Com decisões que remontam à época da Ditadura Militar, a Justiça Federal do Rio Grande do Sul e o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) negaram a 19 indígenas do povo Kaingang a tradução de um processo judicial no qual são réus. Depois da negativa a um Habeas Corpus, em junho, novo recurso foi submetido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), buscando garantir aos indígenas a efetivação de direitos que, há quase 30 anos, a Constituição Federal lhes assegurou.
O recurso em Habeas Corpus produzido pela Assessoria Jurídica do Cimi, que atua na defesa dos indígenas no processo, pede novamente a tradução da denúncia para o Kaingang e a presença de intérpretes para que as testemunhas Kaingang possam se expressar na própria língua, além de auxiliar a compreensão do processo pelos 19 indígenas acusados do assassinato de dois agricultores. Também é solicitada a realização de laudo antropológico para averiguar o grau de entendimento do português e trazer aos autos a cosmovisão Kaingang dentro de sua condição indígena.
Em 20 de março, o Juiz Federal da Vara de Erechim (RS), onde o processo de mérito tramita, negou o pedido de tradução do processo e de presença de intérpretes para os 19 réus Kaingang e as testemunhas. Sem nenhuma fundamentação especializada, o juiz decidiu que, embora os acusados tenham o domínio da língua nativa Kaingang, "ao que tudo indica comunicam-se e entendem a língua portuguesa e, por conseguinte, conhecem a acusação que pesa contra eles".
O juiz ainda afirma que o fato dos indígenas terem permanecido calados durante o depoimento na delegacia, fazendo uso do direito de silêncio, seria uma evidência de que conhecem perfeitamente o português.
Na segunda instância, a situação se repetiu. Em junho, ao julgar o Habeas Corpus solicitando a tradução, a presença de intérpretes e perícia antropológica, o TRF-4 reforçou os argumentos integracionistas do juiz de primeira instância. O laudo antropológico seria dispensável, conforme nova decisão, "no caso de indígenas que estão integrados à sociedade não índia envolvente e que possuem conhecimento a respeito dos costumes a ela inerentes e compreensão a respeito de suas regras".
A perspectiva integracionista, que direcionou a atuação do Estado brasileiro durante o período da Ditadura Militar, pretendia a integração dos indígenas à "comunhão nacional" por meio do abandono de sua identidade. Essa visão foi superada pela Constituição Federal de 1988, que reconheceu aos povos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
"O poder Judiciário precisa abandonar de vez os equívocos das políticas de integração e estar pronto para receber o paradigma constitucional no que tange aos direitos indígenas consagrados em 1988, na interpretação e principalmente na aplicação da lei. Sobretudo num processo penal em que os acusados e as testemunhas de defesa são indígenas", avalia a assessora jurídica do Cimi, Carol Hilgert, uma das autoras do recurso.
A decisão do TRF-4 ainda afirma que existe "desnecessidade de perícia antropológica, pois a ilicitude do homicídio é reconhecida por qualquer comunidade indígena, não havendo dúvidas que a conduta de matar alguém não faz parte dos costumes e tradições do povo Kaingang".
No recurso, os advogados argumentam que essa afirmação induz a uma lógica equivocada. "Tal tipo de aferição só poderia ser feita para cada povo, em perícia técnica através de laudo antropológico e de maneira contextualizada. Vale lembrar que na nossa própria cultura há casos em que a conduta matar alguém é tida como não reprovável, como é o caso da legítima defesa".
Amigos da corte
Após a nova negativa ao direito dos indígenas à tradução, dez organizações de defesa dos direitos humanos, entre instituições da Colômbia, México, Peru e Estados Unidos, e clínicas de direitos humanos de universidades do Brasil e do Canadá, ingressaram no processo com pedido de amicus curiae (amigos da corte) ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O amicus curiae é um instrumento pelo qual instituições com conhecimento e atuação reconhecidas no tema em discussão pela corte podem participar de processos, produzindo subsídios e contribuindo para a qualificação da decisão a ser tomada pelo tribunal.
Segundo notícia da Fundação para o Devido Processo Legal, uma das organizações que ingressaram com pedido de amicus curiae, o Brasil "é um dos poucos países do continente no qual um juiz penal pode aferir, sem qualquer apoio em perícia antropológica ou linguística, o grau de compreensão do indígena sobre um determinado idioma".
Atentando aos parâmetros do Direito Comparado e do Direito Internacional dos Direitos Humanos, as organizações apontam que a tradução, a interpretação e a perícia antropológica devem ser observadas desde a primeira etapa do processo penal, para evitar que o devido processo legal e a ampla defesa sejam prejudicados. Tais direitos, ressaltam, são protegidos pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos e pela Convenção 169 da OIT, ambas subscritas pelo Brasil.
Decisão
Após a negativa do Habeas Corpus no TRF-4, em 6 de junho, a defesa dos indígenas ingressou com o recurso no STJ. O relator do recurso é o ministro Rogerio Schietti, da Sexta Turma. Como o STJ está em recesso entre os dias 2 e 31 de julho e a violação de direitos dos indígenas segue em curso, a defesa interpôs um pedido de decisão liminar, que pode ser julgado a qualquer momento pela Presidente do tribunal, a ministra Laurita Vaz.
Residentes das terras indígenas Votouro e Kandoia, os 19 Kaingang respondem pelas mortes de dois agricultores, ocorridas no dia 28 de abril de 2014 em Faxinalzinho (RS), enquanto os indígenas bloqueavam estradas da região. Os Kaingang reivindicavam a demarcação completa do seu território tradicional, que se arrasta há 17 anos. Na ocasião, cinco indígenas chegaram a ser presos sem qualquer evidência e seguem inscritos, junto a outros 14, nos crimes dos quais são acusados de forma genérica e sem individualização de condutas no processo penal.
Recurso em Habeas Corpus (RHC) no STJ: 86305/RS
http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=9370&action=read
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