Sobre o desafio de existir como Kaiowá no MS

Combate Racismo Ambiental- http://racismoambiental.net.br - 15/06/2016
Outra vez as famílias Kaiowa e Guarani mobilizadas para reaverem seus territórios de habitação tradicional, estão sob a mira do agronegócio e da impunidade. Desta vez, ocorreu mais um ataque contra os indígenas na retomada Toro Paso (localizada no interior da Fazenda Yvy, de propriedade da família de um dos fundadores da Federação dos Agricultores do MS) onde entraram recentemente, na madrugada do dia 13/06/2016, que deixou muitas pessoas feridas, algumas ainda hospitalizadas em estado grave e uma morte.

Esta região está no perímetro identificado como terra indígena, de acordo com a finalização relatório circunstanciado de identificação e demarcação dos estudos antropológicos do GT Dourados-Amambaipegua conforme declarado pelo procedimento administrativo da Presidência da FUNAI publicado no Diário Oficial da União em 13/05/2016. A área do ataque dos ruralistas é próxima à Terra Indígena Caarapó (Aldeia Te´ýikuê), no município de Caarapó - MS.

Acompanho os embates e o aumento crescente da violência por conhecer bem a região, nasci na cidade de Caarapó e desde 2004 venho atuando em diversas atividades de pesquisa, assessoramento e participando da política junto aos Kaiowa e Guarani da região, onde me encontro finalizando minha pesquisa de campo para o doutorado. Minha pesquisa de mestrado foi feita em Te'ýikue, conheço as pessoas que foram baleadas e o Clodione, agente de saúde assassinado pelos ruralistas, filho de um bom amigo, interlocutor da pesquisa e liderança da aldeia.

Falei com a tia dele ontem ao telefone, que viu tudo, quem atirou em seus dois sobrinhos. Um morreu assassinado covardemente pelo agronegócio, o outro é professor indígena e aluno da Licenciatura Intercultural, Teko Arandu, está gravemente ferido no hospital em Dourados. Foram vários homens e mulheres feridos, e, também, uma criança de doze anos.

O problema do contexto fundiário e da demarcação das terras kaiowa e guarani em MS já é amplamente conhecido, alvo de muitos debates e poucos encaminhamentos na resolução. O centro do conflito está nos modos como os índios refletem sobre sua relação com a terra e o modo de vida, isto é, com o tekoha, e a noção de propriedade dos ruralistas.

A Fazenda Yvy (terra em guarani) tem um histórico parecido com várias outras na região. O Estado Brasileiro no início do século XX deu início ao processo de colonização e privatização das terras na região, desconsiderando a presença indígena, ou melhor, considerando que o lugar de moradia dos índios deveria ser obrigatoriamente a área criada em 1924 pelo SPI com Posto Indígena José Bonifácio (o município de Caarapó foi emancipado em 1963) para onde as famílias kaiowa e guarani que já viviam na região do intercurso dos rios Amambai, Dourados e seus afluentes, muito antes da criação do posto foram levadas compulsoriamente.

A partir deste processo, foram emitidos os títulos de posse aos detentores de uma cadeia dominial que dificilmente remonta para o século XIX, mas que [na] perspectiva deles dá toda "legitimidade" para defenderem as terras em sua propriedade. O problema está no valor da propriedade, no pagamento das indenizações ao reconhecer a tradicionalidade da ocupação indígena, porque parte dos títulos foi emitida pelo estado do Mato Grosso, anterior à divisão em MT e MS, que deu validade aos títulos. Todavia a CF impede o valor do pagamento da terra nua, fator ao quais os ruralistas não abrem mão e já foi discutido em várias mesas de negociações entre FUNAI, MJ, MPF, CNA, FAMASUL, CNJ, Presidência da República e lideranças indígenas, porém, sem encaminhamentos que garantam a demarcação.

Deste massacre que estamos acompanhando de perto, muitas coisas preocupam, entre elas a prática de formação de milícias para atacar os acampamentos que vem se repetindo. A mesma ação que vimos no assassinato de Simeão Vilhalva em Cerro Marangatu, quando os fazendeiros e políticos locais (que em grande parte são a mesma coisa) após reunião no Sindicato Rural de Antônio João partiram para a retomada e no ataque, [e] Simeão foi assassinado. Vale lembrar, que em meados de 2013, foi organizado por políticos e ruralistas, um leilão da resistência, para arrecadar fundos para a contratação de milícias para a proteção, e ataque, das populações indígenas que tentassem reaver suas terras.

Em Caarapó, logo após a publicação do RCID de Dourados-Amambaipegua, o Sindicato Rural reuniu mais de 800 fazendeiros e prometeu fazer a reintegração de posse ao seu modo... desta resolução vimos o resultado. O contexto político é extremamente desigual visto a quase condensação entre políticas eleitorais e operadores dos direitos em favor do agronegócio na região. A família que detém os títulos de posse é herdeira de um dos fundadores da FAMASUL - Federação dos Agricultores de MS - que tem se mostrado contraditório nas rodadas de negociação.

Os meios de comunicação regionais, mas principalmente a TV Morena afiliada da Rede Globo, tem dando ênfase aos conflitos entre alguns policiais e os indígenas logo após o ataque dos fazendeiros, como se a agressão física fosse mais importante que o assassinato, que expressa o que os índios denunciam: neste estado do MS, um pé de soja ou uma cabeça de gado vale mais que uma vida indígena, como disse certa vez, uma liderança kaiowa local.

Os políticos fazem discursos em Brasília questionando a legitimidade do RCID devido à publicação ter sido realizada dias antes do Golpe que levou ao afastamento da presidente Dilma, incitando a população local exigir que sejam revogadas todas as portarias de identificação e delimitação das terras kaiowa e guarani, contestando a capacidade de ação política das famílias e atribuindo às agências indigenistas governamentais, não governamentais e aos antropólogos o movimento das retomadas que as lideranças realizam desde a década de 1980. O processo de identificação e delimitação destas áreas é anterior inclusive, aos mandatos da presidente Dilma. Em em 2007 a FUNAI firmou um compromisso de ajuste de conduta entre FUNAI e as lideranças kaiowa e guarani que previa a identificação destas terras em até 5 anos.

O problema, como vejo, não é o problema, mas sim os problemas históricos e políticos relacionados ao modo como a existência dos indígenas é tratada pelo Estado Brasileiro, que pautou suas primeiras ações indigenistas na crença de que os índios iriam desaparecer, tornando-se trabalhadores nacionais; depois a tutela e o impedimento da produção dos modos de vida kaiowa e guarani restringindo a vida a pequenas porções de terra.

Com a promulgação da CF e o reconhecimento das diferenças nas formas de relação indígena o desafio de garantir a demarcação dos tekoha dos Kaiowa e dos Guarani se torna mais complexo, devido ao fortalecimento de segmentos ligados ao agronegócio no Brasil; por outro lado, os Kaiowa e os Guarani lutam com a certeza que, como disse Dona Damiana, liderança de Apyka´i, quem dará a terra a eles não será o juiz, nem os fazendeiros, mas é Ñanderu Paí Kwára que dará aos Kaiowa e aos Guarani a terra vermelha onde eles sempre viveram, vermelha como o sangue deles já tantas vezes derramado.



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PIB:Mato Grosso do Sul

Áreas Protegidas Relacionadas

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