Madetta diz que Roseli tomou o microfone para convocar fazendeiros e pequenos produtores rurais a resistir contra as invasões indígenas. "Ao final de sua fala, ela desafiou a todos presentes a acompanhá-la, dizendo que iria entrar na fazenda de qualquer maneira", diz Mandetta em seu site. O CIMI diz que Roseli "proferiu uma ordem de ataque".
Roseli nega essa versão da história. Segundo ela, durante a reunião, apenas disse que não ficaria para debater porque fora avisada de que sua fazenda seria invadida: "São 17 anos que vivo esse conflito aqui. Eu apenas disse: cansei, estou indo para a minha casa. Entrei na minha caminhonete e, sem que eu chamasse, outras pessoas vieram atrás", diz Roseli. Vilhalva morreu na fazenda Fronteira, de propriedade do cunhado de Roseli e separada da fazenda dela por uma ponte. "Naquele dia, eu fui acompanhada por muitos casais. Se esses homens estivessem armados, como foi dito, você acha que eles levariam as mulheres para o conflito?", diz ela. Roseli diz que é antropóloga e afirma que manteve, ao longo dos anos, diversos projetos com as populações indígenas.
O Ministério Público Federal instaurou inquérito para investigar a formação de milícias particulares por fazendeiros . A motivação para a investigação foi uma mensagem de Whatsapp enviada por Luís Otavio Britto Fernandes, presidente do Sindicato Rural de Rio Brilhante. Pelo aplicativo, Fernandes convocava fazendeiros da região a se unir contra os indígenas.
Os conflitos entre indígenas e produtores rurais no Mato Grosso do Sul ocorrem há anos, resultado de um problema criado, em parte, pelo próprio governo brasileiro. Ao longo do final do século XIX e início do século XX, os governos federal e estadual conferiram títulos de posses daquelas terras, tradicionalmente ocupadas por povos indígenas, a proprietários rurais. "E esses grupos indígenas, que viviam ali, foram removidos para dar espaço para a colonização", diz Márcio Santilli, do Instituto Socioambiental (ISA). "O problema, no Mato Grosso do Sul, não tem relação com grilagem de terras." Esse problema, criado pelo Estado, torna a demarcação de Terras Indígenas no Mato Grosso do Sul mais demorada e custosa. Muitos proprietários de terra são receptivos à ideia de ser indenizados para deixar suas propriedades. "Mas o governo tem de pagar primeiro. Ninguém vai entregar a fazenda com base em uma promessa", diz Roseli, de Antônio João. Isso é caro.
A maioria dos Guarani- Caiová foi arrastada para reservas no sul do Estado, onde tiveram de dividir a terra com outros grupos indígenas. O território destinado a eles era insuficiente para que esse povo sustentasse seus hábitos e cultura - ou mesmo sobrevivesse, como ÉPOCA contou em reportagem de 2011. Santilli diz que, de saída, pesou contra os Guarani-Caiová o preconceito histórico do governo: "Depois da Guerra do Paraquai (terminada em 1870), eles passaram a ser associados aos inimigos, aos paraguaios". Foram preteridos. O resultado é que, por essa sucessão de erros, os Guarani-Caiová se tornaram o povo indígena com menos terra no Brasil - apesar de ser a população indígena mais numerosa. Ao longo dos anos, tentaram retomar seus territórios originais.
O processo de demarcação, diz Santilli, ficou ainda mais lento nos últimos cinco anos: "O governo Dilma puxou o freio de mão quando o assunto é destinação de terras para finalidades sócio-ambientais", afirma. A solução demora a chegar e os conflitos se sucedem, ano a ano. Persiste também o débito do Estado brasileiro com essa população: "Há motivos, passados, presentes e futuros para que essa questão seja tratada como uma prioridade pelo Estado Brasileiro".
http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/09/fazendeiros-abrem-fogo-contra-acampamento-indigena-no-mato-grosso-do-sul.html
PIB:Mato Grosso do Sul
Áreas Protegidas Relacionadas
- TI Panambi - Lagoa Rica
- TI Ñande Ru Marangatu
As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.