'O golpe é anti-indígena. O Mato Grosso do Sul é a palestina brasileira'

Mídia Ninja- https://medium.com - 30/01/2017
Durante a 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes a equipe NINJA esteve com Ernesto de Carvalho e Tita (Tatiana Almeida), co-diretores de Martírio, documentário lançado em 2016 e super premiado em festivais nacionais e internacionais. Leia na íntegra a entrevista.


Martírio


Ernesto de Carvalho-Ano passado, 2016, a gente lançou Martírio, que é um filme codirigido pelo Vincent Carelli, pela Tatiana Almeida (a Tita), que é montadora do filme também e eu, que também fotografei a parte contemporânea do filme. A gente se juntou com o Vincent, e formamos uma pequena rede de colaboradores nesse processo de oficinas em aldeias indígenas dentro dessa ideia do Vídeo nas Aldeias. O projeto é levar audiovisual para as comunidades que tradicionalmente estão na frente da câmera para que elas possam se empoderar da ferramenta e criar suas próprias histórias, contar o seu ponto de vista.

Temos feito esse trabalho que foi ganhando forma de maneira meio espontânea. Então a gente faz oficinas longas, deixa equipamentos nas comunidades, faz oficinas de montagem e trabalha muito no aprofundamento e amadurecimento da formação desses realizadores e realizadoras. Essa é a filosofia do vídeo nas aldeias. Foi um trabalho continuado e um trabalho de produção de narrativas que funcionam e têm circulado muito em festivais de cinema, na televisão e gerado um impacto grande.


O golpe


Ernesto de Carvalho-A situação política que a gente está vivendo no brasil hoje só existe por causa da desinformação. A maioria da população na verdade está perdida. Você vê, teve um golpe de estado, o Brasil se polarizou. Parece que tudo se polarizou: de um lado você teria pessoas que são petralhas, que estariam apoiando o governo Dilma e de outro lado você teria pessoas que são coxinhas, fascistas. Mas essa polarização na verdade é a menor parte dessa história. A maior parte dessa história é uma maioria da população brasileira que não sabe exatamente o que está acontecendo. O que a grande mídia faz, o que a Globo faz, é investir nessa desinformação, é criar confusão. As pessoas estão muito confusas. As pessoas com as quais a gente conversa não sabem o que está acontecendo.

E aí, eu acho que o que o Martírio faz, e que agora a gente se dá conta depois do filme pronto, é que ele oferece informação pras pessoas de uma maneira que as pessoas conseguem entender. Ele cria uma narrativa que as pessoas entendem e conseguem se posicionar dentro daquela narrativa. O que a gente precisa agora é fazer o filme circular: essa é a grande questão do Martírio. Todo mundo que vê fala: o filme tem que circular. Ele tem que ser visto. Tem que ser visto nas escolas, tem que ser visto nas aulas de história. E aí a gente está pedindo apoio também nesse sentido, de fazer o filme circular.

O filme vai ser lançado em salas de cinema no dia 13 de abril e depois vamos soltar ele na internet, livremente. E a idéia é fazer que ele chegue nas escolas, que ele chegue nos lares, que ele chegue na televisão, se possível. Porque é só por meio das pessoas terem acesso à história que a gente vai poder desfazer esse nó que o Brasil se meteu agora. Esse nó de um estado de exceção que começa de um golpe que é real, que as pessoas estão vivendo, mas que elas não sabem nem processar. É isso, enfim, falta informação.

Ernesto de Carvalho-O golpe é anti-indígena, o golpe é evangélico, em sua boa medida. Mas não porque as pessoas evangélicas são más, mas porque você tem um interesse, um lobby evangélico, um lobby ruralista dentro do Congresso que é fundamentado na desinformação. É fundamentado em fazer as pessoas ficarem assustadas e em fazer as pessoas ficarem desinformadas. Então, enfim, a gente espera que o filme circule. É isso.

Ernesto de Carvalho-Desde que eu conheço o Vincent, ele tinha esse material Guarani-Kaiowá, material que ele filmou lá no final dos anos 80, passando pelos anos 90. E é um material que é de outra realidade indígena brasileira, que é muito mais precária ainda. São as pessoas que são a palestina brasileira, de alguma maneira.

São aldeias que estão à beira da estrada, não tem terra homologada, muitas vezes são aldeias que estão incrustadas no meio de fazendas, e aí essa realidade Guarani-Kaiowá sempre foi uma realidade muito mais gritante, de um flagelo e de uma presença da morte e da destruição muito mais intensa, um caso extremo de resistência no Brasil. Sempre houve um desejo de voltar pra esses ambientes, voltar pra essas aldeias onde o Vincent esteve e nas aldeias que a gente tem recebido notícias de ataques por verdadeiras milícias de fazendeiros, milícias armadas. E de alguma forma conseguir participar e ajudar nessa situação.


O Conflito Indígena no Brasil


Ernesto de Carvalho-O espaço Guarani-Kaiowá tem sido um espaço de auto representação só que num sentido diferente. Não no sentido da câmera, mas da consolidação de um movimento, que é o movimento Aty Guasu, que são as grandes assembleias Guarani-Kaiowá-que na verdade é um movimento que remonta da década de 70, um movimento de resistência nessa situação de precariedade e agressão extrema.

Então, no Mato Grosso do Sul, que é a central produtora de soja do Brasil, há uma espécie de espólio de guerra da Guerra do Paraguai, um ambiente onde a população indígena que mora ali é vista um pouco como não pertencente a lugar nenhum. Eu acho que ainda há no Mato Grosso do Sul um espírito de guerra-os Guarani-Kaiowá são um pouco os sobreviventes dessa guerra, que é uma guerra que redesenhou a fronteira nacional-e ao mesmo tempo é um ambiente da soja, do agronegócio.

O Brasil é o maior exportador de soja do mundo e toda essa economia neodesenvolvimentalista dos últimos anos tem sido muito calcada na produção de soja. Então a luta dos Guarani-Kaiowá por assegurar pequenos espaços pra sobrevivência é uma luta contra o maior gigante econômico brasileiro, que sao os fazendeiros produtores de soja.

Ernesto de Carvalho-Eles sempre tiveram nesse contexto de resistência e precariedade. O filme conta um pouco a história de como chegou a esse ponto de expulsão das terras, o esbúlio-que é a retirada forçada do ambiente onde que você cresceu-que o que os Guarani-Kaiowá têm vivido ao longo do século XX de uma forma muito particular: essa coisa em que de repente você tá num pedaço de terra e alguém chega com um papel que diz que é daquele fazendeiro. E em 2012, depois de séculos de massacre e um século de massacre ligado à economia, há uma morte em específico-que é a morte do cacique Nísio Gomes, em Guaiviri-que é uma morte que marca muito o Vincent, que tinha passado muito por aqueles espaços, uma morte muito brutal, uma morte com tiro.

Tatiana Almeida-Essa é uma das poucas mortes que acabou furando o bloqueio midiático, a primeira morte em que o corpo é dado como desaparecido e a partir do início das investigações. A coisa acaba furando o bloqueio da grande mídia, ganhando repercussão internacional e forçando as investigações a serem retomadas.

Ernesto de Carvalho-E com a participação de empresa de segurança privada, ou seja, uma verdadeira milícia armada, um negócio muito calculado. Você chegar numa aldeia, você assustar todo mundo, você matar o cacique, esconder o corpo dele e sumir com o corpo dele. É um negócio muito brutal. E ao mesmo tempo, em paralelo a isso, você tem também muito midiatizada a resistência da comunidade Pyelito Kue, que é uma aldeia que em determinado momento, depois de algumas décadas tentando retomar o seu território tradicional, escreve uma carta, que foi muito noticiada, de suicídio coletivo, em que as pessoas estão dizendo "beleza, então vocês não querem permitir que a gente consiga viver nas condições mínimas, então a gente não faz nem mais questão de viver, se for pra viver desse jeito". Foi uma carta interpretada como uma carta de suicídio coletivo.

Esses dois eventos provocam a gente a ir lá, sem dinheiro nenhum, e numa proposta diferente daquela proposta que a gente vinha conduzindo de oficina de vídeo, que é uma proposta então da gente fazer um filme sobre essa história, ao mesmo tempo com o desejo de deixar câmeras-entendendo que a câmera é uma ferramenta de luta, é uma arma.

Ernesto de Carvalho-As populações indígenas do Brasil vivem um binômio muito cruel, que é assim: ou você não é índio o suficiente-você já tá incorporado demais-e aí você não é reconhecido como diferente, não é reconhecido como tendo uma especificidade que te dê direito a respeito, a autonomia, a viver uma vida diferente da que as pessoas levam na cidade, ou você é selvagem demais-seus costumes são inaceitáveis demais. Então todos os indígenas no Brasil vivem no meio dessa encruzilhada horrorosa, muito perversa, que causa muita ansiedade. Que você não consegue ser aceito. Você não pertence a lugar nenhum-você não tem direito a existir, basicamente. De um jeito ou de outro você tá errado.

E no Mato Grosso do Sul, essa existência inaceitável parece ser mais perversa ainda. Porque aí há uma disputa pelo território muito clara, que está no horizonte. O Mato Grosso do Sul é uma terra arrasada. Era uma floresta e hoje em dia é um deserto-um deserto verde da soja transgênica e do milho transgênico. E a maneira como essa terra arrasada se deu foi por meio da aliança entre as elites locais, aliança histórica na qual os fazendeiros também são amigos dos políticos, enfim são alianças entre a polícia... Uma parte dessas deportações, desses exílios das aldeias se dá com o apoio da polícia local que chega e vai retirar o pessoal, leva o caminhão pra tirar as pessoas da aldeia. As pessoas estão numa posição de fragilidade total.


A câmera é uma arma de luta


Ernesto de Carvalho-A gente, sem financiamento, sem dinheiro, pega, usa um pouco dos fundos que tem e vai se jogar nessa tentativa de entender que filme que a gente pode fazer, com a clareza de que a gente precisava, então, construir um filme que contasse essa história porque contar essa história já ia ser um grande gesto político.

A gente começa a ir ao Mato Grosso do Sul, a circular pelas aldeias, a entender exatamente qual é a situação, a recuperar a memória da violência, do exílio, da expulsão dos territórios tradicionais. E muito formados pela experiência de diálogos em aldeias que a gente já tem, que são a partir das oficinas. Experiência de chegar, de saber conversar com as pessoas, de estar muito perto das pessoas, de entender que as pessoas se apropriam da presença da câmera de uma maneira muito inteligente, que elas têm as suas formas de se apropriar da câmera. E quebrando um pouco as regras também-tô filmando e reativando: que história que dá pra contar? É uma história de arquivo? É uma história que precisa mostrar os deputados e senadores? Aos poucos a gente foi entendendo que a história era essa. Uma história que precisava juntar esses elementos, ao mesmo tempo, com aquela presença da câmera, e aí o filme deu muito certo, conseguiu equilibrar todos esses elementos. Tita, a montadora, fez um trabalho incrível.

Tatiana Almeida-Eu acho que é uma coisa que acontece de maneira bem recorrente no trabalho do Vídeo nas Aldeias, nos filmes que não são feitos por cineastas indígenas. Acontece muito quando você vai pras aldeias, você realiza as filmagens e muito do conteúdo você sequer conhece porque você não acessou a tradução do material, e essa tradução acontece na etapa de montagem. É claro que tem várias escolhas que acontecem em campo, mas tem um conteúdo que só se revela na montagem mesmo. E nesse sentido foi um trabalho muito extenso: foram três anos em que a gente ficou no processo, descobrindo que filme era esse, entrando nessa investigação histórica de material de arquivo, entendendo que outra história era possível edificar a partir disso. E uma coisa que nos surpreendeu é que essa história é muito documentada. Oficialmente documentada. Então é um projeto deliberado de exclusão. A gente achou no início do processo que não haveriam relatórios oficiais nem tanta documentação de estado sobre o processo. Mas existe. É realmente um processo deliberado.


A morte de Nísio


Tatiana Almeida-No próprio assassinato do cacique Nísio-que foi esse disparador do retorno do Vincent, do Ernesto e da nossa equipe pra campo e pras aldeias-o filho do Nísio diz que a polícia chegou na hora pra investigar e perguntou "Por que você matou seu pai? Por que você matou seu pai?". E tudo o que ele queria era tentar minimamente se expressar, contar o que tinha acontecido, que tinham recolhido o corpo. Mas na verdade é um processo que envolve o Estado, as elites locais, é um processo de pacto mesmo.

Ernesto de Carvalho-Desde o começo a ideia era deixar câmeras. O projeto original vinha com essa proposta. Pensamos assim: "esse pessoal armado que chega na aldeia atirando, será que eles vão atirar do mesmo jeito e agir da mesma maneira se souberem que estão sendo filmados?". Mas no Mato Grosso do Sul isso é mais difícil do que em qualquer outro lugar. A gente está muito acostumado a formar realizadores indígenas, a formar gente com câmera em aldeia e as pessoas adquirirem autonomia ao longo dos anos-usarem os equipamentos, acessarem a internet. Todos os realizadores que a gente formou construíram autonomia, utilizaram aqueles meios da maneira que eles quiseram, não estavam atrelados a fazer um filme com o Vídeo nas Aldeias.

Só que no Mato Grosso do Sul as condições materiais mesmo são muito mais radicais, muito mais extremas. A aldeia na qual a gente deixou aquela câmera (e que depois aparece no filme e testemunha um dos vários ataques que eles sofreram) não tem lugar pra carregar bateria, o pessoal mal tem água lá, não tem lugar pra carregar celular. Então são coisas que parecem muito simples pra gente mas como é que você viabiliza uma resistência de mídia num lugar onde você não consegue manter os equipamentos?

Quando a gente tava lá tinha lugares que a gente passava que a gente pegava bateria de celular pra carregar no hotel, na cidade, e depois retornar com a bateria. São condições precárias. Aquela câmera que a gente deixou, a gente soube depois que ela foi destruída num ataque.

Então aquela câmera serviu pra afugentar um pouco esses milicianos que chegam armados, e aí ela cumpriu seu papel, a gente vê que eles não tinham essa coragem quando sabem que estão sendo filmados, né. É uma covardia muito grande, você atacar uma comunidade que tá naquele estado de fragilidade, que não consegue se defender, que já tá reduzida, passando fome, sem apoio de ninguém. É muito covarde isso.

Agora você tem mais gente filmando. Mas é um pessoal que precisa de apoio, fundamentalmente, precisa de oficina, equipamento, presença.

Tatiana Almeida-Durante a produção do filme, o Vídeo nas Aldeias em parceira com a UFMG realizou oficinas num acampamento de retomada, que é o do cacique Nísio, do Guaiviri, e numa comunidade de reserva que é o Jaguapirã. O pessoal do Guaiviri acabou de lançar o filme lá no fórumdoc no fim do ano passado.

Mas é o que o Ernesto falou: é o início de um processo. De que maneira eles vão incorporar essas ferramentas, adquirir autonomia, de que maneira eles vão usar isso? Provavelmente, a gente imagina, em função da luta pela retomada das terras.


A retomada de Vincent Carelli


Ernesto de Carvalho-E o Martírio é um filme dentre outros que podem ser feitos no Mato Grosso do Sul sobre essa situação. Outros virão. E é a tentativa de contar essa história enorme, que diz respeito a muita gente, na figura de um ponto de vista: um cara que foi ali por acaso e que tem a vida dele ligada a esse processo, e aí a gente construiu esse personagem do Vincent e optou por esse recurso da narração-que é um personagem também, de certa maneira. A gente constrói alguém em quem as pessoas podem se identificar, e eu acho que isso tem uma força grande. Porque é uma história, porque tem esse caráter humanizador, parece que as pessoas entendem mais se elas conseguem se colocar no lugar de alguém. Mas outros filmes virão: o Martírio é uma primeira tentativa de contar essa história, eu acho. Eu vejo ele assim. Acho que ele é incompleto, também, nesse sentido. Ele é um filme longo, é um filme que dá conta de muita coisa, mas tem muitos casos que a gente deixou de fora, que a gente não conseguiu relatar, porque a ideia era tentar criar um fio da meada ali, que reconte a história do Brasil do ponto de vista da resistência Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul.

E eu acho que isso também toca muito as pessoas: a sensação de que elas não conhecem a história do próprio país. É uma ignorância muito grande: as pessoas mal entendem o que foi a Guerra do Paraguai, não entendem muito bem o que foi o processo de colonização continuada do Brasil. A gente vê o processo de colonização como uma coisa do passado: vieram os europeus, assassinaram boa parte dos indígenas e colonizaram.

O processo de colonização é presente, é um processo contemporâneo, que continua. As elites se transformaram, os agentes da colonização se transformaram mas a mesma violência, a mesma imposição, o mesmo processo inclusive de missionarismo, conversão forçada, de expulsão das terras e assassinato continua.



https://medium.com/20%C2%AA-mostra-de-cinema-de-tiradentes/o-golpe-%C3%A9-anti-ind%C3%ADgena-o-mato-grosso-do-sul-%C3%A9-a-palestina-brasileira-b9456c3c4a21#.6ukwch3d4
PIB:Mato Grosso do Sul

Áreas Protegidas Relacionadas

  • TI Dourados
  • TI Guaivyry-Joyvy (Amambaipeguá)
  • TI Iguatemipeguá II
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.