Valor Econômico, Brasil, p. A4 - 29/09/2015
Especialistas apontam falhas em estudo ambiental do Tapajós
Por Daniel Rittner e Rafael Bitencourt
Karosakaybu, um ancestral do povo indígena munduruku, usou seus poderes sobrenaturais para erguer colinas íngremes no meio da floresta quando ouviu os gritos do filho sendo levado da aldeia por porcos-domato.
Em seguida, criou o rio Tapajós, jogando na terra quatro sementes de tucumã, o que explica como suas águas são doces.
Os animais conseguiram superar as duas barreiras. Jogaram uma corda com um gancho enorme para a outra margem do rio e trouxeram-na para perto de si. Esse movimento criou o "Fecho do Tapajós", também conhecido como "Travessia dos Porcos", local sagrado para os índios.
A lenda diz que o filho de Karosakaybu nunca mais pôde ser visto. Agora, o local da travessia está ameaçado pela construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós (PA), megaempreendimento com 8.040 megawatts (MW) de potência que o governo pretende leiloar em 2016. Para isso, um estudo de impacto ambiental (EIA-Rima) foi apresentado ao Ibama, que analisa a viabilidade ambiental da usina.
O problema é que o EIA-Rima, segundo um extenso relatório que será apresentado hoje em Brasília, tem uma enxurrada de fragilidades: metodologias inadequadas ou obsoletas, omissão de informações importantes para avaliar os impactos do projeto, programas ambientais insuficientes como ações mitigadoras e compensatórias, conclusões sem fundamentação científica.
"Ambos os documentos [o EIA e o Rima] devem ser rejeitados pelo órgão licenciador, pois não cumprem com o papel previsto no processo de licenciamento de uma obra com a relevância técnica, política, econômica e ambiental da usina hidrelétrica São Luiz do Tapajós", concluem nove pesquisadores independentes, que se dedicaram a uma avaliação técnica dos estudos oficiais. São especialistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), do Museu Paraense Emílio Goeldi e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O relatório foi financiado e organizado pelo Greenpeace.
Na avaliação dos pesquisadores, o EIA começa com vícios de origem, endossando um dos esquemas "mais notórios" de grilagem na Amazônia. Para facilitar um eventual processo de desapropriação e evitar o remanejamento de comunidades atingidas, uma área com mais de um milhão de hectares é considerada como propriedade de uma madeireira da região, apesar de decisão judicial que deu ganho de causa aos ribeirinhos. Também recorre a uma lei sancionada durante o regime militar para justificar a remoção de três aldeias mundurukus que ocupam o futuro reservatório.
Os pesquisadores apontam fragilidades nos inventários da ictiofauna (peixes), de invertebrados, e da flora.
Muitos têm diversidade subestimada e amostras insuficientes. Espécies ou famílias de animais correm o risco de desaparecer sem sequer terem sido reconhecidas e catalogadas no meio científico. O estudo também ignora a construção de outras usinas, como parte de um complexo hidrelétrico no Tapajós, bem como os planos do governo de fazer uma hidrovia. "Há uma tendência a minimizar ou ignorar impactos significativos", diz Philip Fearnside, do Inpa, co-autor do relatório.
Sobram críticas ainda ao Rima, uma versão simplificada e em linguagem coloquial do estudo de impacto ambiental, cujo propósito é permitir a discussão do assunto por quem não é especialista. "Pode-se considerar o Rima como peça de marketing que falha em informar à sociedade, de maneira objetiva, a respeito das consequências da obra, minimizando os impactos previstos", diz o relatório. Um exemplo foi destacado: na parte que trata das espécies ameaçadas ou encontradas somente naquela região, todas as informações relevantes contidas em 100 páginas do EIA são dramaticamente resumidas e transformam-se em 82 palavras no Rima.
Para o procurador Luís de Camões Boaventura, do Ministério Público Federal (MPF) no Pará, o relatório organizado serve como um contraponto importante aos estudos oficiais e pode ser aproveitado como subsídio técnico para eventuais ações na Justiça. "Faremos uma avaliação criteriosa, mas com certeza aproveitaremos esse material, que foi preparado por pesquisadores com expertise e merecedores de nossa confiança."
O Grupo de Estudos Tapajós, consórcio de nove empresas responsável pela elaboração do EIA-Rima, afirmou que não teve acesso ao relatório. Por isso, preferiu não fazer comentários específicos, mas lembrou que vem realizando reuniões com o Ibama para "aprofundar" 180 itens apontados pelo órgão ambiental e que busca tornar os estudos "um marco de referência na região".
Valor Econômico, 29/09/2015, Brasil, p. A4
http://www.valor.com.br/brasil/4246690/especialistas-apontam-falhas-em-estudo-ambiental-do-tapajos
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