O garimpo ilegal é um dos maiores problemas da região

Valor Econômico, Eu & Fim de Semana, p. 14-15 - 04/08/2017
O garimpo ilegal é um dos maiores problemas da região

Por Monica Gugliano

Operação Curare VIII, realizada no rio Uraricoera, em Roraima
O estrondo é forte, mas muito rápido. Mal se percebe a revoada de pássaros, as árvores que chacoalham e o silêncio da floresta que é interrompido por alguns segundos. Às margens do rio Uraricoera, em Roraima, onde o escritor Mário de Andrade (1893-1945) fez nascer seu herói Macunaíma, um explosivo plástico acaba de detonar e mandar pelos ares um motor de barco de garimpeiros. Foi mais uma ação de combate ao garimpo ilegal nos 870 km do rio que atravessa o Estado passando pelas terras dos índios ianomâmi e fazem fronteira com a Venezuela.
A questão é que, descoberto e desmontado um ponto clandestino e todos os problemas a ele associados, como prostituição, desmatamento, contaminação do rio, trabalho escravo e contrabando, logo surge outro. "É evidente que a situação caótica da Venezuela se reflete e aumentou a chegada ilegal de garimpeiros venezuelanos nessa região", diz Paulo Basta, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. "Brasileiros, assim como venezuelanos e pessoas de outras nacionalidades, nunca deixaram de entrar no território, mas sabemos que o garimpo é um indicador econômico que piora com as crises", afirma.
Entre todos os danos sociais e materiais decorrentes do garimpo ilegal, a contaminação por mercúrio é um dos mais sérios. O líquido é usado no processo de garimpagem como catalisador do ouro. Ao ser queimado, evapora e a contaminação ocorre por inalação ou pela precipitação da substância no solo. Quando isso ocorre, se forma o metilmercúrio, que se acumula na cadeia alimentar e potencializa os danos à saúde humana e a destruição do ambiente. No ano passado, a Fiocruz publicou um estudo - feito em parceria com o Instituto Socioambiental -, revelando que, em algumas aldeias dos uaicás, chega a 92% a contaminação entre as pessoas examinadas.
"Se desde a década de 80 isso acontece, é sinal de que as ações das autoridades para proteger a região não são eficientes. Sabemos que é feito um esforço das Forças Armadas, da Polícia Federal e do Ibama, mas eles apagam incêndios. Logo depois, o fogo volta", observa Basta. Pelo menos uma vez por ano, militares da 1a Brigada de Infantaria na Selva, agentes do Ibama e da Polícia Federal realizam operações para chegar aos pontos de mais difícil acesso no Estado. Desta vez, desde o começo do mês passado, eles realizam a Operação Curare VIII.
"É uma fronteira seca, aberta, que se tenta proteger e vigiar dentro das possibilidades, inclusive de acesso a um lugar como este", diz o general de Brigada Gustavo Dutra de Menezes, comandante da 1a Brigada de Infantaria na Selva, que empregou 1,3 mil homens na operação.
Com uma população de 514 mil habitantes, Roraima tem uma área de 224 mil km2. É o Estado menos habitado do país. Cerca de 50% desse território pertence a tribos indígenas. Só a reserva dos ianomâmis tem 9,6 milhões de hectares (Portugal caberia ali dentro) e se estende pelos Estados de Roraima e Amazonas, onde vivem aproximadamente 25 mil índios em cerca de 300 aldeias.
Do céu aumentam as chances de identificar os pontos onde os garimpeiros agem. Com queimada e motosserra, abrem clareiras. Surgem os barrancos e a água dos rios, contaminada pelo mercúrio, vira um cemitério de peixes e qualquer outra forma de vida. Mangueiras com jatos de alta pressão varrem a terra. Em volta da destruição, funcionam microcidades, onde esses trabalhadores se estabelecem e vivem praticamente em regime de escravidão, gastando o que ganham em mantimentos e bebidas alcoólicas.
Em uma viagem de 400 km, de helicóptero, foi possível ver o estrago causado por um dos maiores
garimpos ilegais já encontrados em Roraima. Por cerca de 1 km2, a região fora completamente degradada. O local ficava no alto Mutum, entre as cidades de Amajari e Alto Alegre, quase na fronteira com a Venezuela, no extremo Norte do Estado, em território ianomâmi. Cálculos com base nas balsas e barrancos destruídos levam a estimar que o garimpo do Mutum movimentava uma média de R$ 32 milhões por mês. Isso porque cada balsa extrai em média 1 kg de ouro por semana. De cada barranco, saem outros 3 kg. Somam 4 kg/mês. O preço (cotação de julho) de um grama de ouro está em R$ 125,48.
Cercado pela floresta amazônica, o garimpo foi montado em um ponto praticamente inacessível. Só por barco, em uma viagem de dois dias, ou helicóptero, se podia chegar até lá. Como já virou regra nessas operações, os garimpeiros percebem a chegada da Polícia Federal e dos militares e escapam pelo rio, deixando para trás mercados, casas e, nesse caso, até um salão de beleza. "Não nos iludimos. Sabemos que esses garimpeiros vão se reestruturar em outro local, mas, por outro lado, conseguimos dar uma baixa muito grande na logística deles", diz Dutra.
O pessoal que participa dessas operações costuma dizer que prender garimpeiros é como enxugar gelo. Prendem-se 10, 20, mas logo um número semelhante de homens, às vezes até maior, volta a agir nas clareiras abandonadas ou abre outras. O trabalho custa a vida de muitos deles, abatidos pela malária, tuberculose, febre amarela e doenças sexualmente transmissíveis. "O garimpeiro é também uma vítima, porque não é ele quem ganha com a exploração dessa riqueza", afirma o pesquisador Paulo Basta.
Em algumas aldeias ribeirinhas, os próprios índios costumam colaborar com o garimpo ilegal. "Os garimpeiros pagam de R$ 4, 5 até R$ 7 mil para serem levados de barco até os pontos onde eles vão trabalhar. É muito dinheiro para as comunidades que vivem com poucos recursos", diz Osmar Carlos da Silva, da aldeia dos uaicás (subgrupo dos ianomâmi), onde vivem 120 pessoas, boa parte delas crianças. Ele se formou em antropologia, é o único professor da escola da comunidade onde as crianças até os 12 anos cursam o ensino fundamental e é funcionário da Secretaria Indígena de Roraima, onde recebe R$ 3 mil brutos por mês.
Para Silva, muitos não conseguem resistir ao dinheiro fácil do aluguel de barcos, venda de motores ou alguns gramas de ouro, mas sabem que o benefício imediato resulta em imensos danos à região onde vivem, à pesca e à caça que lhes garante a subsistência. "Aqui pegávamos peixe de todo tipo e animais. Com o mercúrio correndo nos rios, o alimento vai escasseando", diz Silva.
Dutra assinala que, por mais que operações sejam realizadas, a proteção das fronteiras nacionais, uma extensão continental, nunca será efetiva sem o uso de tecnologia. O Brasil tem 16.866 km no total de fronteira terrestre. É uma extensão que corresponde a cinco vezes e meia a linha que divide Estados Unidos e México, com cerca de 3 mil km. Roraima, que faz limite com a Venezuela e a Guiana, tem a terceira maior faixa de fronteira; o Acre, a segunda e o Amazonas, a primeira.
Em 2012, o governo federal iniciou o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron). Foi criado pelo Exército e deveria integrar radares, sensores, satélites e outros instrumentos de monitoramento e transmissão de dados. Desde que começou a ser implantado e até 2016, de acordo com dados do Exército, já foi investido R$ 1, 37 bilhão. Entretanto, a partir de então, os valores estão em queda livre. Em 2016, o Sisfron obteve R$ 182 milhões; neste ano há expectativa de aumento dos recursos, mas a crise econômica não deve tornar isso possível. Dessa forma, o projeto que chegou a ser tratado como a solução que poderia enfrentar o desafio de proteger e vigiar essa área gigantesca, até agora só conseguiu cobrir aproximadamente 4% das fronteiras, ou seja 650 km.
"Sabemos que os verdadeiros donos do ouro estão muito longe daqui e conhecemos a forma como esse pessoal trabalha", diz o capitão Pedro Alvim, o mesmo que ajudou a explodir o motor e que mostra as pedras de ouro e armas improvisadas que foram recolhidas nas operações.
A 1a Brigada de Infantaria de Selva atua com 1,3 mil homens. A Polícia Federal conta com 50 e o Ibama envia equipes de vários pontos do país. A ação é conjunta, pois, embora as Forças Armadas tenham poder de polícia nas regiões de fronteira, nesse tipo de operação a divisão de tarefas aumenta a eficiência. Os militares fazem a coordenação, inclusive de infraestrutura; os agentes da PF prendem os garimpeiros em flagrante e os do Ibama fazem as autuações pelos crimes contra o meio ambiente. No caso do Ibama, os servidores deslocados para essas missões são voluntários. "Sempre gostei desse trabalho, acho que é um dos mais importantes que fazemos", diz Alessandro Queiroz, que chegou de Florianópolis (SC) para coordenar a equipe do Ibama na Operação Curare VIII.
"Nos últimos meses é considerável também a presença de venezuelanos. A entrada desse pessoal aumentou muito com a crise política e econômica na Venezuela e o controle está cada vez mais difícil", afirma.
Os militares estão acampados quase ao lado da comunidade e, também como ocorre em relação aos garimpeiros, os indígenas aprovam e desaprovam a ação ostensiva. "Uma parte é boa e outra, ruim. O garimpo traz junto outros tipos de crimes. Há venda de drogas. O ruim é que o dinheiro extra acaba e muitos por aqui preferem ganhar com os garimpeiros do que não ter nada", observa ele.
Para muitos, a terra ianomâmi seria uma espécie de Eldorado, que esconderia uma das áreas mais ricas em ouro do Brasil. E os que trabalham na extração do mineral são festejados na praça principal de Boa Vista. No centro dela há uma imensa estátua em homenagem ao garimpeiro que já foi motivo de briga entre ambientalistas e parlamentares contra e a favor da deferência. "Se a extração de ouro fosse feita dentro de parâmetros legais, seria uma fonte de recursos para o Estado", observa um integrante do governo que prefere não ser identificado para evitar as críticas certas por uma opinião bastante rejeitada na região. O problema é que não existe, em Roraima, nenhuma licença para a extração de ouro. Isso quer dizer que não há garimpo legal no Estado e a ideia de tomar a atividade lícita não é bem-vista pelas autoridades federais e nem pelos militares.


Valor Econômico, 04/08/2017, Eu & Fim de Semana, p. 14-15

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