Vale do Javari sob ameaça

FSP - http://www1.folha.uol.com.br/opiniao - 01/08/2017
Vale do Javari sob ameaça

Pedro de Niemeyer Cesarino

A Terra Indígena Vale do Javari é um imenso território de 8.544 hectares, situado na faixa de fronteira com o Peru e habitado por aproximadamente 4.400 índios dos povos Marubo, Kanamari, Korubo, Matis, Mayoruna, Kulina e Tsohom Djapá, além de possuir uma das maiores populações de isolados do mundo.
Em seus arredores, abundam pequenos municípios assolados pela degeneração social, pelo alcoolismo e proliferação de DSTs, além do tráfico de drogas, da caça e pesca predatórias e do desmatamento.
No encontro dos rios Ituí e Itacoaí está situada uma Frente de Proteção Etnoambiental, que a Funai vem mantendo junto com outras duas bases menores localizadas nos rios Quixito e Jandiatuba, bem como em outras partes estratégicas da Amazônia.
Até pouco tempo atrás, a Frente do Javari garantia uma proteção fundamental da área indígena com relação ao seu exterior sombrio, agora ameaçada pelo desmonte da Funai conduzido pelo governo federal.
A passagem pela base de controle é um portal para outro mundo ainda possível, no qual se descortina uma das maiores e mais intocadas regiões naturais da Amazônia, decisiva para a sobrevivência de um sistema planetário ameaçado pela catástrofe iminente das mudanças climáticas.
A importância crucial da região é fruto da associação profunda entre o conhecimento de seus povos nativos e a natureza.
Os Marubo, assim como outros povos vizinhos, são detentores de um saber milenar e enciclopédico que se estende desde os sistemas detalhados de classificação da fauna e da flora até as técnicas de plantio e manejo de espécimes alimentícias, essenciais para a segurança alimentar e outras estratégias de sobrevivência desconhecidas pelos brancos.
Conhecem, ainda, uma infinidade de narrativas - em nada devedoras aos clássicos da antiguidade europeia -, que são transmitidas através de rituais complexos e ainda muito ativos.
Ainda que resilientes, os povos do Vale do Javari estão seriamente ameaçados.
As epidemias de malária, hepatite e DSTs comprometem uma parcela cada vez maior de sua juventude, desencontrada entre o mundo discriminatório das cidades e a vida em suas comunidades.
Invasores ávidos pelas riquezas da região esperam pelo dia em que poderão novamente destruir a floresta e seus habitantes, como fizeram em um passado ainda recente.
Sem a proteção garantida pela Funai -cujos evidentes problemas poderiam ser ajustados, mas sem que se eliminasse o papel do Estado em resguardar direitos-, o caos certamente se instalará por ali, retomando um ciclo vergonhoso de destruição que já dura 500 anos.
Os atuais mandatários do país deveriam se preocupar mais com suas biografias, se não quiserem ser cúmplices diretos de mais um capítulo infeliz do etnocídio indígena.
O Vale do Javari é um exemplo da importância decisiva de outras tantas áreas indígenas, que o governo de Michel Temer desprotege ao ceder de maneira insensata à avidez de ruralistas e ao senso comum ignorante.
A mais nova decisão é a assinatura, pelo presidente Michel Temer, de um parecer que congela os 748 processos de demarcação de terras pretendidas por indígenas, sob o argumento de que não estavam em ocupação à época da Constituição de 1988.
Dessa forma, outras reservas como o Vale do Javari não poderiam jamais existir.
Negar aos povos indígenas os seus direitos não implica apenas desrespeitá-los. Cada vez mais, a sociedade brasileira e o mundo inteiro estão de olho em tais ações, que colocam em risco não só a existência dos povos nativos mas também a de todos nós.

PEDRO DE NIEMEYER CESARINO é professor do departamento de antropologia da USP. Autor de "Oniska - Poética do Xamanismo na Amazônia" (Perspectiva 2011), entre outros livros e artigos.


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