Nesta quarta-feira (16/08) serão julgados os processos relativos a três terras indígenas no Supremo Tribunal Federal (STF). Tais julgamentos são peça-chave da tese do marco temporal, que consiste no estabelecimento do ano de promulgação da Constituição (1988) como referência de ocupação do território para fins de demarcação de terras indígenas. Na prática, tal medida se coloca como mais um ataque na longa história de violação dos direitos originários indígenas no Brasil. Entenda abaixo os detalhes do processo e suas consequências:
Entenda o dia 16
Em 2009, na ocasião do julgamento acerca da T.I Raposa Serra do Sol, os ministros do STF estabeleceram em seus votos salvaguardas institucionais às terras indígenas, 19 condicionantes para a interpretação dos direitos territoriais indígenas, determinando uma decisão com efeitos transcendentes ao caso específico de demarcação da T.I Raposa Serra do Sol.
As condicionantes mostram-se extremamente danosas ao exercício dos direitos territoriais dos povos indígenas, estabelecendo uma primazia incondicional dos interesses da União sobre os direitos indígenas e menosprezando o direito das comunidades à consulta prévia. Além de as próprias condicionantes terem sua validade constitucional questionada oficialmente, o próprio STF reconheceu em 2013 que a decisão proferida no caso não possuía efeito vinculante, não se estendendo seus efeitos a outros processos de caráter similar.
Em 2010, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil apresentou ao STF a Proposta de Súmula Vinculante no 49. Nela, propunha-se a adoção da data de promulgação da Constituição de 1988 como marco temporal para comprovação de ocupação indígena e reconhecimento de seus direitos originários.
Apesar de a Comissão de Jurisprudência do STF ter se manifestado pelo seu imediato arquivamento, a tese do marco temporal reapareceu na página 7 relatório do acórdão da PET Raposa Serra do Sol (http://bit.ly/2vZ7NXs).
No dia 20 de julho de 2017, foi publicado no Diário Oficial da União o Parecer n. 001/2017/GAB/CGU/AGU, que vincula o processo de demarcação de terras indígenas ao cumprimento das 19 condicionantes, afirmando que o Supremo possui unanimidade e entendimento consolidado a respeito do uso da data da promulgação da Constituição como marco temporal, bem como da concepção de vedação à ampliação de terras indígenas já demarcadas.
O parecer foi fruto de um acordo explícito entre a Bancada Ruralista e o governo Temer, em tentativa de evitar seu afastamento da presidência da república, como pode ser visto no vídeo do Dep. Luiz Carlos Heinze (PP) à sua base política (http://bit.ly/2wSugBW).
No dia 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas, mobilizações contra o marco temporal ocorreram em diversas cidades do país. Em Brasília, a mobilização foi encerrada com uma grande reza Guarani e Kaiowá em frente ao STF (http://bit.ly/2wSq3hB)
No dia 16 de Agosto de 2017, próxima quarta feira, o Supremo Tribunal Federal julgará três ações sobre terras indígenas. (http://bit.ly/2wSFmH8).
Os ministros poderão utilizar-se ou não da tese do marco temporal e das 19 condicionantes para proferirem suas decisões, o que gerará consequências para o futuro das demarcações de terras indígenas, bem como a possibilidade de reabertura de processos de terras indígenas já homologadas (como ocorrido no caso das terras Guyraroká e Arroio-Korá). Neste dia será também julgada a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239/04, impetrada pelo DEM, que questiona a constitucionalidade do decreto que regulamenta a titulação das terras quilombolas. (http://bit.ly/2wS8VIN).
Será um dia decisivo para a consolidação ou o esfacelamento dos direitos das populações indígenas e quilombolas. Frente a esse cenário de alto risco, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) lançaram as campanhas Nossa História Não Começa em 1988! e O Brasil é Quilombola! Nenhum Quilombo a menos!
#MarcoTemporalNão
A tese do marco temporal é uma das principais bandeiras dos grupos ruralistas para restringir os direitos constitucionais das populações indígenas, e vem sendo sistematicamente rechaçada pelas populações indígenas bem como por renomados juristas brasileiros. Para a APIB, o marco temporal "legitima e legaliza as violações e violências cometidas contra os povos até o dia 4 de outubro de 1988: uma realidade de confinamento em reservas diminutas, remoções forçadas em massa, tortura, assassinatos e até a criação de prisões. Aprovar o "marco temporal" significa anistiar os crimes cometidos contra esses povos e dizer aos que hoje seguem invadindo suas terras que a grilagem, a expulsão e o extermínio de indígenas é uma prática vantajosa, pois premiada pelo Estado brasileiro".
Em parecer recente, o constitucionalista José Afonso da Silva adverte que "aConstituição de 1988 é o último elo do reconhecimento jurídico-constitucional dessa continuidade histórica dos direitos originários dos índios sobre suas terras e, assim, não é o marco temporal desses direitos". José Afonso coloca que um suposto marco temporal só teria legitimidade se colocado em 1611, data da Carta Régia de Felipe III e reconhecimento jurídico inequívoco dos direitos originários indígenas, mas reitera que não há na Constituição Federal sinalização alguma de data a partir da qual se fariam valer os direitos territoriais das populações indígenas.
Ademais, em consonância com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, que explicita a ação pungente e deliberada do Estado brasileiro na violação sistemática dos direitos humanos contra as populações indígenas, especialmente no período da implementação de grandes empreendimentos e projetos de colonização entre os anos de 1946 a 1988, o parecer reconhece a responsabilidade do Estado pelo deslocamento forçado e espoliação das terras indígenas, desde a criação do Serviço de Proteção ao Índio, em 1910.
A tese do marco temporal configura-se como mais uma etapa do processo permanente e abertamente agenciado pelo Estado-nação brasileiro de consolidação da colonização, que, passados mais de cinco séculos, continua se reproduzindo e se impondo sobre as populações originárias, que seguem lutando e resistindo contra as recorrentes agressões.
Mariel Nakane - É graduanda em ciências econômicas pela Unicamp e integrante da Frente Pró-Cotas da Unicamp
Álvaro Micheletti - É graduando em ciências econômicas pela Unicamp e membro da gestão do Centro Acadêmico dos Estudantes de Economia
http://jornalggn.com.br/noticia/indigenas-contra-o-marco-temporal-%E2%80%98nossa-historia-nao-comeca-em-1988%E2%80%99-por-mariel-nakane-e-alvaro-micheletti
Índios:Direitos Indígenas
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