Um golpe na alma dos krenaks do Rio Doce

O Globo, País, p. 6 - 31/10/2017
Um golpe na alma dos krenaks do Rio Doce
Desastre ambiental afeta cultura do povo indígena, que teme por seu futuro

CLARISSA PAINS clarissa.pains@oglobo.com.br
RESPLENDOR, MG

Aindiazinha Alice, de 5 anos, afunda corpo e cabeça na água e sobe rapidamente, um pouco mais ofegante do que o normal. Ela está aprendendo a nadar, habilidade que todo krenak desenvolve nessa idade. Mas, diferentemente dos seus antepassados, que vivem à beira do Rio Doce em Minas Gerais desde antes de 1500, Alice dá seus primeiros mergulhos dentro de uma caixa d'água. Desde que uma avalanche de 55 milhões de metros cúbicos de lama tóxica invadiu o rio, em novembro de 2015, os índios da tribo Krenak perderam, da noite para o dia, os principais elementos que compunham o seu estilo de vida, seus meios de subsistência, cultura e religião. Vivem um luto sem data para terminar.
Com a perda do rio, tanto a cultura material quanto a imaterial desse povo também se perdem. Água e comida ficaram quase impossíveis, remédios passaram a ser comprados na farmácia - antes da contaminação pelos rejeitos de minério, as plantas bastavam - e os rituais religiosos e festivos outrora realizados às margens do Rio Doce tiveram seu sentido esvaziado.
- O rio sempre correu na nossa terra como o sangue corre na nossa veia. É como perder um parente - compara o índio Itamar, de 38 anos, um dos principais líderes do povo Krenak.
O retrato desse luto vivido pela tribo poderá ser visto em uma série documental que estreia dia 8 de novembro, às 22h30min, no Canal Futura, da Fundação Roberto Marinho. Dividida em cinco episódios, cada um com 15 minutos, "Krenak, vivos na natureza morta" mostra como o último povo indígena da região teve que adaptar seus hábitos para continuar vivendo ali depois do desastre.
O Futura organizou uma pré-estreia especial para os índios, com um telão em uma de suas aldeias, na noite do último sábado. O encanto de se verem retratados e de seus protestos ganharem visibilidade se misturou com a dor de assistirem na tela grande à sua tragédia diária.
- O que eu vou ensinar para as próximas gerações? Não sei mais - disse, naquela noite, Dejanira, uma das mulheres mais velhas da tribo. - Meus netos estão nascendo e não temos o rio para batizálos. Eu choro até hoje quando me lembro do dia da tragédia. Dói muito.
RIO DEU VIDA À TRIBO
Pajé de uma das aldeias da tribo, Dejanira não vai mais para a beira do rio. Um irmão dela chegou a morrer de depressão por causa do desastre.
- Não há dinheiro que pague essa água. Foi o rio que nos deu vida. E é o rio que nós somos - salienta a anciã, para logo emendar num choro e desatar a falar em sua língua nativa, o borun.
Três horas antes da exibição da série documental, nossa equipe de reportagem levou 11 integrantes da tribo para reverem o rio - caminho que já foi rotineiro, mas que não faziam há semanas.
- Para qualquer krenak, é um desafio chegar hoje perto do rio e vê-lo como está - diz Itamar, numa voz baixa de um lamento que já foi repetido diversas vezes.
Diretora do programa, Andrea Pilar conta que permaneceu 28 dias imersa nas aldeias do "povo do uatu" ("povo do rio", como eles são conhecidos em borun). A relação de confiança com os índios foi construída aos poucos, e, só a partir daí, ela conseguiu compreender o impacto da poluição daquelas águas para a tribo.
- É como se eles tivessem todo dia um velório passando perto de casa. Antes do desastre ambiental, eles entoavam cantos para o rio, se vestiam de maneira especial para festejar os espíritos do rio, realizavam Jogos Indígenas no rio. Agora tudo isso acabou, e isso muda a forma como eles lidam com o mundo - sublinha Andrea.
Os krenaks, hoje, somam 540 pessoas. Antes da tragédia provocada pela mineradora Samarco, eles já viam sua população reduzir, seu território se estreitar e testemunhavam a desertificação do solo ao redor, provocada pela exploração excessiva de empresas na região. O rompimento da barragem de Fundão, no entanto, foi o estopim para que eles passassem a realmente temer pelo próprio futuro.
Localizado no município de Resplendor, o território krenak é composto por sete aldeias, cada uma com um cacique. Juntas, elas somam 4.900 hectares. No entanto, o espaço já foi bem maior. A tribo chegou a ocupar os mais de 800 quilômetros de extensão do Rio Doce, que liga Minas ao Espírito Santo. Hoje, luta na Justiça para recuperar ao menos o território sagrado de Sete Salões, ocupado por fazendas.
A repórter viajou a convite da Fundação Roberto Marinho

O Globo, 31/10/2017, País, p. 6

https://oglobo.globo.com/brasil/desastre-ambiental-em-mariana-afeta-cultura-dos-indios-krenaks-22012035
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