Os índios e os militares

O Globo, Prosa, p. 6 - 25/03/2017
Os índios e os militares
Em livro, jornalista conta história de mortes e resistência de tribos durante a ditadura brasileira

Leonardo Cazes
leonardo.cazes@oglobo.com.br

RIO - O marechal Rondon cunhou uma frase que se tornou o lema de gerações de sertanistas brasileiros e funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910: "Morrer se preciso for, matar nunca". A declaração ecoou até os anos 1960 e 1970. Contudo, apesar do desejo declarado de proteger os indígenas, o resultado da ação do Estado brasileiro não raro foi o massacre de tribos inteiras. Essa é a história que o jornalista Rubens Valente conta em "Os fuzis e as flechas: a história de sangue e resistência indígena na ditadura" (Companhia das Letras). A partir de uma vasta pesquisa nos arquivos oficiais abertos a partir de 2008 e entrevistas com índios e ex-funcionários do SPI e de sua sucedânea criada em 1967, a Fundação Nacional do Índio (Funai), Valente constrói um painel de violência, morte e luta desses povos.
O enredo da história se repetiu. Índios entravam em conflito com seringueiros, posseiros ou militares que construíam obras faraônicas no meio da selva. Funcionários do SPI, e depois da Funai, eram chamados para resolver o problema, "amansando" os indígenas, aponta o jornalista. Várias vezes, os contatos com homens brancos provocavam epidemias de doenças como gripe e sarampo. Sem remédios nem estrutura para ajudar, os funcionários que deviam protegê-los assistiam a tribos inteiras morrerem. Valente aponta, entretanto, uma ambiguidade na atuação dos sertanistas e do próprio Estado brasileiro.
- Havia um projeto de desenvolvimento sendo colocado em prática que passava por cima dos direitos indígenas, principalmente o direito de eles saberem o que estava acontecendo. Muitos servidores se viram nesse papel de buscar uma negociação entre o Estado e os grupos étnicos ao mesmo tempo em que já sabiam que a decisão já estava tomada - afirma. - Com o passar do tempo, os próprios agentes fazem o balanço crítico do que foi feito. Eles trazem um lamento que senti nas entrevistas.
Um caso ilustrativo da maneira como a questão indígena foi tratada durante a ditadura ocorreu na construção da BR-174, entre Manaus e a fronteira com a Venezuela, em Roraima. A rodovia cortava o território dos waimiri-atroari. Desde o final do século XIX, os índios dessa região viviam em conflito com os ditos "civilizados". Em junho de 1968, alguns apareceram próximo aos canteiros de obras. Com os operários alarmados, o diretor do Departamento de Estradas de Rodagem (DER) de Manaus, coronel Manoel Carijó, pediu ajuda à Funai.
A primeira tentativa de contato com os waimiri-atroari, comandada por um padre italiano, terminou com nove membros da equipe mortos. Quatro anos depois, no governo Médici, a Funai abriu três postos de atração, sob a chefia do sertanista Gilberto Pinto Figueiredo. A situação era tensa. Os índios viam máquinas destruírem a floresta e as obras atraindo novos moradores. Valente narra as dificuldades de comunicação, encontros e desencontros entre brancos e índios, tensão permanente com empreiteiros e servidores. Mais de uma dezena de funcionários morreram em quatro chacinas entre 1973 e 1974. O Exército respondeu à bala.
- Os waimiri-atroari simbolizam o período. É uma obra que sofre resistência violenta e provoca uma reação militar muito clara. Pela primeira vez, três militares reconheceram que houve mortes de índios em confrontos. Isso nunca tinha sido admitido. Mas eu lamento a confissão de um coronel de que todos os documentos sobre essa obra terem sido incinerados. Ainda precisamos descobrir muita coisa sobre o que aconteceu - diz o autor.
Ele vê uma ação deliberada dos militares para abafar todos os casos relativos aos indígenas durante a ditadura. E avalia que os generais sabiam que viria uma enorme pressão internacional se as milhares de mortes viessem à tona. Isso também contribuiu para o silenciamento dessas violências.
- Isso traz uma dificuldade para reconstituir a história, que ocorreu em locais ermos e distantes. Essa é uma pesquisa que necessita de muitos recursos, as testemunhas estão espalhadas por diferentes aldeias e cidades. O Estado brasileiro também precisa reconhecer seus crimes e seus erros - afirma Valente, que começou a trabalhar no livro em 2013, mas escreve sobre o tema desde 1989.
O autor aponta que discursos do passado voltaram com força hoje em uma ofensiva contra os direitos indígenas, que é, na verdade, uma disputa pela terra.
- Se os índios habitassem o céu não gerariam tantas críticas. A crítica vem porque eles ocupam um pedaço de terra, que é cobiçado. É uma guerra econômica envolta em preconceito e intolerância. São os mesmos fantasmas que nos atormentam. A elite econômica e política brasileira, infelizmente, não conseguiu entender que o índio deve ficar onde está, que eles trazem uma riqueza cultural imemorial. A convivência seria uma lição de tolerância do Brasil para o mundo.

O Globo, 25/03/2017, Prosa, p. 6

http://oglobo.globo.com/cultura/livros/a-historia-de-resistencia-morte-dos-povos-indigenas-na-ditadura-militar-21110809
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