Índios isolados ficam à mercê na Amazônia

G1 g1.globo.com - 13/09/2017
Uma das reportagens de capa do site do jornal britânico "The Guardian" de ontem é sobre a investigação de um massacre que teria acontecido contra indígenas de uma tribo isolada na Amazônia. Dez deles estariam mortos e os assassinos seriam garimpeiros de ouro da região, na Terra Indígena do Vale do Javari, próximo à fronteira com o Peru.

Leila Sotto-Maior, coordenadora de índios isolados da Funai, contou ao jornalista britânico que soube que alguns garimpeiros estavam num bar se gabando de terem matado os indígenas. Alguém decidiu gravar a conversa entre os homens e entregar aos técnicos da Funai, que começaram uma investigação. Os envolvidos foram detidos. Eles trabalhavam numa exploração ilegal de ouro na Amazônia.

É um tremendo, um enorme absurdo, que também foi reportado pelo jornal português "O Público". Mas pode acontecer, talvez aconteça muito mais do que se imagina nessas terras longínquas, distantes de tudo e de todos, onde o link com o chamado "mundo civilizado" é o acúmulo de capital.

Garimpar ouro é uma atividade ilegal mas muito exercida nesses cantões Brasil afora. Minha memória puxou um fio longo e fui para a primeira vez que eu vi o Rio Madeira de perto. Andei descalça em suas águas, conheci algumas de suas histórias. Estava ali, como repórter e editora do Razão Social*, para acompanhar o início das obras do maior Complexo Hidrelétrico da história de Furnas.

O ano era 2005, e pude conversar com várias pessoas que seriam atingidas pelas barragens da Usina que se formava. Ouvi também, seguindo o bom manual do jornalista, técnicos da empresa que estavam em campo começando o trabalho de convencimento daquelas pessoas. Era preciso alguém para dizer-lhes que sua casa, seu território, seria inundado. E apontar outras alternativas, sempre pouco atraentes para quem não queria, legitimamente, ser afastado do lugar onde sempre viveu, em nome de um progresso que não veria.

Fui recebida pelo engenheiro Afonso de Andrade Neto, encarregado dessa tarefa. Uma pessoa comum, imbuída de um ligeiro sentimento antagônico que, às vezes, o levava para uma postura quase sentimental em relação ao Madeira, às vezes o trazia para a vida real. O Rio que ele tanto dizia gostar não seria mais o mesmo dentro de 4, 5 anos, assim que começassem a "estrangulá-lo", expressão que usava com frequência. Mas, como forma de abrandar a frase, ele costumava dizer que a empresa onde trabalhava iria causar impactos, sim, mas estava sendo responsável e aumentaria muito o investimento para tentar amenizar o impacto.

Já os extrativistas locais não eram obrigados a nada, disse-me ele. Lembro-me bem dessa conversa, na noite da minha partida, num pequeno restaurante local à beira do Madeira, em Porto Velho. O lugar estava silencioso, não havia outras pessoas além de nossa equipe de três ou quatro, mas eu conseguia ouvir um barulho forte, surdo, de um motor que funcionava o tempo todo. Pensei que fosse um gerador, necessário em locais onde não há energia frequente, mas Afonso me explicou que aquilo era uma draga lançando mercúrio no Madeira para extrair ouro.

"É o que eu chamo de extrativistas locais, são os dragueiros. Eles levam uma vida miserável, trabalham dia e noite embarcados durante dois, três meses, até os patrões ficarem satisfeitos com a extração", explicou-me ele.

Os "patrões" são os garimpeiros. Se a matança, que aconteceu em agosto e agora começa a ser investigada, realmente foi provocada por garimpeiros, é desse tipo de gente que estamos tratando.

A reportagem do "The Guardian" lembra a seus leitores que o governo de Michel Temer, além de tudo o que já se sabe, não tem muito afeto pela preservação do meio ambiente, menos ainda pela causa indígena.

"A Funai teve seu orçamento cortado quase pela metade este ano pelo governo de Michel Temer. E seu governo ainda propôs, recentemente, reduzir uma área protegida da Floresta Amazônica, anunciando planos para permitir a mineração e desenvolvimento nessas áreas", diz o texto do jornal britânico.

Na verdade, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, como já escrevi aqui a respeito a partir de uma entrevista com a ambientalista Adriana Ramos. Mas é bastante incômodo ler num jornal estrangeiro referências tão indignas e, ao mesmo tempo, se não totalmente verídicas, bem próximas à realidade.

Sim, o governo Temer tirou um bocado de dinheiro da Funai, órgão que precisaria ter verba suficiente para proteger pessoas tão especiais como essas, que nunca tiveram contato com a civilização e se veem, de repente, frente a frente com assassinos facínoras sem saber exatamente do que se trata. Uma imagem que me veio à cabeça, talvez mais romântica do que real, remonta aos peixes nos oceanos quando se deparam com inimigos ferozes armados de arpões e deles se aproximam, curiosos.

Sotto-Maior conversou bastante com os repórteres britânicos, municiando-os de bastante informações relevantes. Seu departamento, por exemplo, que cuida especificamente de índios isolados, sofreu um corte de algo em torno de R$ 2,5 milhões. Isso aumenta o risco de eles serem atacados, já que não existe uma fiscalização que possa torná-los seguros.

O pior de toda essa história - se é que existe algo pior - é que se não fosse uma pessoa se dispor a gravar a conversa dos facínoras e passar adiante a quem de direito, nós nunca estaríamos aqui a refletir a respeito do massacre contra povos indígenas que vivem isolados em terras brasileiras. Pessoas, é preciso que seja dito, que se não forem cutucadas, a ninguém farão mal algum. Segundo o site do Conselho Indigenista Missionário (Cimi),o Vale do Javari, onde houve o massacre (ainda não confirmado pela Justiça) é a região com a maior presença de povos indígenas isolados do mundo. São cerca de 15 referências, de um total de 110 existentes na Amazônia brasileira.

Para piorar um pouco mais a história, em carta recente , endereçada do presidente da Funai, Franklimberg Ribeiro, 46 servidores das "Frentes de proteção Etnoambiental e da Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai", condenam as exonerações da Coordenadora-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato, Leila Sílvia B. Sotto-Maior (que falou ao jornal britânico) e da Coordenadora de Planejamento e Apoio às Frentes de Proteção Etnoambiental, Paula W. L. Pires. Para os servidores, usar tais cargos para políticos, em nome de coalizões, acarretando num aumento vertiginoso de invasões ilegais aos territórios ocupados pelos povos indígenas isolados, pode culminar em situações de conflitos, massacres e de consequente genocídio dos povos indígenas isolados.

"Todos os avanços pós-constitucionais e de reconhecimento da política indigenista brasileira serão derrubados, colocando o Estado brasileiro definitivamente no quadro de países violadores de direitos humanos. Será, sem dúvida, um dos maiores retrocessos da história indigenista brasileira", diz a carta.

É o que estaremos observando.



http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/indios-isolados-ficam-merce-na-amazonia.html
PIB:Javari

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