Novas perspectivas na vigilância territorial transfronteiriça Matsés

CTI- http://boletimisolados.trabalhoindigenista.org.br - 20/09/2016
Em abril de 2016, logo após realizar sua VI Reunião Binacional Brasil-Peru, a Organização Geral dos Mayoruna (OGM) - primeira organização criada para representar o povo Matsés do lado brasileiro da fronteira - promoveu uma oficina de formação em vigilância territorial, com apoio do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e da Fundação Nacional do índio (Funai). Na aldeia Lobo, as experiências acumuladas pelos Matsés através dos muitos anos de invasões em seu território foram compartilhadas, com a intenção de delimitar as ações das comunidades indígenas e dos órgãos do Estado brasileiro responsáveis pela proteção e fiscalização em Terras Indígenas no sentido de fortalecer as diferentes atuações. A oficina discutiu ainda a proteção aos isolados que vivem no entorno das aldeias Matsés no Brasil e no Peru.

O rio Jaquirana e sua continuação, o rio Javari, marcam a fronteira entre o Brasil, estado do Amazonas, e o Peru, Departamento de Loreto. A região abriga uma das maiores diversidades cultural e biológica de toda a Amazônia e também é na bacia deste rio que a maior parte do povo Matsés - ou Mayoruna, como são chamados no Brasil - tradicionalmente habita. Eles vivem em aldeias localizadas na Terra Indígena (TI) Vale do Javari, no lado brasileiro, e na Comunidad Nativa Matsés (CN Matsés), no lado peruano. Além destas, fazem parte do território tradicional deste povo a Reserva Nacional Matsés e áreas da proposta de Reserva Indígena Yavarí-Tapiche e do recém-categorizado Parque Nacional Sierra del Divisor, todas no Peru.

A região sempre foi cobiçada por sua abundância de recursos. O início da ocupação não indígena na região esteve associado à exploração do látex de caucho (Castilla sp.) e de seringueira (Hevea brasiliensis) no final do século XIX e início do século XX, período em que são registrados conflitos desta frente extrativista com indígenas. A partir de meados do século XX, com o declínio da economia da borracha na Amazônia, a extração de madeira se torna a principal atividade econômica na região, complementada pela exploração de outros recursos como peles de animais silvestres, carne de caça e pescado.

Esta nova onda de exploração predatória intensificou os conflitos com os Matsés, que chegaram a envolver expedições punitivas do exército peruano e o bombardeio aéreo de suas malocas. No final da década de 1960, alguns grupos Matsés estabeleceram contato permanente com missionários do Instituto Linguístico de Verão (SIL, na sigla em inglês), no Peru. Na década seguinte, outros grupos estabeleceram contato com não indígenas no Brasil e Peru, no contexto da realização de atividades de prospecção de petróleo na região.

Os Matsés guardam histórias de sua resistência à presença de não-indígenas na região do rio Jaquirana. A documentação histórica com frequência relata a belicosidade com que eles resistiam à presença das frentes exploratórias em seu território. Na memória do povo Matsés esta resistência combativa ainda é presente e orienta suas novas formas de ações de gestão e proteção territorial. "Quando a coruja cantava, já sabíamos que alguém estava vindo nos atacar. Então levávamos as mulheres e crianças para longe da maloca e os homens saíam para verificar. Se encontrássemos gente estranha, matávamos. Antigamente, nossa vigilância era assim", conta Waki Mayuruna, cacique da aldeia Lobo, uma das aldeias Matsés do lado brasileiro.

Atualmente, apesar de contarem com boa parte do seu território tradicional protegido, os Matsés tentam combater a presença de pescadores e caçadores e, mais grave, a de empresas madeireiras e petroleiras na região. A partir dos anos 2000, o Estado Peruano iniciou a concessão de boa parte da Amazônia para a extração de madeira, que tem sido base para a extração ilegal nos dois lados da fronteira. No mesmo período, foram concessionados lotes para a exploração de petróleo em suas terras à empresa Pacific Stratus. Os Matsés vêm fazendo frente à exploração petrolífera e ao avanço da exploração ilegal de madeira em seu território.

Desde 2009, ano de criação da OGM, os Matsés nos dois países buscam se fortalecer politicamente por meio da realização das Reuniões Binacionais Matsés Brasil-Peru. O fórum, realizado com apoio e assessoria técnica do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), é o espaço em que representantes do povo Matsés dos dois lados da fronteira se encontram para debater formas de auto-organização e proteção de seu território contra estas ameaças.


Monitoramento e vigilância territorial


Buscando combater este cenário, os Matsés vêm realizando um conjunto de ações de monitoramento e vigilância territorial que tem sido denominado de "Sistema de Monitoramento Matsés". Neste âmbito, e com vistas a fortalecer estas práticas, a OGM promoveu entre os dias 15 e 28 de abril de 2016 a "Oficina de Vigilância Matsés".

Com a participação de representantes das cinco aldeias Matsés na margem brasileira do rio Jaquirana - Cruzeirinho, Soles, São Meireiles, Trinta e Um e Lobo -, a oficina foi organizada em duas etapas. A primeira delas, realizada na aldeia Lobo, foi orientada por Victor Gil, da equipe do Programa Javari do CTI, e Iltercley Chagas Rodrigues, da Coordenação Regional Vale do Javari/ Funai. Esta etapa teve como objetivo fortalecer o manuseio de instrumentos de apoio à vigilância - GPS, câmeras fotográficas e gravadores de voz -, praticar a sistematização de informações e a elaboração de relatórios, e construir um Plano de Vigilância entre as aldeias Matsés na bacia do rio Jaquirana.

A segunda etapa foi conduzida por Waki Mayoruna e Mëo Mocaci, este último também chefe da aldeia Lobo, TI Vale do Javari. Ela consistiu em uma expedição ao rio Batã, afluente das cabeceiras do rio Jaquirana. Além de colocar em prática o conteúdo trabalhado na primeira etapa da oficina, os participantes puderam visitar sítios de ocupação antiga e de eventos históricos, compartilhar histórias sobre o povo Matsés e suas práticas de resistência e vigilância do território.

"Aprendi muita coisa viajando com os Matsés mais velhos. Conheci lugares, aprendi os nomes dos igarapés na minha língua e até aprendi um pouco da história de meu avô, sobre como ele se defendia dos invasores e protegia sua terra. Eu estou feliz por ter aprendido estas coisas, mas ainda falta muita coisa para aprender com os velhos", conta Renato Binan Mayuruna, jovem da aldeia Lobo.

A proposta é que estas novas atividades de monitoramento e vigilância sempre estejam associadas àquelas já tradicionalmente realizadas pelos Matsés em seus territórios, como por exemplo durante as caçadas, pescarias, varações, visitas a capoeiras antigas, etc. "A vigilância já vem sendo realizada há muito tempo pelos nossos velhos, e não é por acaso que a gente se preocupa com a proteção de nossa terra. Agora é diferente, pois precisamos de novas ferramentas para levar informações para o governo e outros parceiros que nos apoiam. Estamos fazendo o que sempre fizemos, andando pelo nosso território, mas agora com ferramentas e com apoio", explica Raimundo Mëan Mayuruna, presidente da OGM.

Os Matsés têm a expectativa de que a realização destas atividades, sempre combinando a presença de jovens e mais velhos, possa fortalecer seus sistemas de transmissão de conhecimentos tradicionais. "Nossas atividades irão envolver jovens e velhos para o fortalecimento da transmissão dos conhecimentos sobre nosso território e nossa história", atesta o Plano de Vigilância.

Com a utilização das novas ferramentas de vigilância, os Matsés poderão trabalhar em sinergia com seus parceiros na proteção de seu território, tanto na identificação imediata de invasões na TI Vale do Javari quanto das áreas mais suscetíveis à presença de invasores. "A vigilância Matsés é vista positivamente pelo órgão indigenista responsável pela fiscalização da Terra Indígena. Com as informações sistematizadas a partir das atividades de vigilância dos Matsés, a Funai poderá acionar outros órgãos, como o IBAMA, a Policia Federal e o Exército Brasileiro para combater as atividades ilegais dentro da TI", diz Ilter Rodrigues.

Além disto, os Matsés desejam que a experiência adquirida nas atividades de vigilância e com o trabalho em parceria com outros órgãos, como a Funai, possibilite que os Matsés participem de forma qualificada das atividades das bases de fiscalização da CR Vale do Javari e Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari (FPEVJ), localizadas nos rios Curuçá, Quixito e Ituí. Atualmente, tanto os Matsés quanto as demais etnias do Vale do Javari participam das atividades das bases enquanto "colaboradores indígenas", mas devido à falta de pessoal e estrutura, nem sempre o órgão indigenista reúne condições de desenvolver atividades de formação e qualificação desses colaboradores.


Proteção aos isolados


Outro objetivo da Vigilância Matsés é monitorar a presença de isolados na região do rio Jaquirana. "É objetivo de nossa vigilância monitorar a presença de não indígenas em nosso território, bem como a presença de povos isolados que vivem no entorno", afirmam no Plano de Vigilância.

Relatos sobre vestígios de isolados no entorno do território Matsés são frequentes. A região abriga uma das maiores concentrações de povos isolados do mundo. Com o auxílio dos novos instrumentos de vigilância, os Matsés poderão compartilhar informações sistematizadas sobre a presença destes povos na região com a Funai, colaborando com o Sistema de Proteção aos Índios Isolados e de Recente Contato.

"Sabemos que, hoje, os índios isolados que vivem perto de nós são frágeis e não têm como se defender de uma arma de fogo. Não queremos que seja feita uma covardia com eles. Com a vigilância protegemos nossa terra, mas também ajudamos a proteger estes índios, sabendo por onde andam e o que está acontecendo perto deles", esclarece Antonio Kurina, chefe da aldeia Soles.

Desta forma, a Vigilância Matsés vem fortalecer a agenda de proteção do território dos povos isolados na fronteira Brasil-Peru. A proteção do território destes povos é uma das principais pautas da articulação binacional entre os Matsés no Brasil e Peru e seus parceiros em ambos os países. O Plano de Vigilância prevê a realização de intercâmbios de práticas de vigilância realizadas entre os Matsés nos lados brasileiro e peruano da fronteira. No Peru, os Matsés já realizam a vigilância territorial com o apoio do Servicio Nacional de Áreas Naturales Protegidas por el Estado (SERNAMP) na Reserva Nacional Matsés e têm a proposta de expandir estas atividades no recém criado Parque Nacional Sierra del Divisor.

No Peru, duas propostas territoriais para povos isolados aguardam há anos o reconhecimento oficial do governo: a Reserva Indígena Yavarí-Tapiche e a Reserva Indígena Yavarí-Mirim. Mesmo com evidências da presença de isolados na região, o governo peruano concessionou sobre a área das propostas lotes para exploração petrolífera e exploração madeireira, ameaçando a integridade física e territorial não só destes povos, mas também a dos Matsés. Os Matsés têm lutado nos últimos anos pelo cancelamento das concessões e pela proteção definitiva de seu território no rio Jaquirana.

No lado brasileiro, há a preocupação com uma área na margem brasileira do rio Javari que não foi incluída nos limites da TI Vale do Javari durante sua demarcação, e onde há informações sobre a presença de povos isolados. Os igarapés que desaguam nesta margem têm suas nascentes no interior da TI, e são frequentados por pescadores, caçadores e por madeireiros ilegais.



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PIB:Javari

Áreas Protegidas Relacionadas

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