Bolsa Família altera rotina de indígenas na região do Xingu

FSP, Poder, p. A10-A11 - 04/09/2016
Bolsa Família altera rotina de indígenas na região do Xingu

FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL AO PARQUE INDÍGENA DO XINGU E A CANARANA (MT)

Nascida e criada no Xingu, Leiru Mehinaku entende pouco o português. Não sabe ao certo a própria idade nem a dos quatro filhos, que cria sozinha. Em 2014, um ano após ingressar no programa Bolsa Família, deixou sua aldeia e se mudou para Canarana (a 607 km a leste de Cuiabá).
"Achei que fosse o suficiente. Mas, depois que me mudei aqui, vi que era muito caro", disse, traduzida por um sobrinho, em conversa na casa de tijolo aparente e três cômodos nos fundos de um bar. Um fogão velho de quatro bocas é o único eletrodoméstico. Sobre a mesa, seis sacos de arroz, três garrafas de óleo e dois pacotes de café.
"Quando morava na aldeia, não precisava de dinheiro. Aqui, fico um pouco com dinheiro e acaba", disse Leiru. Apesar das dificuldades, ela pretende continuar na cidade para que seus filhos "estudem e entendam melhor o português do que eu". O sustento é assegurado principalmente pelo filho adolescente, que trabalha numa borracharia -sua renda mensal do Bolsa Família é de R$ 300.
Assim como Leiru e os filhos, quase metade da população indígena no Brasil participa do principal programa social do país. Só na Amazônia Legal, são 63.165 famílias, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social.
Implantados em terras indígenas de todas as regiões do país sem nenhuma adaptação, o Bolsa Família -e outros benefícios com menor abrangência, como a aposentadoria rural e o auxílio-maternidade-, vem provocando mudanças profundas no modo de vida tradicional.
O principal motivo é que esses programas obrigam os beneficiários a se deslocar durante dias até a cidade para sacar o dinheiro no caixa eletrônico e realizar trâmites burocráticos. No Xingu, essa viagem dura até 20 dias; no alto rio Negro (AM), o deslocamento chega a três meses.
Durante nove dias, a reportagem da Folha conversou com famílias e lideranças indígenas no Xingu e em Canarana, a principal cidade do entorno do parque. Ali, com apoio da Funai (Fundação Nacional do Índio), o programa se popularizou principalmente entre os anos de 2012 e 2013, por meio de mutirões realizados nas aldeias.
"A Funai foi um órgão muito desprestigiado nos últimos governos, com um orçamento sem possibilidade de fazer muitos projetos", afirma André Villas-Bôas, secretário executivo do Instituto Socioambiental (ISA). "Em vários lugares, se restringiu a criar condições para cadastrar e facilitar o transporte dessas famílias para acessar esses programas."
Nas conversas, os xinguanos afirmam que o benefício ajuda a comprar produtos do cotidiano, como facões e material de pesca. Por outro caso, relatam casos de endividamento para pagar o transporte, mudanças mal planejadas para a cidade, consumo excessivo de comida "do branco" e retenção ilegal de cartões por comerciantes.
"A família acaba gastando todo o dinheiro com frete, muito caro. Paga R$ 600 só de ida. Pra buscar [o benefício], acaba se endividando", afirma Marcelo Kamayurá, 41, agente de saúde e liderança da aldeia Morená.
"Se perder o foco, a pessoa fica dez, 15 dias dependendo de uma carona. Atrasa a roça, o serviço na aldeia."
Os obstáculos do Bolsa Família e de outros programas sociais não se restringem ao Xingu, segundo o presidente interino da Funai, Artur Mendes. Ele diz que, apesar de o programa financiar compras de produtos já incorporados, como sal e pilha, o vínculo obrigatório com a cidade altera a rotina dos indígenas de comunidades mais isoladas.
"Há um esvaziamento das aldeias e uma mudança de hábito, de vida, inclusive afetando os mais velhos, porque isso também acontece na aposentadoria [rural]", afirma Mendes.
ALIMENTAÇÃO
Um dos impactos mais fortes da entrada do dinheiro dos programas sociais e das visitas à cidade está na alimentação. No Xingu, o café açucarado pela manhã, o refrigerante e outros produtos industrializados têm cada vez mais penetração.
Há três décadas atuando no Xingu, o médico e professor da Unifesp (Universidade Federal de SP) Douglas Rodrigues afirma que o Bolsa Família tem um peso, ainda não medido, na aceleração desse processo, com efeitos devastadores na saúde.
Em 1986, ninguém foi diagnosticado com hipertensão ou diabetes durante amplo inquérito de saúde no Xingu do qual Rodrigues participou. Nos últimos anos, essas doenças estão cada vez mais comuns por causa das mudanças na dieta.
"A comida que vem de fora não tem regra nem a nossa variedade. Eles acabam usando de maneira completamente equivocada. Muito óleo, sal, açúcar", afirma a antropóloga e médica da Unifesp Sofia Mendonça, mulher de Rodrigues e também com larga experiência no Xingu.
Para Rodrigues, a implantação ativa do Bolsa Família em terras indígenas "parte de uma visão equivocada do que é pobre": "Na medida em que a política de demarcação de terras vai sendo abandonada, sobretudo a partir da segunda gestão do governo Lula [2007-2010], sobram aos índios esses programas assistencialistas, que drenam a sua população para as cidades e para o mercado".
ADAPTAÇÃO
Para minimizar esses problemas, algumas aldeias criaram soluções coletivas. Em uma comunidade da etnia waura, os cartões do Bolsa Família ficam com estudantes que moram na cidade e são mantidos pela comunidade. Com isso, os beneficiários não precisam ir à cidade no prazo máximo de 90 dias, depois do qual o dinheiro fica indisponível.
As lideranças indígenas defendem que a solução não é eliminar a Bolsa Família, mas fazer adaptações, como a implantação de pontos de saque em locais estratégicos do Xingu ou criar programas específicos à realidade local.
"Lá fora, a aplicação desse programa é pra tirar a família da miséria. Mas, no nosso caso, temos a nossa alimentação: peixe, milho, mandioca. O importante é fazer um programa de incentivo para continuarmos fazendo as roças do nosso modo", afirma Kamayurá.
Liderança do Xingu e funcionário da Funai, Ianukula Kaiabi Suia, 38, afirma que o dinheiro "é o transformador de tudo" e que não há volta atrás: "Os povos indígenas estão cada vez mais inseridos nesse sistema".
"Mas, se o dinheiro é tão desequilibrador, existe uma ausência de conversa mais aprofundada. Caso contrário, daqui a um tempo vamos ficar cada vez mais egoístas. O costume de compartilhar a nossa comida e as nossas coisas com os parentes talvez venha a desaparecer. É a minha preocupação."


Burocracia prejudica acesso de índios do MS ao Bolsa Família

FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL AO PARQUE INDÍGENA DO XINGU E A CANARANA (MT)

Enquanto no Xingu o Bolsa Família suscita discussões sobre a definição de pobreza em terras indígenas, em Mato Grosso do Sul, os guarani-kaiowás, confinados em áreas superpovoadas ou em acampamentos de lona, dependem do programa para subsistir, mas enfrentam barreiras burocráticas para obter o benefício.
"O Bolsa Família é fundamental porque, sem ele e os demais programas sociais, aumentaria significativamente o número de crianças desnutridas e o índice de mortalidade infantil", afirma o antropólogo da Universidade Federal do Sul da Bahia Spensy Pimentel, coautor do estudo encomendado pelo Ministério do Desenvolvimento Social sobre o programa em terras indígenas.
"Em lugares onde não há terra para o plantio, ou onde as terras que já são pequenas estão muito degradadas, é uma ajuda absolutamente imprescindível", completou.
Para o relatório, Pimentel fez a pesquisa de campo na reserva de Dourados (MS), onde cerca de 14 mil indígenas se espremem em 3.500 hectares. Em comparação, o parque indígena do Xingu (MT) tem uma população de cerca de 6.500 pessoas para uma área de 2,6 milhões de hectares.
O antropólogo afirma, porém, que o acesso ao programa é cheio de obstáculos burocráticos devido à inflexibilidade no momento do cadastramento, sob a responsabilidade das prefeituras.
Há casos de famílias que ficam de fora ou são descredenciadas porque vivem em acampamentos sem acesso a escolas -a frequência escolar é uma das contrapartidas do Bolsa Família.
Pesquisa divulgada no mês passado pela Fian (Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar, na sigla em inglês) e pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário) mostra que apenas 39,6% das famílias de três acampamentos estudados recebem o Bolsa Família, apesar de todos terem o perfil socioeconômico do benefício e de estarem com dificuldades para obter alimentos na quantidade e qualidade adequadas.
Em contraste, nas reservas e terras guarani-kaiowás regularizadas, onde a insegurança alimentar é menor, o índice de famílias no Bolsa Família pode superar os 70%, afirma Pimentel.


Índios do Bolsa Família são enganados por lojas e lotéricas

FABIANO MAISONNAVE
DE ENVIADO ESPECIAL AO PARQUE INDÍGENA DO XINGU E A CANARANA (MT)

O difícil deslocamento até a cidade para retirar o dinheiro do Bolsa Família e a desinformação sobre o funcionamento do programa têm deixado famílias indígenas vulneráveis a fraudes cometidas por comerciantes e por lotéricas encarregadas de distribuir os cartões.
No Xingu, índios relatam que lojistas das cidades do entorno retêm os cartões junto com a senha como garantia para compras a prestação.
Em 2014, a prática foi alvo de uma ação da Polícia Federal em Canarana (MT). Segundo o coordenador regional da Funai, Kumaré Txicão, foram apreendidos cerca de 200 cartões na época.
O problema é generalizado no país, aponta relatório deste ano do Ministério do Desenvolvimento Social, com base em pesquisas etnográficas feitas por antropólogos em sete terras indígenas.
"O controle sobre os cartões, a título de garantir o pagamento da dívida contraída, é tamanho que as pessoas acabam alienando-se do valor que recebem ou deveriam estar recebendo de acordo com as regras de cálculo do programa", afirma o estudo.

"Há nisso um forte indício de conluio entre comerciantes e especialmente os estabelecimentos lotéricos. No caso desses últimos, verificou-se que alguns funcionários aproveitam-se das dificuldades de entendimento e de manuseio dos indígenas do sistema de cartão magnético para dar-lhes somente parte do valor da bolsa, ou mesmo dizer-lhes que não há nada para receber, aparentemente apropriando-se desse recurso não repassado aos indígenas", diz o texto.
O relatório recomenda que o Bolsa Família passe por adaptações, como uma ação informativa para explicar o programa, criação de pontos de saque mais próximos das terras indígenas e o acionamento da PF para "desbaratar as redes de exploração e expropriação de indígenas".
O ministério afirma que o estudo é da gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e que "o atual governo está tomando as devidas providências, inclusive junto ao Ministério Público Federal, buscando soluções eficazes".

FSP, 04/09/2016, Poder, p. A10

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/09/1810078-bolsa-familia-altera-rotina-de-indigenas-na-regiao-do-xingu.shtml

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/09/1810104-burocracia-prejudica-acesso-de-indios-do-ms-ao-bolsa-familia.shtml

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/09/1810105-indios-do-bolsa-familia-sao-enganados-por-lojas-e-lotericas.shtml
Índios:Política Indigenista Oficial

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