"A sociedade douradense é preconceituosa", diz procurador

Dourados News- http://www.douradosnews.com.br - 25/05/2017
O procurador da república em Dourados Marco Antônio Delfino de Almeida conversou com o Dourados News sobre policiamento nas aldeias indígenas, discriminação no mercado de trabalho e venda de bebida alcoólica nas comunidades.

Segundo ele, a ausência de indígenas no mercado de trabalho formal ou a contratação apenas para cargos de baixa qualificação "é uma demonstração clara de que a sociedade douradense é preconceituosa".

Marco Antônio Delfino é natural de Corumbá e entrou para o Ministério Público Federal (MPF) em 2006, lotado em Altamira (PA).

Antes de ocupar o cargo de procurador da república, foi oficial da Marinha Brasileira durante 13 anos (1985-1998), em Corumbá e no Rio de Janeiro. Ele também foi auditor fiscal da Receita Federal (1998-2006).

Confira a entrevista:

Dourados News - A Polícia Militar e a Polícia Civil dizem que crimes de homicídios, como os que ocorrem nas aldeias indígenas, são difíceis de prevenir. O sr. concorda?

Marco Antônio Delfino de Almeida - Quando há o policiamento comunitário, que é o que precisa ser feito nas aldeias há muito tempo, e à medida em que a população confia no policial e, paralelamente, há uma presença policial mais ostensiva, é obvio que haverá uma prevenção de crimes, isso é básico. O policiamento tem que ser direcionado às regiões em que ocorre maior intensificação de violência. Qualquer estudante de criminologia tem essa noção muito clara. E o que se faz aqui em Dourados e em Caarapó é apenas recolher os corpos [nas aldeias indígenas]. Mais nada.

DN - E quanto ao restante da população? Pode-se afirmar que existem hoje em Dourados bairros tão violentos quanto as aldeias?

MADA - Eu não saberia informar, porque não atuo na região de Dourados fora da comunidade indígena. Mas os dados que tenho e que são públicos mostram que a taxa de criminalidade em Mato Grosso do Sul está abaixo da média nacional. Se não me engano, segundo divulgação da própria Sejusp [Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública], essa taxa diminuiu nos últimos anos, supostamente pela atuação policial exitosa que teria reduzido os índices de criminalidade como um todo em Mato Grosso do Sul.

A partir do momento em que esses índices são reduzidos na população como um todo e não são reduzidos dentro da comunidade indígena, o que nós temos? Claramente, uma discriminação. E que é compatível com o quadro de preconceito instaurado em Mato Grosso do Sul. O fato de não haver policiamento e dessas mortes ocorrerem é apenas mais uma demonstração da discriminação às populações indígenas em Mato Grosso do Sul.

DN - Sabe-se que há famílias vivendo em estado de miserabilidade na reserva indígena de Dourados. Haveria alguma forma de melhorar a condição social dessas comunidades?

MADA - É preciso que haja um reparo do erro que foi efetuado [com a criação da reserva indígena, em 1917]. O que temos em Mato Grosso do Sul são "deslocados internos". Pessoas que foram removidas à força de seus territórios e colocadas em uma área que é um campo de concentração disfarçado. Esse território não é um território original dessas comunidades. É semelhante aos campos de refugiados que temos em outros locais [do mundo]. E o quadro de desgoverno é muito parecido com esses outros locais.

É necessário haver, efetivamente, um processo de devolução das comunidades aos seus territórios originários. Para que se reduza essa pressão populacional intensa que há dentro das comunidades indígenas e especificamente em Dourados. Aí sim teríamos uma qualidade de vida melhor para essas comunidades. Caso essa questão sistêmica não seja resolvida, vamos sempre resolver questões pontuais, como violência, desnutrição, sendo que o que tem que ser resolvido é a questão como um todo, e não de forma isolada.

DN - E para resolver esse cenário precisariam ser feitas novas demarcações, para atender a esses povos?

MADA - As demarcações não são novas. As demarcações são o reconhecimento de territórios que sempre existiram. Não há nada de novo disso. Tem que haver o reconhecimento dos territórios, a devolução dessas pessoas aos seus territórios originários e, obviamente, a implementação de políticas públicas para que esses territórios também sejam igualmente produtivos.

Porque o que se tem, e de forma quase intencional, é a devolução dos territórios às comunidades indígenas sem que as políticas públicas estejam associadas. Você devolve para elas um território descaracterizado, desmatado, com solo alterado, e pretende que elas, sem qualquer tipo de recurso, venham tentar produzir. Aí depois quando não produzem, falam "tá vendo? Elas não produzem". Quero ver o produtor rural que consegue produzir sem recurso do Banco do Brasil.

DN - Quase não se vê indígenas empregados no mercado formal em Dourados. Por quê?

MADA - Há uma ilusão de que o Brasil é uma democracia racial. Somos preconceituosos, racistas, e quando, de alguma forma, temos uma justificativa, ainda que abstrata, para o exercício desse preconceito, nós fazemos. No caso das comunidades indígenas, isso é exercido em sua plenitude. A demonstração da ausência de contratação, ou da contratação apenas para empregos de baixa qualificação, mesmo quando eles têm qualificação adequada, é uma demonstração clara de que a sociedade douradense é preconceituosa. Não há outra explicação.

DN - Como resolver esse cenário?

MADA - É algo a ser trabalhado, mas, infelizmente, é [uma mudança] de difícil implementação, especialmente pelo discurso que existe para desqualificar essas pessoas. "Falsos índios", "paraguaios". É preciso que haja uma alteração, não profunda, mas efetiva, especialmente na execução de políticas públicas governamentais. Enquanto nós tivermos a Segurança Pública entendendo que não pode prestar serviço de segurança às comunidades indígenas porque eles são indígenas...

DN - O secretário de Segurança Pública cita que o MPF exige que o policiamento nas aldeias de Dourados seja feito pelo Estado, mas com relação à operação Caarapó, o MPF entendeu que a operação seria de responsabilidade federal.

MADA - É uma pena que o secretário, que é formado em direito, desconheça a jurisprudência básica sobre comunidades indígenas. Há um enunciado do STJ [Superior Tribunal de Justiça] que diz que quando há crimes cometidos de índio contra índio, a competência é da Justiça Estadual. Isso é claro, todos os júris existentes em Dourados são júris da Justiça Estadual. Não há nenhum júri em que houve cometimento de crimes de índios contra índios em que a competência seja federal.

[Porém], em toda e qualquer atuação que envolva a comunidade indígena como um todo, como ocorreu com a operação Caarapó, a responsabilidade é da Justiça Federal. Isso também está pacificado. São coisas diferentes: uma coisa é o policiamento ostensivo, preventivo, feito para prevenir crimes individuais. Outra coisa são questões coletivas.

Um exemplo é a operação Tekohá, da Polícia Federal, realizada na comunidade indígena de Dourados. Foi uma operação determinada pela Justiça Federal, por ser de caráter coletivo. E nenhum dos mandados [cumpridos por essa operação] eram genéricos. Todos eram mandados com identificação precisa do local onde seriam feitas as buscas. A operação foi exitosa, pessoas foram presas, e, durante certo período, houve uma redução expressiva da criminalidade.

DN - Esses mandados da operação Caarapó I foram genéricos?

MADA - Sim, foram genéricos. Só determinavam que as buscas seriam feitas naquela comunidade indígena.

DN - Houve denúncia de abusos aos indígenas nessa operação?

MADA - Sim. Nós fomos até a comunidade logo após a operação, colhemos provas e as remetemos para a Justiça. A Sejusp disse em uma nota que a comunidade indígena não foi ao MPF. No MPF de Dourados as pessoas com certeza compareceram e fizeram essa comunicação.

DN - O que os indígenas relataram ao MPF?

MADA - [Eles relataram] os abusos dos policiais que foram cometidos. Policiais reviraram alimentos, foram realizadas buscas absolutamente vexatórias, e de forma genérica, feitas em todas as habitações dessas comunidades.

DN - O que diz a lei sobre a venda e o consumo de bebidas alcoólicas em comunidades indígenas?

MADA - Toda e qualquer proibição que exista nos bares [com relação a venda para indígenas] é discriminatória, não pode ser feita. O que a própria comunidade [indígena] pode fazer é restringir o consumo de bebida alcoólica, como nós restringimos com a Lei Seca. Existe uma Lei Seca em Dourados, que proíbe o consumo de bebida alcoólica a partir das 23h. Embora não seja aplicada, ela existe. O que não pode haver é uma proibição genérica e discriminatória de venda de bebidas alcoólicas nas comunidades indígena.

DN - Então os casos de alcoolismo nas aldeias devem ser sanados de outra forma que não restringindo o consumo e a venda?

Sim.



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PIB:Mato Grosso do Sul

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