Sebastião Salgado fotografa índios do Xingu para a coletânea Gênesis

Agência O Globo-Rio de Janeiro-RJ - 20/01/2006
O sol do meio-dia está a pino na aldeia dos índios kuikuros, no Parque do Xingu, norte do Mato Grosso. O calor sobe do chão de terra. Na sombra de uma barraca armada no meio da aldeia, os índios pintam o corpo com tintura de urucum. Preparam-se para o Quarup, a cerimônia de luto das tribos do Xingu. Entre os brancos que acompanham a festa, há um muito branco, de calça, camisa e chapéu sujos da terra vermelha da aldeia, e equipamento a tiracolo. O fotógrafo Sebastião Salgado foi ao Quarup em busca de imagens para seu mais novo projeto: Genesis, um conjunto de registros do planeta Terra em sua origem, tal como era no início dos tempos. Algumas dessas imagens, inéditas no Brasil, foram cedidas pelo fotógrafo para esta reportagem.

"Estou buscando o planeta do início. Ele ainda existe. Nós destruímos 54% do planeta, mas 46% ainda estão, de uma maneira geral, como ele foi concebido", diz Salgado.
Animais e natureza

O fotógrafo começou no ano passado a viagem por essa Terra primordial. Pela primeira vez, seu trabalho mostrará o planeta com animais e paisagens - muitas vezes, sem o homem que nele habita. Até hoje, o objeto das lentes de Salgado, um dos fotógrafos mais premiados do mundo, defensor da chamada "fotografia engajada", foi o homem e tudo o que lhe diz respeito - seu trabalho, sua terra e sua vida.

Genesis mostrará a natureza em equilíbrio, seja na força da erupção dos virungas, vulcões africanos localizados entre Uganda, Ruanda e Congo, seja na dança das baleias da Patagônia. Essas imagens já foram captadas para o projeto. O livro terá quatro capítulos: um sobre paisagens, um sobre animais e dois sobre grupos humanos. No capítulo Arca de Noé estará o resultado da viagem pelas Ilhas Galápagos, o arquipélago do Pacífico que inspirou Charles Darwin a desenvolver a teoria da evolução das espécies. Salgado viajou pelas 13 ilhas e fotografou iguanas, tartarugas e pássaros. Com as tartarugas, uma descoberta: para chegar perto delas, é preciso se ajoelhar, pois os animais fogem de quem se aproxima de pé.

O livro é um projeto de oito anos, realizado em parceria com a Unesco. Parte do material já começou a ser publicada em revistas como Paris Match (França) e Rolling Stone (EUA). As fotos serão utilizadas também num programa educacional criado em parceria com a Unesco do Brasil. A Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST) é uma das patrocinadoras do projeto e do programa educacional, junto com a Unesco. Um projeto piloto, usando as fotos, será testado no ano que vem em escolas de Vitória, no Espírito Santo.
"Vamos tentar aplicar o projeto no resto do Brasil, e a Unesco vai distribuir gratuitamente, sem direito de autor, no mundo inteiro, as fotos desse mundo preservado", diz o fotógrafo.

A próxima parada de Salgado é a Namíbia, para fotografar povos antigos do deserto, como os himbas. Depois, ele irá à Etiópia e ao Sudão.

O Quarup entrou no Genesis de Sebastião Salgado como um pedaço da origem do Brasil. A cerimônia é a encenação de uma lenda da tribo kamaiurá que representa o mito da criação e a busca de uma explicação para o que está depois da morte. Na lenda, o índio Mavutsinim tenta fazer com que os mortos voltem à vida: corta troncos de madeira - quarup quer dizer tronco ao sol - carrega-os para a aldeia e enfeita-os como se gente fossem, para que revivam. Até hoje, os troncos pintados no Quarup representam mortos ilustres ou queridos das tribos do Xingu.

O fotógrafo, que nunca estivera no Xingu, ficou dois meses na região. Viajou com a mesma dupla que o acompanha nas andanças pelo mundo: a mulher, Lélia Wanick Salgado, sua colaboradora em todos os projetos, e Jacques Barthermy, auxiliar, produtor e guia de segurança que o ajudou, por exemplo, em escaladas arriscadas na Antártida. O grupo esteve em três aldeias: dos índios waurá, kamaiurá e kuikuro - onde se hospedou na oca do cacique da tribo, abrigo também de pesquisadores que trabalham na região. Salgado viu dois Quarups e, num deles, ganhou dos índios uma alcunha que significa "menino passarinho". "Foi por causa da careca e das sobrancelhas brancas", diz o fotógrafo, rindo.

Salgado fotografou o Quarup e seus personagens, como as virgens que, depois da primeira menstruação, passam um ano fechadas nas ocas, sem tomar sol nem cortar o cabelo. Na festa, encerram um rito de passagem: dançam, cortam os cabelos e estão prontas para se casar. As homenagens aos mortos duram toda a madrugada. O Quarup termina com o torneio de huka-huka, um jogo de lutas entre os guerreiros da tribo anfitriã e os de aldeias convidadas para a festa.

Dos caciques do Xingu, Salgado ouviu relatos de ameaças ao parque de 2,8 milhões de hectares, criado em 1961 por decreto do então presidente Jânio Quadros, depois de anos de trabalho dos irmãos Villas-Bôas na região.

As principais ameaças são o avanço descontrolado de madeireiras e plantações de soja, além do risco de poluição dos rios. Salgado defende um movimento nacional em defesa do parque, que considera referência cultural para o Brasil e a humanidade. Ele conta que desde menino ouvia falar do Xingu, área que entrou no imaginário do Brasil depois da Expedição Roncador-Xingu, lançada por Getúlio Vargas no final da 2ª Guerra e liderada por Orlando Villas-Bôas.

"O Xingu é um pedaço do Brasil que tem de ser preservado. Para minha geração, é importantíssimo", diz Salgado, um economista que nos anos 70 trocou a carreira na Organização Internacional do Café, em Paris, pela fotografia. Lá, trabalhou para agências fotográficas como Gamma e Magnum. Em 1981, flagrou o atentado ao presidente americano Ronald Reagan. Seu primeiro livro foi sobre índios e camponeses da América Latina (Outras Américas, 1984). De lá pra cá, o foco de seu trabalho tem sido o homem no mundo em desenvolvimento. É embaixador do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e membro da Academia de Artes dos Estados Unidos.

Aos 61 anos, Salgado levou para sua cidade a preocupação com o planeta: ele e Lélia criaram em 1998 em Aimorés (MG), no Vale do Rio Doce, o Instituto Terra, ONG que trabalha na recuperação da Mata Atlântica e já plantou mais de 500 mil árvores na região. Salgado planeja levar índios do Xingu para oficinas de preparação de sementes no Instituto Terra.

Outro projeto realizado no Xingu é um calendário de 2007 com imagens das tribos, a ser lançado no ano que vem. Nos fundos da aldeia dos kuikuros, à guisa de estúdio, foi montada uma meia-parede de palha para servir de fundo para as fotos do calendário. Por lá passam os principais personagens da tribo para servir de modelo. A renda será revertida para as tribos.
Entre as fotos no estúdio de palha e as visitas às aldeias, dois meses se passaram. Para o trabalho, foram necessários a autorização da Funai e o consentimento das tribos. O Quarup, no livro de Salgado, é parte do capítulo intitulado O Homem Antigo, sobre populações que mantêm um modo de vida tradicional. Da festa sai também a lição da "pax xinguana" - celebrada pelas tribos há 300 anos, para pôr fim às guerras na região.

Quando começa o Quarup, ao cair da tarde de uma quinta-feira, os guerreiros tomam conta do centro da aldeia. O vermelho do urucum se mistura com as cores das miçangas que enfeitam os guerreiros. Assim como as paisagens e os animais de Genesis, o Xingu é fotografado em preto-e-branco - para Salgado, as imagens em preto-e-branco são "abstrações em si mesmas", e cada pessoa é convidada a imaginar as cores a partir dali. E, a quem se admira do colorido da festa, o fotógrafo lembra que seu Quarup terá cores diferentes: "Vai dar lindos tons de cinza".
PIB:Sul

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