Pelo menos um em cada dois casos de assassinatos de indígenas registrados no Brasil entre 2003 e 2014 aconteceu no Mato Grosso do Sul. Levantamento feito a partir de relatórios do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) indica que durante o período o Estado concentrou 54,8% das mortes de indígenas no país. A análise e sistematização dos dados foi feita no projeto Caci (Cartografia dos Ataques Contra Indígenas), organizado pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com Armazém Memória e InfoAmazonia. Caci significa "dor" em Guarani. É a primeira vez que as informações foram sistematizadas e georeferenciadas em um mapa que permite olhar os casos em sua dimensão territorial. Além da visualização, também foram organizados arquivos para download aberto e livre de tais dados.
O mapa desta plataforma contém os casos cartografados de indígenas assassinados no Brasil entre 2003 e 2014 e retrata que, neste período, a violência contra o indígena brasileiro esteve presente em todo território nacional. A constância de assassinatos no Mato Grosso do Sul é tão crítica que a Assembleia Legislativa realizou a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do Genocídio para investigar o extermínio em curso na região, que, apesar de reunir depoimentos graves, não conseguiu encaminhar soluções concretas para a crise humanitária em curso. Pelo contrário, parte dos parlamentares chegou a questionar o papel do próprio CIMI, organização que defende os direitos indígenas e que tem sofrido forte processo de criminalização. A situação também é muito grave nos estados da Bahia, Maranhão, Pernambuco, Roraima, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul, conforme é possível visualizar no mapa.
O levantamento inclui apenas os casos registrados pelas duas organizações, CIMI e CPT, e, por isso, não é um quadro completo. As dificuldades de reunir e sistematizar dados em um país continental e violento como o Brasil devem ser consideradas. Existem estudos que apontam subnotificação de assassinatos em outros Estados durante o período, o que poderia até alterar a proporção indicada inicialmente. Os números, porém, permitem identificar uma situação gravíssima de intensificação e banalização da pratica de assassinato contra indígenas no Mato Grosso do Sul.
Genocídio
Em alguns casos, não há referência à causa de morte ou autoria, mas é sintomática a maneira como tais mortes aconteceram. A violência detalhada nos casos no Mato Grosso do Sul - é possível ler sobre cada um deles clicando nos botões no mapa - impressiona. Os relatos do estado das vítimas, muitas vezes com múltiplos cortes pelo corpo e mutilações, faz com que este crime cause impacto em toda a comunidade, pois é um tipo de assassinato que atinge psicologicamente a todos. Muitos dos ataques aconteceram em caminhos que levam a aldeias ou locais de trabalho.
No Estado, a maioria dos assassinatos aconteceu em estradas, matagais e fazendas, sendo as vítimas mortas por arma de fogo, arma branca ou pauladas. Tais casos foram classificados como "ataques diretos" nesta sistematização e são três vezes maiores do que os dos demais Estados somados. Na tabela abaixo, a comparação entre a situação no Mato Grosso do Sul e no Brasil todo (incluindo Mato Grosso do Sul).
Na tabela, produzida a partir da análise das descrições dos relatórios, os casos considerados como "violência interna" não foram apenas os assassinatos que ocorreram em núcleos familiares, mas também aqueles restritos a uma comunidade, ou seja, que envolveram somente indígenas. Estes assassinatos representam em torno de um terço dos casos relatados em todo o país. São episódios que incluem crimes passionais, desentendimentos vários ou vingança, disputas de poder e problemas relacionados. Outro número que se destaca é o de assassinatos relacionados ao consumo de álcool (cerca de 18% do total) - mortes por envolvimento com drogas ou tráfico é uma realidade recente, ocorrendo em 7 estados, sendo que na Bahia ocorreram 50% dos casos relatados.
Segundo o antropólogo Spensy Pimentel, do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo, tais episódios estão relacionados à desestruturação social das comunidades decorrente do modelo econômico e político imposto aos indígenas, questão recorrente em todo o Brasil mas especialmente grave no Mato Grosso do Sul. Além dos ataques diretos, as mortes relatadas estão associadas à violências diversas e ocorrem com frequência, como resultado da opressão, preconceito e imposição tanto de valores culturais, como para o roubo e exploração das riquezas que as terras indígenas representam, tanto para os projetos de desenvolvimento, como ao agronegócio e à mineração.
O pesquisador defende que, mesmo que muitas das mortes sejam em episódios internos, a situação deve ser sim considerada como de genocídio, conforme entendimento da CPI aberta na Assembleia Legislativa do Estado para investigar o assunto. E argumenta lembrando que a Convenção para a Prevenção e Punição de Crimes de Genocídio classifica como genocídio não apenas massacres, mas também a "submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial". Tal conceito foi incorporado à legislação brasileira pela Lei No 2.889/1956.
"No ambiente das reservas, é tal o grau de deterioração que há uma enorme variedade de possibilidades para esse tipo de crime - podem estar relacionados desde a uma vingança, dívidas, até violência sexual, roubos ou mesmo a álcool e outras drogas. Muitas vezes o registro da morte não vai conseguir captar o que de fato ocorreu, até porque, frequentemente, as testemunhas têm medo de falar. Mas uma coisa é certa: na avaliação das lideranças políticas e espirituais dos Guarani-Kaiowa, tudo isso está sempre ligado ao mau ambiente gerado nas reservas, que são muito populosas e próximas demais das cidades, deixando os indígenas, sobretudo os jovens, sujeitos a todo tipo de influência perniciosa. É por causa desse desconforto que o movimento de luta pela terra existe: seu objetivo é criar espaços onde a comunidade possa se organizar de forma autônoma e livre desse tipo de ambiente" - Spensy Pimentel, antropólogo do Centro de Estudos Ameríndios da USP.
Muita gente, pouca terra
No Mato Grosso do Sul vivem 73.295 indígenas, a segunda maior população indígena do Brasil, segundo dados do Censo de 2010 do IBGE. O Estado possui, no entanto, a pior distribuição de terras indígenas, ficando os povos em regime de confinamento em diminutas áreas denominadas reservas. São 6.777 km² de território, representando apenas 1,89% do território total do Mato Grosso do Sul, que é de 358.158,7 km². A densidade populacional é de 10,18 hab/km², 40% maior que a população não-indígena no Estado, mas os números absolutos não refletem a situação real porque incluem as informações relativas ao povo Kadiwéu. Estes possuem a maior porção de terra demarcada e, por isso, contam com uma densidade populacional de 0,8 hab/km², exceção no quadro geral.
Tal situação é muito diferente, por exemplo, da vivida pelos povos Terena e Guarani-Kaiowá que vivem em áreas apertadas e com densidade populacional muito elevada, sendo 96 hab/km² para os Terenas e 34 hab/km² para os Guarani-Kaiowá, considerando somente aqueles que vivem nas reservas. No caso específico dos Guarani-Kaiowá, segundo Spency Pimentel, o número seria pouco mais que o dobro, ou seja em torno de 70 hab/Km², pois "na verdade, eles ocupam efetivamente menos da metade do território, pois só se chega a 100 mil hectares somando áreas como Nhanderu Marangatu, Takuara, Lima Campo, que apesar de demarcadas, não estão ocupadas pelos indígenas, que ainda lutam por seus direitos.
Reservas limitadas e superpovoadas
Segundo relatos de indígenas ouvidos pelo projeto, a escassez de terras restringe a mobilidade das famílias, e afeta mecanismos tradicionais para a distensão de conflitos nas comunidades. O distanciamento é impossibilitado nas áreas limitadas, ficando as famílias apertadas em reservas superpovoadas. A ausência da demarcação das terras e o aumento populacional alimentam a espiral de mortes internas.
A questão fundiária também é chave para entender as pressões relacionadas ao quadro de confinamento. Muitos dos ataques diretos estão relacionados a invasões de áreas indígenas pelo agronegócio, sendo marcante a omissão do Estado em nível Federal, Estadual e Municipais.
A solução para tal situação limite passa, fundamentalmente, pelo reconhecimento das terras, tal qual aconteceu com os Tekohas. A diminuição da densidade populacional garante o acesso a terra e terra em abundância, o que permite que a cultura se restabeleça e as comunidades voltem a entrar em equilíbrio.
A relação entre a situação de confinamento territorial, os assassinatos e a necessidade de demarcação de terras fica evidente ao se analisar os dados da reserva Guarani-Kaiowá de Dourados, cuja densidade populacional é de 342 hab/Km². Trata-se de uma área de 34,74 km², correspondendo a 0,85% do território do município, onde aconteceram 34,48% dos casos de assassinatos no Estado.
Das 51 Terras Indígenas, somente 24 encontram-se sob domínio pleno, registradas e mesmo assim algumas ainda não estão ocupadas e várias delas com pedido de ampliação do território. As demais encontram-se em disputas, inclusive com indígenas morando em beiras de estradas por décadas, impedidos de entrar em suas terras e viver sua cultura.
Tocaias e assassinatos de lideranças
A análise dos dados dos relatórios permite afirmar que ao menos 10% dos casos registrados no Brasil são execuções decorrentes de conflito de terras. São assassinatos de lideranças, caciques e professores indígenas. No Mato Grosso do Sul, em meio às disputas fundiárias, chama a atenção a quantidade de mortes por tocaia e atentados contra lideranças.
São casos de indígenas em trânsito em seu território mortos em ataques marcados pela impunidade. Tais crimes provocam grave impacto sobre toda a comunidade indígena, aumentando o sentimento de fragilidade, de vulnerabilidade, abandono e fundamentalmente o medo nas pessoas. Os assassinatos seletivos também têm provocado repercussão negativa junto a organismos internacionais.
O aumento de casos de "tocaiados" - mortes por causa e autoria ignorada - está relacionado também à violência paramilitar que tem, de forma constante, ameaçado os indígenas. Há registros de ataques de acampamentos e retomadas, com equipes paramilitares usando a cada investida, junto às armas de fogo, balas de borracha. A estratégia é provocar medo individual e terror coletivo, visando incutir este medo nas comunidades indígenas envolvidas em retomadas, queimando suas barracas e expulsando os indígenas para fora das áreas em litígio. Nem a presença do Exército na região inibiu esta prática na disputa pela terra.
Quadro nacional
A presente análise sobre assassinatos de indígenas no Mato Grosso do Sul foi feita a partir de dados registrados por CIMI e CPT de 2003 a 2014. No mapa geral organizado pelo projeto Caci (Cartografia dos Ataques Contra Indígenas) também constam relatórios feitos a partir de 1985 - para selecionar um período específico basta clicar na seta ao lado do campo "busque pelos casos", na barra superior. A opção por não trabalhar com os relatórios entre 1985-2002 na análise sobre os casos do Mato Grosso do Sul tem como principal motivo o fato de os dados não terem sido reunidos de forma contínua durante o período, o que fragiliza a análise. Ao todo, foram computados apenas 206 casos, levantamento incompleto que não leva em conta muitos outros denunciados em documentos e na imprensa.
A análise das informações de 2003 a 2014 indica que houve aumento significativo dos casos de assassinatos notificados ao CIMI na última década, com um ápice de 92 mortes registradas em 2007. Os números apontam uma crescente nos três primeiros anos do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva Lula (2003-2011) e ao final do primeiro governo Dilma Rousseff (2011-2014). Considerando apenas os dados dos relatórios, não é possível fazer comparações adequadas com o período anterior justamente em função do fato de a metodologia para coleta de informações ter sido aprimorada de maneira significativa.
Cabe destacar que, em 2014, além dos 70 assassinatos reunidos no relatório do CIMI e os dois registrados pela CPT, também há notificações de mais 68 casos registrados apenas pela Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai), não contabilizados neste levantamento. Assim, pode-se afirmar que foram assassinados pelo menos 138 indígenas no Mato Grosso do Sul em 2014, dado que indica a importância de uma ação urgente e efetiva do Estado e da sociedade brasileira para enfrentar a questão.
Além de analisar a evolução do número de mortes, é possível visualizar a distribuição dos casos registrados pelas duas organizações.
A Comissão Nacional da Verdade em seu Relatório Final publicado em dezembro de 2014, apontou que a violência contra os povos indígenas ocorrida entre 1946-1988 e as graves violações de direitos humanos apuradas nas investigações, tinham em sua raiz a ausência de demarcação de terras. O ciclo de violências que vivem hoje os povos indígenas brasileiros também. O governo de Dilma Rousseff, o governo que a sucedeu e o legislativo federal brasileiro até agora não tomaram conhecimento das 13 recomendações indígenas apontadas pela CNV, onde foram apontadas medidas reparatórias, para quebrar este ciclo de violência, que se perpetua década após década, até os dias atuais.
Este dossiê foi entregue em março de 2016 à comissão da ONU, que esteve no Brasil para apurar as denúncias que a instituição tem recebido sobre a violência contra os povos indígenas no Brasil. A entrega foi feita durante visita aos indígenas Guarani-Kaiowá na retomada da Terra Indígena Takuara, a pedido de Valdelice Veron, liderança Guarani-Kaiowá. A história de sua família resume de certo modo o massacre sofrido por seu povo. Ameaçada de morte, ela é filha do cacique Marcos Veron assassinado pelo agronegócio, tal qual seu avô, assassinado em meio à disputa de terras para a plantação de mate. O mesmo destino foi vivido por dois de seus quatro irmãos, também assassinados em tocaias. Um terceiro irmão se suicidou e outro está ameaçado de morte.
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PIB:Mato Grosso do Sul
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