Bióloga busca há quase 15 anos mostrar que não é autora de texto viral sobre RR: 'Não repasso mais nada a ninguém'

G1 g1.globo.com - 12/07/2017
Morar em Roraima é se deparar com um território composto por 70% de terras indígenas, ser barrado em uma rodovia em que os índios só concedem passagem a estrangeiros, não encontrar nem um habitante sequer nascido no próprio estado e só ter a chance de trabalhar em um emprego público, nada mais. E quem fala tudo isso é uma bióloga da USP. Certo? Tudo errado.

(O G1 publica uma série de entrevistas com vítimas de boatos nesta semana mostrando as consequências da proliferação de notícias falsas na web)
ESPECIAL G1: Banco de Boatos

A mensagem circula há mais de dez anos na web e tem bombado no WhatsApp e no Facebook recentemente. Intitulada "Morar em Roraima", ela aponta a ocupação do estado por migrantes, revela um alto índice de funcionários públicos e uma baixa atividade econômica e o acesso privilegiado de estrangeiros a terras e riquezas indígenas em detrimento de brasileiros que vivem na região. O texto é atribuído à bióloga Mara Silvia Alexandre Costa, funcionária da Universidade de São Paulo (USP) e hoje aposentada.

A ex-funcionária Mara Silvia Alexandre Costa nega que seja a autora da mensagem. E tem um motivo forte para comprovar isso: ela nunca esteve em Roraima. Mas admite ter cometido o "crime" de compartilhar o texto com amigos por meio de uma conta de e-mail que continha sua assinatura eletrônica. Foi a deixa para que ela se tornasse a "dona do viral".

A corrente é datada de 2004, segundo ela, que diz ter passado a mensagem para frente sem ter lido o texto com atenção e se deparado com a gravidade de seu teor. Apesar de todos os esforços e explicações que deu para reverter a onda, o texto permanece sendo republicado nas redes sociais. Ela teve, inclusive, de apagar seu perfil na plataforma Lattes para evitar que mais pessoas chegassem a ela questionando "seu artigo" e se explicar publicamente na universidade.

Os dados contidos no texto são contestados pelo governo de Roraima, que diz que eles não são oficiais e caracterizam um artigo de opinião, e pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que diz que o conteúdo reflete preconceito contra os povos indígenas do estado de Roraima e um total desconhecimento da política indigenista brasileira.

O que diz a mensagem

MORAR EM RORAIMA - LEIA MESMO !!! PASME !!!! Segue abaixo o relato de uma pessoa que passou recentemente em um concurso público federal e foi trabalhar em Roraima. Trata- se de um Brasil que a gente não conhece*.. ** As duas semanas em Manaus foram interessantes para conhecer um Brasil um pouco diferente, mas chegando em Boa Vista (RR) não pude resistir a fazer um relato das coisas que tenho visto e escutado por aqui.** Conversei com algumas pessoas nesses três dias, desde engenheiros até pessoas com um mínimo de instrução.** Para começar, o mais difícil de encontrar por aqui é roraimense. Pra falar a verdade, acho que a proporção de um roraimense para cada 10 pessoas é bem razoável, tem gaúcho, carioca, cearense, amazonense, piauiense, maranhense e por aí vai. Portanto, falta uma identidade com a terra. ** Aqui não existem muitos meios de sobrevivência, ou a pessoa é funcionária pública, (e aqui quase todo mundo é, pois em Boa Vista se concentram todos os órgãos federais e estaduais de Roraima, além da prefeitura, é claro) ou a pessoa trabalha no comércio local ou recebe ajuda de programas do governo. Não existe indústria de qualquer tipo. Pouco mais de 70% do território roraimense é demarcado como reserva indígena, portanto restam apenas 30%,descontando- se os rios e as terras improdutivas que são muitas, para se cultivar a terra ou para a localização das próprias cidades.** Na única rodovia que existe em direção ao Brasil (liga Boa Vista a Manaus, cerca de 800 km) existe um trecho de aproximadamente 200 km da reserva indígena (Waimiri Atroari) por onde você só passa entre 6:00 da manhã e 6:00 da tarde, nas outras 12 horas a rodovia é fechada pelos índios (com autorização da FUNAI e dos americanos) para que os mesmos não sejam incomodados... Detalhe: Você não passa se for brasileiro, o acesso é livre aos americanos, europeus e japoneses. Desses 70% de território indígena, diria que em 90% dele ninguém entra sem uma grande burocracia e autorização da FUNAI. Outro detalhe: americanos entram a hora que quiserem. Se você não tem uma autorização da FUNAI mas tem dos americanos então você pode entrar. A maioria dos índios fala a língua nativa além do inglês ou francês, mas a maioria não sabe falar português. Dizem que é comum na entrada de algumas reservas encontrarem- se hasteadas bandeiras americanas ou inglesas. É comum se encontrar por aqui americano tipo *nerd*com cara de quem não quer nada, que veio caçar borboleta e joaninha e catalogá-las, mas no final das contas, pasme, se você quiser montar uma empresa para exportar plantas e frutas típicas como cupuaçu, açaí, camu-camu etc., medicinais ou componentes naturais para fabricação de remédios, pode se preparar para pagar 'royalties' para empresas japonesas e americanas que já patentearam a maioria dos produtos típicos da Amazônia...** Por três vezes repeti a seguinte frase após ouvir tais relatos: *Os americanos vão acabar tomando a Amazônia. *E em todas elas ouvi a mesma resposta em palavras diferentes.. Vou reproduzir a resposta de uma senhora simples que vendia suco e água na rodovia próximo de Mucajaí:** *'Irão não, minha filha, tu não sabe, mas tudo aqui já é deles, eles comandam tudo, você não entra em lugar nenhum porque eles não deixam. Quando acabar essa guerra aí eles virão pra cá, e vão fazer o que fizeram no Iraque quando determinaram uma faixa para os curdos onde iraquiano não entra, aqui vai ser a mesma coisa'.* A dona é bem informada, não? O pior é que segundo a ONU o conceito de nação é um conceito de soberania e as áreas demarcadas têm o nome de nação indígena. O que pode levar os americanos a alegarem que estarão libertando os povos indígenas. Fiquei sabendo que os americanos já estão construindo uma grande base militar na Colômbia, bem próximo da fronteira com o Brasil numa parceria com o governo colombiano com o pseudo objetivo de combater o narcotráfico. Por falar em narcotráfico, aqui é rota de distribuição, pois essa mãe chamada Brasil mantém suas fronteiras abertas e aqui tem estrada para as Guianas e Venezuela. Nenhuma bagagem de estrangeiro é fiscalizada, principalmente se for americano, europeu ou japonês (isso pode causar um incidente diplomático). Dizem que tem muito colombiano traficante virando venezuelano, pois na Venezuela é muito fácil comprar a cidadania venezuelana por cerca de 200 dólares.** Pergunto inocentemente às pessoas: por que os americanos querem tanto proteger os índios? A resposta é absolutamente a mesma, porque as terras indígenas além das riquezas animal e vegetal, da abundância de água, são extremamente ricas em ouro - encontram-se pepitas que chegam a ser pesadas em quilos), diamante, outras pedras preciosas, minério e nas reservas norte de Roraima e Amazonas, ricas em PETRÓLEO.** Parece que as pessoas contam essas coisas como que num grito de socorro a alguém que é do sul, como se eu pudesse dizer isso ao presidente ou a alguma autoridade do sul que vá fazer alguma coisa. É, pessoal... saio daqui com a quase certeza de que em breve o Brasil irá diminuir de tamanho. ** Será que podemos fazer alguma coisa???** Acho que sim.** Repasse esse e-mail para que um maior número de brasileiros fique sabendo desses absurdos.** Mara Silvia Alexandre Costa ** Depto de Biologia Cel. Mol. Bioag.Patog. FMRP - USP ** Opinião pessoal:** Gostaria que você que recebeu este e-mail, o repasse para o maior número possível de pessoas. Do meu ponto de vista seria interessante que o país inteiro ficasse sabendo desta situação através dos telejornais antes que isso venha a acontecer.*


O que diz a ex-funcionária da USP

"Eu recebi essa mensagem em 2004. Quando eu recebi, eu repassei e na época eu tinha uma assinatura eletrônica de e-mail porque eu trabalhei muitos anos na USP e repassei a mensagem, mas assim, como você recebe 'n' coisas, você repassa. Passou uns dias, uma pessoa do meu círculo me disse: 'Olha, Mara, recebi uma mensagem que você assinou. Você nunca foi [a Roraima]?' Eu disse: 'Não, não conheço lá'. Ele disse: 'Mas está como se fosse você.' Pensei: 'Estranho'. E aí começou a chover telefonemas, gente me mandando mensagens ou e-mail, porque na época, em 2004, não tinha essa comunicação de celular como tem hoje. Várias vezes me ligaram no meu trabalho, isso me causou muito constrangimento. Eu tinha um currículo Lattes, então quem trabalha na área de pesquisa entrava no meu Lattes e mandava isso via Lattes perguntando e eu respondia. Eu respondi 'n' vezes, para 'n' pessoas. Inclusive me localizavam dentro da USP e isso foi para a Congregação da universidade, da Faculdade de Medicina. Eu tive que me explicar publicamente. Então isso me causou muitos constrangimentos. E não sei da veracidade disso, não entendo. Sabe uma coisa que você recebe e repassa? Eu não sei da veracidade disso. Isso serviu como experiência de não repassar nada. Não repasso nada para ninguém. Na época, li a mensagem, achei estranho, mas pensei: 'Vou passar adiante'. Porque era moda. Então eu repassei a mensagem, mas sem prestar atenção na gravidade das coisas que estavam lá. Eu passei para alguns contatos meus, pessoas do meu grupo, da minha área. E dali as pessoas vão repassando e repassando. É cíclico. Foi em 2004. Nós estamos em 2017, faz 13 anos que isso corre. E agora alguém teve a paciência de tirar do e-mail para passar para o WhatsApp e isso corre no WhatsApp também. Tentei fazer a corrente ao contrário, fazer a mensagem passar para os meus contatos, pedir para todo mundo repassar que é mentira, para ver se isso corre na mesma velocidade, mas não corre na mesma velocidade. O desmentir não corre na mesma velocidade da mentira."

"Isso serviu como experiência de não repassar nada. Não repasso nada para ninguém. Tentei fazer a corrente ao contrário, fazer a mensagem passar para os meus contatos, pedir para todo mundo repassar que é mentira, para ver se isso corre na mesma velocidade, mas não corre na mesma velocidade. O desmentir não corre na mesma velocidade da mentira"

O que diz a Funai

A Fundação Nacional do Índio afirma que não tem informações sobre o real autor da mensagem, mas diz que o conteúdo reflete preconceito contra os povos indígenas do estado de Roraima e um total desconhecimento da política indigenista brasileira. A Funai aponta que que o direito originário dos povos indígenas às suas terras de ocupação tradicional e o usufruto exclusivo desses territórios por essas populações, bem como o direito a viver conforme seus usos, costumes e tradições possui previsão constitucional. Diz ainda que a missão institucional da Funai é proteger e promover esses direitos, proteger as terras indígenas e fazer respeitar todos os seus bens.

Segundo dados calculados pelo SIG/ISA (Instituto Socioambiental), utilizando os limites das terras indígenas e os limites de estado do IBGE/Sivam, a proporção de terras indígenas no estado de Roraima é de 46,20% (e não 70%, como apontado na mensagem).

A respeito da rodovia, a Funai informa que a restrição e o controle de passagem na Rodovia BR-174, que corta a Terra Indígena Waimiri-Atroari, vem resguardando a integridade da faixa de domínio contra a ocupação ilegal, além de diminuir os atropelamentos de animais, em sua maior parte de hábitos noturnos, preservando uma das principais fontes proteicas para a comunidade indígena.

Em vista disso, a restrição de passagem pela BR apresenta-se como o próprio mecanismo de proteção, desenvolvido no interesse da comunidade indígena em razão da sobrevivência e autodeterminação daquele povo. É assim, a forma encontrada para defender a sua cultura, sua organização social, de acordo com seus próprios valores espirituais, morais e éticos, garantido também o livre desenvolvimento dos seus indivíduos.

O sistema vem se mostrando eficiente uma vez que dados censitários registram que, de uma população reduzida a 374 indivíduos em 1987 em consequência dos planos desenvolvimentistas do governo na Amazônia nas décadas de 60, 70 e 80, a comunidade chega a 1.633 indivíduos.

Sobre a presença de estrangeiros em terras indígenas, a Funai esclarece que o ingresso nestas terras encontra-se regulamentado por normativas da Funai e diz que as autorizações de ingresso em terras indígenas são de competência exclusiva da presidência da autarquia, após a devida instrução do processo administrativo nos termos das referidas normativas, observando-se a anuência prévia dos representantes dos povos indígenas envolvidos, conforme dispõe os artigos 6o e 7o, da Convenção 169 da OIT. Segundo a Funai, essa norma vale para qualquer interessado não indígena, de qualquer nacionalidade. Há a exigência de uma série de documentos e detalhamento das motivações do ingresso para cada uma das modalidades, seja pesquisa científica ou realização de atividades de uso e exploração de imagens, sons, grafismos, criações e obras indígenas.

O órgão nega, no entanto, que exista uma "dominação estrangeira" nas aldeias.

A Funai considera que o conteúdo da mensagem possui por finalidade questionar os direitos territoriais dos povos indígenas brasileiros, que são legítimos e protegidos constitucionalmente. Segundo a Funai, além de contribuir para o ordenamento fundiário do país, as terras indígenas beneficiam a todos. "As terras indígenas são áreas fundamentais para a reprodução física e cultural dos povos indígenas, com a manutenção de seus modos de vida tradicionais, saberes e expressões culturais únicos, enriquecendo o patrimônio cultural brasileiro. Beneficiam-se, ademais, a sociedade nacional e mundial com a demarcação, visto que tal medida protetiva consolida e contribui para a proteção do meio ambiente e da biodiversidade, bem como para o controle climático global."


O que diz o governo

O governo do Estado de Roraima lamenta a ausência de informação oficial no artigo, considerado pela assessoria um texto de "opinião". O governo explica que Roraima passou pelo processo de território federal antes de se tornar um ente federativo e, nesse sentido, "é comum a presença de brasileiros naturais de outros estados da União, na tentativa de buscar novos horizontes e melhor qualidade de vida". Segundo o governo, esse processo migratório é comum até os dias de hoje, já que muitos vão ao estado com a esperança de um emprego público, concorrendo a diversos concursos promovidos. É mentirosa, no entanto, a afirmação de que é raro encontrar roraimenses.

Apesar de a maior oferta de empregos ainda se dar na esfera pública, a atual gestão diz que tem trabalhado com afinco para a mudança da matriz econômica. E afirma que esse quadro tem sofrido mudança com a chegada de empresas e empreendedores do ramo agropecuário, com largos cinturões de soja e outros grãos, criação de gado e peixes e outros segmentos que estão aquecendo a economia local.

O governo esclarece que a presença de estrangeiros em Roraima foge ao domínio do governo do estado, já que o ingresso de não brasileiros se dá somente com autorização da Polícia Federal - órgão ligado diretamente ao Ministério da Justiça. A presença e a atuação também são fiscalizadas pelos órgãos federais, como também a gestão dos povos indígenas. Há hoje mais de 32 mil índios em Roraima.

"O Produto Interno Bruto (PIB) de Roraima atingiu o valor de R$ 9,7 bilhões em 2014, representando 0,2% do PIB do Brasil. Já o PIB per capita do Estado, que representa, em média, o quanto cada residente contribuiu para a geração de riqueza no ano, foi de R$ 19.608,40, permanecendo como o 2o maior PIB per capita da região Norte, atrás apenas do Amazonas, e o 13o maior do Brasil. Comparando com o ano de 2013, o PIB roraimense apresentou um crescimento real, já descontado os efeitos da inflação, de 2,5%", afirma o governo.

Segundo a Seplan (Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento de Roraima), o saldo da balança comercial cresceu 284% em 2016. Em exportações foram 2,7 mil toneladas de produtos alimentícios para a Venezuela, o que totalizou a ordem de 2,4 milhões de dólares. O governo diz ainda que foram exportados em 2016 10,1 milhões de dólares em soja. Desse total, 1,3 milhão foi para o Japão e o restante, para Holanda e Guiana.



http://g1.globo.com/e-ou-nao-e/noticia/biologa-busca-ha-quase-15-anos-mostrar-que-nao-e-autora-de-texto-viral-sobre-rr-nao-repasso-mais-nada-a-ninguem.ghtml
PIB:Roraima/Mata

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