Violência à vista

FSP, Tendências/Debates, p. A3 - 16/01/2017
Violência à vista

DOUGLAS KRENAK e EDMUNDO ANTONIO DIAS NETTO JUNIOR

Em 1969, o regime militar implantou na terra indígena krenak, na região de Resplendor (MG), um presídio para índios, chamado de Reformatório Krenak, onde foram presos pelo menos 94 indígenas de 15 etnias de Estados diversos.
Eram forçados a trabalhar e proibidos de se comunicar em suas línguas maternas. O reformatório era a chave de abóbada de uma polícia de costumes que prendia pelos motivos mais banais, como embriaguez, "vadiagem" e outros tantos. As penas aplicadas não eram previamente definidas.
No mesmo ano, o presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio) criou a Guarda Rural Indígena, com função declarada de fazer policiamento naquelas que denominava de "áreas reservadas aos silvícolas" no país, subvertendo as relações existentes entre indígenas. O comando dessa guarda de abrangência nacional era exercido pelo chefe de uma instância regional da Funai, responsável, entre outras, pela área onde estava a terra krenak.
Em 1971, os krenaks ganharam na Justiça ação de reintegração de posse contra fazendeiros que haviam se apropriado de suas terras. Porém, o governo de Minas propôs à Funai a transferência dos krenaks para uma fazenda localizada em Carmésia (MG). O deslocamento forçado ocorreu em 15 de dezembro de 1972.
Muitos indígenas foram levados amarrados, resistindo a deixar suas terras e seu Watu, como chamam o rio Doce (anos depois manchado pela lama da barragem de Fundão).
Com a expulsão, o caminho ficou aberto para que fossem expedidos títulos de propriedade em favor dos posseiros que perderam as terras na Justiça, frustrando os direitos dos krenaks. Em 1980, alguns indígenas retornaram a pequena parte de suas terras e, em 1993, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a nulidade de tais títulos.
Em importante e recente decisão, a Justiça Federal deferiu pedidos, em ação ajuizada pelo Ministério Público Federal, para implementação de medidas de reparação, inclusive no âmbito cultural e linguístico, bem como para que a Funai conclua em um ano o processo de delimitação da terra krenak de Sete Salões.
Para além dessas medidas de Justiça de transição, a situação do território de Sete Salões evidencia o preocupante retrocesso da modificação do procedimento de demarcação de terras indígenas, que está sendo gestada no Ministério da Justiça.
Uma das alterações seria a consolidação, no âmbito do Executivo, da restritiva interpretação de que etnias que não estivessem em seus territórios, no marco temporal correspondente ao dia da promulgação da Constituição de 1988, perderiam o direito a reivindicá-los.
Basta ver que os krenaks não se encontravam em Sete Salões em 1988, pois quando retornaram às suas terras não conseguiram retomar toda a área de onde haviam sido expulsos em 1972.
A Constituição fala em direitos originários dos índios sobre as terras que ocupam tradicionalmente, e este advérbio remete a tempos imemoriais, não a datas específicas.
Os territórios indígenas, como condição fundamental de sua existência física e cultural, devem ser reconhecidos, demarcados e garantidos pelo Estado. Os povos originários do país mantêm relação indissociável com suas terras. Como se diz na língua dos krenaks: erehé!

DOUGLAS KRENAK, jornalista, presidiu o Conselho dos Povos Indígenas de MG (2005-09) e atua pela divulgação e preservação da cultura do povo krenak
EDMUNDO ANTONIO DIAS NETTO JUNIOR, procurador regional dos direitos do cidadão em MG, é membro do grupo de trabalho Povos Indígenas e Regime Militar da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal

FSP, 16/01/2017, Tendências/Debates, p. A3

http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2017/01/1849861-violencia-a-vista.shtml
Índios:Terras/Demarcação

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