Vidas em risco no Vale do Javari

OESP, Política, p. A8 - 30/04/2017
Vidas em risco no Vale do Javari

André Borges (textos) e Werther Santana (fotos)
Atalaia do Norte, Benjamin Constant e Tabatinga (AM)

O barco de alumínio atraca na beira do Rio Quixito. André Marubo salta para a terra, amarra a embarcação e sobe por uma escada vacilante de madeira, até chegar à guarita improvisada do posto de vigilância que ajudou a erguer 13 anos atrás. Do barranco da Base do Quixito, escondida nos extremos da Amazônia entre o Brasil e o Peru, o marubo mostra o que sobrou do pequeno casebre onde vai passar alguns dias, antes de partir para a sua aldeia. Parte das vigas de seu barraco apodreceu. A palha da caranã que cobria o teto se esparramou pelo assoalho. O índio caminha pelas tábuas que servem de passagem entre as casas quando a água do rio sobe. Tem as costas carregadas de sacos de mantimentos trazidos para alimentar aqueles que ficarão no posto de fiscalização quando ele for embora. André pouco fala. Ao ser questionado como é ver o esfacelamento do lugar que ele construiu, responde: "É triste. Tudo vai indo embora".
A decadência que aos poucos corrói cada lasca de madeira da Base do Quixito, unidade de fiscalização controlada pela Fundação Nacional do Índio (Funai), é um exemplo de como tem sido a condução de ações de proteção dos povos do Vale do Javari, terra indígena que concentra o maior número de índios isolados e de recente contato em todo o mundo.
Equipes formadas por indígenas e alguns agentes da Funai procuram, num misto de resistência, ideologia e compromisso com os povos tradicionais, proteger a terra indígena nesses extremos da Amazônia, uma área que abrange 84.570 quilômetros quadrados, o equivalente a dois Estados do Rio.
Essa imensidão de floresta contava, até pouco tempo atrás, com quatro bases da Funai em funcionamento para proteger cerca de 5 mil índios isolados e de recente contato que vivem no Javari. Cabia aos postos do Ituí-Itaquaí, Quixito, Curuçá e Jandiatuba barrarem a ação predatória que avança sobre a terra demarcada. Hoje esse trabalho está perto de ser inviabilizado.
A reportagem do Estado percorreu toda a região do Javari que vive pressão de madeireiros, garimpeiros, caçadores e pescadores que insistem em invadir terras protegidas por lei. A base do Jandiatuba, erguida no Alto Solimões, está sumindo no meio da mata. Suas casas já foram engolidas pela floresta. Nos demais postos de fiscalização, que ainda funcionam precariamente, até pouco tempo atrás não havia nem sequer um gerador de energia disponível para os agentes que se metem na Amazônia para trabalhar na proteção das áreas. Na Base do Quixito, os três funcionários que permanecem no posto de fiscalização não contam nem sequer com uma embarcação disponível em tempo integral. Nada de internet ou celular. A comunicação depende de um pequeno aparelho de rádio, que funciona conforme os humores do tempo.
Agentes de proteção à terra indígena narram as dificuldades de fiscalização do Javari, por conta da precariedade na infraestrutura e de apoio da Funai
No ano passado, Marco Targino, indigenista da Funai responsável pelo posto Quixito, chegou a ficar 192 dias isolado na base, simplesmente porque não havia quem pudesse substituí-lo na função. "Foram seis meses e 12 dias no mato. Saí daqui surtado", lembra. "Há tempos nossa preocupação era ter melhores condições de trabalho, uma melhor infraestrutura local, por conta das adversidades que enfrentamos aqui. Mas hoje, sinceramente, estamos num patamar abaixo disso. Nossa reivindicação é, basicamente, tentar garantir a permanência desse trabalho, prosseguir com essa política de Estado, que é a proteção dos índios isolados."
As ações da Funai voltadas à defesa dos territórios dos povos isolados e de recente contato tiveram início nos anos 1980. A decisão de impedir a entrada de não índios e de empresas na região representou uma mudança radical na postura que a fundação mantinha até aquele momento. Foram décadas de iniciativas equivocadas, que se orientavam basicamente pela ideia de contatar e "amansar" os índios, práticas que eram defendidas pela própria Funai durante o regime militar.
O trabalho protagonizado pelo indigenista Sydney Possuelo, baseado no respeito à vontade do índio de permanecer em isolamento, na preservação de sua cultura, de sua terra, identidade e modo de ser, representou uma guinada na forma de se relacionar com esses povos, mudança que se revelaria bem-sucedida. Hoje, porém, o destino de corubos, marubos, maiurunas, matis, canamaris e culinas está em xeque.
Até o início deste ano, havia apenas 19 servidores da Funai responsáveis por tomar conta de toda terra indígena em ações de fiscalização. Aos constantes cortes de orçamento da estatal, somam-se o encolhimento de seu quadro profissional e a desidratação de seus programas.
O Ministério da Justiça, que comanda a Funai, prefere não comentar o esvaziamento das políticas de proteção e o esquecimento que toma conta do Vale do Javari. A Funai afirma que tem procurado formas de dar continuidade às atuais políticas de fiscalização. "A Funai seguirá trabalhando para tomar as providências necessárias à proteção desses grupos, buscando garantir o pleno exercício de sua liberdade e de suas atividades tradicionais."
São palavras de difícil compreensão para André Marubo, que tenta arrumar um canto para dormir em seu barraco sem teto, na Base do Quixito. Seu povo está entre aqueles de recente contato com não índios. Como os povos isolados, ele depende das ações de proteção para garantir seus direitos. "Não somos nós que saímos daqui", diz André Marubo. "Vocês é que vieram para cá."



'A guerra só começou'
Índios prometem manter as bases de fiscalização, com ou sem apoio do governo

André Borges (textos) e Werther Santana (fotos)

Os povos do Vale do Javari não estão dispostos a ficar quietos, vendo a destruição dos programas que ajudam a proteger suas terras e costumes. Paulo Marubo, coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), diz que os índios têm sofrido com a pressão de madeireiros, empresas, caçadores e pescadores que avançam sobre seus territórios, mas não vão admitir o abandono de medidas de proteção que, mesmo precariamente, garantem sua sobrevivência.
"Nosso povo não vai ficar parado, olhando e morrendo. Vamos agir, não deixaremos essa situação acontecer. Estamos muito preocupados com tudo o que tem acontecido na região. Os invasores estão entrando nas áreas, e não há mais segurança para os isolados", diz Paulo Marubo. "Somos isolados, mas não somos ignorantes. Sabemos dialogar e conhecemos nossos direitos. A guerra não acabou, a guerra só começou. Vamos partir para cima do governo."
Indigenistas e lideranças locais temem que o avanço sobre a terra indígena faça a região reviver capítulos sangrentos de violência e mortandade, como os ocorridos durante o "primeiro ciclo da borracha", entre 1870 e 1911, que levaram doenças, assassinatos e escravidão para as aldeias do extremo oeste da Amazônia. Mais tarde, em 1970, os povos tradicionais voltariam a sofrer com a forte exploração madeireira. Foram décadas e mais décadas de invasões, até que o Javari viesse a ter, após forte resistência, seu reconhecimento definitivo como terra indígena demarcada e protegida. Isso só aconteceria no dia 29 de maio de 1998, com publicação em diário oficial pelo Ministério da Justiça.
"O que assistimos hoje, infelizmente, é o esfacelamento da política de isolados. Podemos ter um novo momento de genocídio desses povos. Vemos equipes de caça, garimpeiros e madeireiros se aproximando da terra indígena. Os índios têm imunidade muito baixa. Qualquer vírus pode dizimar grupos inteiros", diz Bruno Pereira, agente indigenista da Funai que atua na Frente de Proteção do Vale do Javari.
Em março, lideranças da região se reuniram na Assembleia Geral dos Povos Indígenas do Vale do Javari. Em carta redigida após o encontro, as organizações indígenas reafirmam que as bases de fiscalização estão sem recursos humanos e financeiros para cuidar da área. "Na subida para este encontro (no Rio Pardo), nos deparamos com apenas dois indígenas marubo na base de fiscalização da boca do Rio Curuçá. Ficamos desesperados ao nos deparar com essa situação, pois consideramos que a base tem uma função estratégica de fiscalização, uma vez que se localiza próximo da faixa de fronteira entre Brasil e Peru, onde as invasões são constantes e há também a atuação de traficantes", afirmam as organizações no documento.
Invasões têm ocorrido principalmente na região do Rio Juruá, atingindo a área de ocupação dos índios isolados. "Não sabemos o que está acontecendo com esses povos, o que nos causa grande preocupação, pois eles estão correndo risco de serem acometidos por doenças", diz a carta. "Os povos indígenas tyohom-dyapá, do Rio Jutaí, de recente contato, estão sofrendo todo tipo de descaso com a invasão dos fazendeiros e a exploração de regionais, que levam bebidas alcoólicas para trocar com carnes de caça."
Hoje, há 107 registros da presença de índios isolados em toda a Amazônia Legal, área que abrange nove Estados: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e parte dos Estados de Mato Grosso, Tocantins e Maranhão. Povos da etnia matís, marubo, canamari, culina e maioruna, também conhecidos como matsés, são de contato permanente. Já o povo corubo é considerado isolado, apesar de um pequeno grupo ter sido contatado em 1996 pela Funai. A maior presença de povos isolados do Brasil se dá no Vale do Javari, onde já foram registradas 16 referências desses grupos. A população total da terra oscila entre 3,8 mil e 5,5 mil pessoas, sem incluir as estimativas da população de índios isolados.
Indigenistas afirmam que a pressão no entorno da terra indígena tem levado os isolados a saírem de suas terras, o que gera conflitos com não índios e, paralelamente, potencializa os confrontos entre as diferentes etnias que vivem na região. Em 2014, indígenas do povo matis e grupos isolados corubo entraram em conflito, resultando na morte de lideranças indígenas. O clima ainda é de tensão entre os dois povos, que trocam acusações de invasão de seus territórios.
Nos Estados da região amazônica estão concentrados 433,4 mil índios, o equivalente a 53% de toda a população indígena do País. Os povos isolados, grupos com ausência de relações permanentes ou com baixa frequência de interação, seja com não índios ou outros povos indígenas, estão hoje concentrados no Vale do Javari. Já os grupos de recente contato são aqueles que mantêm relações permanentes, independentemente do tempo de contato, mas que preservam sua autonomia. Dentro do Vale do Javari, essa população é estimada em cerca de 5 mil índios. Não há detalhes sobre a população de índios isolados.
Estimativas históricas dão conta de que, antes da chegada do homem branco, havia mais de 1 mil povos no território brasileiro, somando entre 2 milhões e 4 milhões de pessoas. O censo demográfico feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010 apontou a existência de 897 mil indígenas no País. Foram identificadas 305 etnias - a maior é a ticuna, com 6,8% da população. O levantamento mostra que 517 mil indígenas, o equivalente a 58% do total, vivem em terras demarcadas. São 274 línguas faladas pelos povos indígenas e 17,5% desses povos não falam a língua portuguesa.
"Que sociedade é essa que esquece e relega à morte os seus povos originários?", questiona Bruno Pereira. "Esperamos que o Estado brasileiro consiga dar uma resposta à altura. O cenário é de retrocesso. Há uma desmobilização inteira na Funai e do direito desses povos, que foi conquistado na Constituição, na Carta de 1988."


Na trilha dos cartuchos
Caça irregular e pesca predatória cercam as aldeias dos povos isolados

André Borges (textos) e Werther Santana (fotos)

No alto da copa das árvores, ao longo do Rio Quixitinho, o japim fez seu ninho bem ao lado de grandes casas de marimbondos. O pássaro típico da Amazônia sabe que sua sobrevivência depende desses vizinhos. Se o ninho é ameaçado por um gavião ou qualquer outra ave, o japim, também conhecido como xexéu, sacode as asas e desperta os insetos para defender seu território.
A lição ensinada pelo japim não se aplica às trilhas e matas fechadas do Vale do Javari. Os índios isolados estão encurralados. Não há casas de marimbondos ou qualquer outro recurso que consiga frear o avanço de criminosos sobre um território protegido por lei.
Por nove dias, o Estado percorreu os rios, trilhas e matas fechadas da terra indígena Vale do Javari, trabalho que envolveu mais de 320 quilômetros de viagens de barco na fronteira do Brasil com o Peru. A expedição em terra incluiu 22 quilômetros de caminhadas. O objetivo da expedição, que foi autorizada pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) junto à Funai, não foi o de entrar contato com índios isolados, mas pesquisar sinais de sua presença para, a partir daí, analisar seus riscos e medidas de proteção. O que se vê são sinais de invasões por todos os lados.
Na terra indígena, cartuchos de calibre 16 invadem as trilhas dos índios. Sacos de sal usados para conservar animais são amontoados no meio da floresta. Nos rios, apreensão de barcos ilegais de pesca
Na mata fechada da fronteira entre o Brasil e o Peru caçadores sobem pelos rios carregados de armas de grosso calibre e freezers amarrados dentro de embarcações. A fiscalização na região é dificultada pelo emaranhado dos rios que avançam, retrocedem e mudam seus cursos. Como a Amazônia que se move, as aldeias também partem para outros caminhos, por conta da proximidade com não índios. Na floresta, nas trilhas usadas pelos indígenas, a reportagem encontrou cartuchos de espingarda calibre 16 pendurados em tocos, para demarcar o local de passagem. Não se trata de caçadores que buscam animais para a própria alimentação. A caça ali é profissional e predatória. Na floresta, matam macacos, veados, antas, caititus e o que mais aparecer pela frente, para revender nas cidades.
Bruno Pereira, agente indigenista da Funai que atua na Frente de Proteção do Vale do Javari, aponta para um monte de folhagem no chão. Ao erguer as plantas, mostra dezenas de sacos plásticos de sal vazios. "Olha isso. Os caçadores trazem o sal para conservar os animais abatidos, e vão fazendo isso mata adentro."
Das águas do Javari tem saído grande parte dos peixes ornamentais que abastecem mercados como a China. Os "piabeiros", como são conhecidos os pescadores, entram nos rios da terra indígena atrás dos alevinos do aruanã. O peixe, também conhecido como sulamba ou macaco d'água, é mandado para a Colômbia, que revende para outros países como peixe ornamental.
A indústria madeireira também marca presença, atrás de espécies nobres como a sumaúma. Do Peru, balsas sobem com guindastes de grande porte, que puxam os troncos com cabos de aço para dentro do rio. Com serras, a madeira é "limpada", para correr rio abaixo. Quando os troncos chegam ao ponto do rio que não está mais dentro da terra indígena são amarrados e recolhidos por empresas peruanas.
Em fevereiro, uma dessas ações foi alvo de uma operação integrada que envolveu Funai, Ibama, Exército, Polícia Federal (PF) e Batalhão Ambiental da Polícia Militar (PM) do Amazonas. Uma jangada com 432 toras de madeira descia pelo Javari. Além da sumaúma, um peruano transportava toras de ucuúba, marupá, jacareúba, cedro, cedrorana e louro. Ele portava nota fiscal e seus papéis eram falsos. A madeira foi apreendida e o homem, multado em R$ 130,5 mil.
A exploração das terras do Javari não se limita à atuação de aventureiros ou organizações criminosas. A área é alvo constante de estudos e de projetos de mineração e petróleo. A Petrobrás já chegou a ter bases ativas para exploração de gás na região entre as décadas de 1970 e 1980. Nos últimos anos, organizações indígenas do Vale do Javari têm denunciado a presença de lotes de exploração petrolífera em territórios tradicionais do povo matsés, que vive no Peru.


OESP, 30/04/2017, Política, p. A8

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