Na raça, chef de cozinha índia quer levar a gastronomia terena para o mundo

Campo Grande News- http://www.campograndenews.com.br - 19/11/2016
Kalymaracaya tem, além dos traços e do nome, o sangue e a vontade de levar a cultura terena para o mundo. Nascida na Aldeia Bananal, em Aquidauana, veio aos 5 anos para a cidade com a família, por vontade da mãe, que queria que os filhos tivessem mais acesso à saúde e educação. Mas nunca esqueceu as raízes e principalmente o que saía da panela da avó, Chica.

"Mesmo vindo para cá, eu continuava passando todas as férias escolares na aldeia. Minha avó era uma exímia cozinheira e eu tinha muita curiosidade em fazer doce, assar alguma coisa. Ficava no pé dela para aprender", conta Kalymaracaya, de 35 anos.

Do pai, a menina ganhou o apelido de "beroula", por ficar sempre na beira das panelas. "Essa menina só fica beirolando, ele dizia. E foi ali que comecei a gostar, desde criança", completa.

O interesse ficou mais claro a medida em que a menina foi crescendo. Na cidade, Kalymaracaya se chama "Letícia", mas quando decidiu seguir o caminho da Gastronomia, resgatou o nome terena que na tradução, significa "gatinha".

"Kaly é pequeno e maracaya, gato. Todos os terena têm nome de animais, só que está ficando esquecido quando as pessoas vêm para a cidade. Aqui sou Letícia Terena, mas como vai chamar atenção? Então vou ser a Kalymaracaya", se apresenta.

Com a vontade e o gosto de cozinhar, ela percebeu também o preconceito que gira em torno do índio, especialmente num estado como Mato Grosso do Sul. "Aí eu vi como uma necessidade mesmo, o índio não pode ficar sendo desvalorizado e eu quero ter uma participação nesta trajetória. Vi assim a oportunidade de mostrar a gastronomia que é rica, todo mundo quer saber por que a gente dança, como fala, se veste. Juntei tudo e estou levando Brasil afora", exemplifica.

Como aqui não tinha faculdade de Gastronomia e fazer em São Paulo estava fora do orçamento, Kalymaracaya cursou primeiro Turismo, se apaixonou pela área de alimentos e bebidas e se especializou em Gastronomia. O último curso técnico foi do Cepef, terminado em 2012.

"Meu sonho era desse de crescer e ser chef e ninguém acreditava. As pessoas diziam: 'quem vai querer comer comida indígena? Ninguém'. Eu levei muitos nãos na minha cara, muitas portas foram fechadas por causa disso", narra.


Profissional


Já formada, começou a ir atrás de chefs que pudessem lhe auxiliar na empreitada. O primeiro foi Fábio Cunha, para quem mandou um pedido de amizade no Facebook depois de vê-lo numa entrevista. "Ele disse que não morava em Campo Grande, mas tinha um amigo que ia gostar da minha gastronomia, para eu procurá-lo", lembra. O amigo era o chef sul-mato-grossense, Paulo Machado.

"Demorei dois meses para mandar o convite, pesquisei na internet e fiquei com vergonha, será que ele ia me responder? Eu mandei mensagem pra tanta gente e nunca me responderam. Ele respondeu e nos conhecemos pessoalmente", descreve.

Paulo Machado a colocou em contato com outros chefs que poderiam ver a riqueza da cultura no sabor da comida terena. "Ele foi um grande incentivador meu e todo mundo falava que era uma ideia absurda, num estado de fazendeiro, como que eu poderia levar isso? E eu sempre falava: vai dar certo". A partir daí, grandes encontros surgiram para a terena, inclusive participações em festivais de São Paulo, Pará, Amazônia e até na Bolívia.

"Eu tenho três convites para o México e um para a Espanha. Só que eles não patrocinam passagem, só hospedagem e alimentação e aqui ninguém patrocina e eu não tenho condições de financeiras de ir", comenta.


O carro-chefe


A receita da avó e o principal da gastronomia de Kalymaracaya é o hî-hî, feito a partir de mandioca e folha de bananeira. "Ele te um toquezinho de chef, mas vou te falar como é feita a receita tradicional, da aldeia", enfatiza.

"Na aldeia, se pega a mandioca in natura, descasca, tira o "pavio" e rala usando a parte mais fina do ralador. Em seguida, coloca na água, pega um pano e "torce" a massa, para então passar para a folha de bananeira, que inteira é selada no fogo.

Depois coloca três colheres daquela massa de mandioca na folha, fecha e enrola com folha de bocaiúva ou barbante. Coloca na água para ferver 20 minutos e está pronta a hora que mudar de cor. Do verdinho, para o quase marrom", explica.

Dado o ponto, já pode desligar e o prato pode ser servido com a folha de bananeira ou sem. "Sirvo com carne de porco, mas pode ser feito com peixe, frango e também com doce de guavira, goiaba ou tomate".

A receita é a original da avó Francisca. "Aí eu falo da cultura, que é uma coisa que fora daqui o povo quer saber muito. Sobre música, dança. Eu estudo e também ouço muito os idosos na aldeia, eles têm história pra contar", afirma.


Prêmio Dólmã


"Nunca vi uma chef indígena" é a frase que Kalymaracaya mais ouve. E a vontade de valorizar isso ganhou incentivo com a indicação ao Prêmio Dólmã 2016, considerado o Oscar da Gastronomia. Por voto popular, a terena está concorrendo com outros dois chefs, Edu Rejala e Adriana Torres, a etapa estadual do Prêmio.

"Por enquanto estou concorrendo o estadual, mas quero concorrer no nacional. Mas já estou muito contente com tudo o que estou fazendo", diz. Sobre onde quer ver chegar a gastronomia terena, Kalymaracaya responde sem titubear. "Para o mundo. Não é puxando sardinha para a minha tribo não, mas a melhor dança e a mais bonita é a terena. Tanto a dança, quanto a vestimenta e a língua", se orgulha.

O sonho é o de um dia abrir um restaurante que reúne comida, arte e dança terena. "E eu ainda vou realizar. Vai ter tudo terena. Por enquanto, eu divulgo nos festivais. Ainda não tenho uma estrutura montada aqui, mas estou trabalhando com as minhas próprias forças, meio que sem apoio financeiro, mas dando a cara à tapa para fazer a diferença".



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PIB:Mato Grosso do Sul

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