Etnodocumentário registra saga de professora indígena para ir à faculdade

A Critica acritica.com - 04/06/2017
Jutica, Caruru, Iauaretê e Ipanoré são os nomes de algumas localidades do noroeste do Amazonas que a professora Amália Rodrigues (53), da etnia Kubeo, estava habituada a percorrer ao menos duas vezes por ano. O ponto de partida era a comunidade Querari, já na fronteira com a Colômbia. O destino, a sede do município de São Gabriel da Cachoeira, onde ela acompanha as aulas do curso modular de Licenciatura Indígena, oferecido pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

O problema é que 340 quilômetros separam a casa de Amália do seu local de estudos, distância que ela precisava vencer ao longo de 20 dias (ida e volta), por terra e pelas águas, enfrentando dificuldades extremas, cansaço e perigos reais. Hoje em dia, a realidade da professora é um pouco diferente, mas a experiência de outrora agora está registrada no etnodocumentário "O caminho de Amália", dirigido por Marcus Stoyanovitch.

Marcus conta que a ideia para o filme partiu do professor Gersem Baniwa, doutor em Antropologia e diretor de políticas afirmativas da Pró-reitoria de Extensão da Ufam. "A proposta era contar a história da Amália mostrando as dificuldades que um estudante enfrenta numa região como essa, que é diferente das demais. Mas nosso desafio era fazer isso sem diminuir o problema", afirma Stoyanovitch, que esteve envolvido com o projeto ao longo de três meses.

'Um grito'

A solução foi inserir uma história dentro da outra: ao registro dos trechos mais críticos da viagem da professora, o filme intercala valiosos depoimentos de gestores escolares, além do próprio Gersem Baniwa e do pró-reitor Fred Arruda, que traçam um quadro alarmante sobre as condições de acesso ao nível superior nos rincões do Amazonas.

"Queríamos que o documentário tivesse impacto suficiente entre as autoridades de educação para que elas tivessem a noção mais próxima possível dessa realidade, que é quase impossível de ser colocada num relatório ou processo administrativo", completa Marcus. "Como o professor Fred Arruda diz no filme, esse trabalho é um grito. Precisamos comemorar as vitórias, mas impedir que as dificuldades provoquem um retrocesso nas políticas públicas".

Oferta de cursos esbarra na logística amazônica

O professor Gersem Baniwa acredita que o etnodocumentário "O caminho de Amália" aproxima o público da lida dessa personagem da vida real, mas ainda assim é sensivelmente distante da experiência de quem vive nas regiões menos assistidas do Amazonas. "Só quem vai lá sente o que significa essa distância, não em termos de quilômetros quadrados, nas no que precisa ser vencido nesses quilômetros", afirma ele, que também é representante indígena no Conselho Nacional de Educação, onde pretende divulgar o filme.

Nos últimos anos, Gersem vem enfrentando de forma mais direta o debate sobre os problemas logísticos que ameaçam o ingresso de professores indígenas da região amazônica na faculdade. "Meio que faço uma campanha para convencer o Estado brasileiro sobre essa realidade completamente diferente das realidades médias do Centro-Sul, Nordeste e Sul, geralmente tidas como referências para elaborar as políticas públicas para o segmento da educação indígena".

Segundo ele, essa política atualmente é financiada a partir de um valor per capita nacional, ou seja, o custo-aluno num curso de formação como o que Amália faz em São Gabriel é o mesmo de um aluno indígena de Santa Catarina, Estado menor e com mais infraestrutura que o Amazonas. "É uma distorção bruta", ressalta.

E por que não usar a tecnologia para que Amália possa estudar sem sair de Querari? Gersem diz que essa solução sempre é aventada pelos gestores, mas ela esbarra em questões pedagógicas, técnicas e de direitos. "Já houve tentativas nesse sentido, mas vimos que cai muito a qualidade do ensino como um todo e não permite o ensino diferenciado na educação indígena, como garante a Constituição. Além disso, a interculturalidade e interação são muito importantes na formação desses professores. Se fosse de outra forma, essas comunidades não romperiam o isolamento".

Universitária sonha em voltar para casa

Situada na margem esquerda do rio Uaupés, no extremo do município de São Gabriel da Cachoeira, Querari é uma comunidade com cerca de 196 moradores, em sua maioria da etnia Kubeo. Na Escola Estadual Indígena N. Sra. da Imaculada Conceição, jovens e crianças da localidade se alfabetizam e encontram a porta de entrada para os estudos. Também é lá que Amália Rodrigues, servidora concursada, leciona há quase 12 anos.

Em 2015, quando ela ingressou no curso superior de Licenciatura Indígena, onde pretende se especializar em Letras, a trajetória da professora entrou numa nova fase. "Para mim mudou bastante mesmo, porque escolhi a área que gosto e no fim vou estar mais capacitada. Que Deus me dê vida para continuar meu trabalho", disse a universitária, que falou com a reportagem de um telefone público.

Há pouco tempo, diante das dificuldades e dos custos para se deslocar até a sede do município e depois retornar para dar aula em Querari, Amália conseguiu transferir temporariamente seu trabalho para uma escola da comunidade Balaio, nas cercanias do distrito de Cucuí, relativamente mais próximo do Centro de São Gabriel. Embora não tenha mais que encarar tantos obstáculos pessoais e geográficos com a frequência de antes, Amália ainda lembra com certa melancolia daquilo que tinha que transpor para seguir com sua formação.

"Era uma parte muito triste. Minha família sempre me deu muito apoio, meu esposo e o pessoal da minha comunidade também, por isso que estou aqui hoje", confidencia ela, que tampouco pretende parar na graduação. "Meu pensamento diz que é para eu continuar batalhando depois da Licenciatura para mostrar para o pessoal como é bom estudar". No que depender da fibra dessa mulher Kubeo, daqui a alguns anos Querari poderá ter sua primeira doutora.




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PIB:Noroeste Amazônico

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