Espíritos dos rios, serras e matas: a imaterialidade dos Paresi e o turismo em Mato Grosso

Olhar Direto - http://www.olhardireto.com.br - 06/04/2016
Sob o sol aceso, um ronco da terra abre por força a rocha da ponte de pedra. Aos respingos do rio do sangue, acompanhado por flautas sagradas, dança o primeiro halíti: é Wazáre. Por impulso natural, escapa da mesma fenda um pássaro pequeno que anseia voar, mas logo retorna ao subterrâneo, contando sobre a superfície. Convencidos pela surpresa, Kamazo, Zakálo, Zalóya, Zaolore, Kóno, Tahóe, Kamaihiye acompanham o irmão no novo mundo, protegendo os olhos da luz. Assim nasceram os Paresi (halíti), dando significado aos rios, serras e matas.

Descendente do mito, há cinco anos Roni Azoynaice tornou-se cacique na aldeia que carrega o nome do primeiro: Wazáre. Distante 65 Km de Campo Novo do Parecis, 33 pessoas vivem às margens do Rio Verde, um caminho líquido."A natureza significa tudo para nos mantermos como vida. No momento que a questão espiritual está na natureza, surge a fé. Existe uma relação de respeito. Todos os elementos, a água, as aves, a mata, tudo tem um espírito", explicou o índio de corpo largo e longos cabelos negros.

Respeitado por todos como líder, é tarefa de Roni manter a plenitude imaterial dos Paresi com a natureza. Vinco maior de identidade. Cercado por plantações de soja e milho, o cacique escapa da perversa mão dos produtores buscando, pelo etnoturismo, sobreviver no local em que as máquinas pesadas arranham o solo.

Justamente na comunhão entre a imaterialidade espiritual e a natureza física das coisas parece surgir a essência dos Paresi. Se adotada uma visão estritamente biológica, esperar-vos-eis que as primeiras experiências humanas lidem exclusivamente com o mundo externo. Os halítis, porém, possuem um certo "conheça a ti mesmo" nascido em fase anterior aos gregos. Coisa esperada somente dos homens que surgiram do subterrâneo.

Além dos primeiros passos culturais implicados em uma espécie de adaptação mental ao ambiente imediato - questão de utilidade para sobrevivência -, os Paresi carregam como uma membrana interior, algo gasoso convertido em matéria introvertida. Talvez seja a essência da lua no próprio corpo, ou então apenas o suporte em carne de todo o espírito mundano.

Diferente dos "brancos" (chamados de Imóte), o que existe de ceticismo não se transforma em justificativa de uma pretendida superioridade. A dialética presente em um filho de Wazáre parece querer responder primeiro ao conflito entre corpo e correnteza do rio, fome e necessidade da caça, ou mesmo ao simples intuito de compreender o motivo do preconceito sofrido: hoje, grupos que totalizam aproximadamente 1.900 Paresi vivem marginalizados em Terras Indígenas divididas entre Mato Grosso e Rondônia.

Em solo mato-grossense, um dos que ainda restam é o cacique Narciso Kazaizase, 85 anos, líder da aldeia Quatro Cachoeiras, distante 33 Km de Campo Novo do Parecis. Em 1954 Narciso abandonou seu internato nas Missões Jesuíticas para formar a Aldeia Seringal, mudando posteriormente para o local onde vive hoje. "Antes trabalhávamos extraindo borracha", comentou o velho de postura embotada pela idade.

O nome "Quatro Cachoeiras" foi escolhido em respeito às quatro quedas formadas pelo rio Sacre, localizado na Terra Indígena Utiariti. Entre crianças e idosos, cerca de 90 pessoas convivem no mesmo espaço, trabalhando de forma artesanal na criação de coloridos cocares de penas de arara, cestos, peneiras, arcos e flechas. A comercialização dos objetos e a visitação turística formam a principal fonte de renda da aldeia.

Brincando entre os menores, Daivid, com seus 9 anos, destacava-se pelo rosto sério, ao mesmo tempo vergonhoso, mas sempre calado: entre os novos halítis o português é vencido pelo aruak. No mesmo rio das quatro quedas, um grupo de jovens saltava de árvores secas imitando galhos caindo violentamente no quebrado espelho da água. O medo do fluxo pulsante é algo inexistente entre as crianças.

Além dos galhos-meninos, a integração entre os aspectos físicos e o imaterial pode ser exemplificada pela própria morada dos Paresi. A aldeia é uma unidade social muito significativa. Seus habitantes formam um grupo social específico, cujas relações são marcadas pela solidariedade. Em geral uma aldeia tem uma ou duas casas comunais (háti) e uma pequena casa, onde são guardadas as flautas sagradas (Yámaka), as mesmas usadas por Wazáre enquanto, no princípio, dançava na superfície.

O plano ideal consiste em duas háti situadas na extremidade do pátio da aldeia (watéko), em relação de oposição. Estas têm o formato elíptico, com duas portas nas extremidades: uma voltada para o nascente e outra para o poente. Nas "casas", as meninas púberes ficam em reclusão, prepara-se a comida, têm-se relações sexuais, nascem os filhos e enterram-se os mortos.

Com uma forma de organização semelhante, a mais importante aldeia Paresi, do ponto de vista mítico, recebe o nome de aldeia Utiariti (o mesmo da Terra Indígena), distante 96 Km de Campo Novo do Parecis. Para os índios, os Utyia, viventes do lugar, possuem a capacidade de prever o futuro, rompendo com o tempo. A lenda versa sobre uma morada, espécie de templo sagrado atrás da queda d'água com 98 metros no rio Papagaio. Lugar dos sábios.

Os primeiros contatos registrados dos Paresi com não índios datam do século XVII. A época é dos bandeirantes exploradores. Em momento posterior, Rondon, hoje tido como herói, estreitou laços com os halítis. Atualmente, para visitar qualquer aldeia, torna-se necessário contatar a FUNAI, buscando autorização.

A secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Campo Novo do Parecis, fomentando visitações, também pode ser procurada pelos que pretendem aventura. Ao redor do município, distante 440 Km de Cuiabá, além do etnoturismo, é possível praticar canoagem, mergulho, ciclo turismo, expedições em veículos, rafting e rapel.

Ainda sobre a grande cachoeira Utiariti, no rio Papagaio, em respeito ao sagrado, no primeiro contato de um Paresi com a queda d'água é preciso manter os olhos fechados até que os ouvidos se acostumem com o som natural. A possível pressa de ver, caso acatada, causará cegueira em algum momento antes da morte.

Aos futuros visitantes, mesmo os mais brancos, mantenham o respeito.



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PIB:Oeste do Mato Grosso

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