Comunidades indígenas criam parcerias sustentáveis para assegurar sua sobrevivência
A castanha do Pará, por exemplo, representa um símbolo de independência: "O branco não mexe na nossa castanha e nós protegemos as florestas" diz, Geraldo Pereira dos Santos, da comunidade Anauá
KATHERINE RIVAS
28 FEV 2020 - 07H43 ATUALIZADO EM 28 FEV 2020 - 07H43
No interior das cidades de Caroebe, São João da Baliza e Caracaraí, no estado de Roraima, duas comunidades indígenas Waiwai encontraram na floresta o alimento e o ouro para garantir a subsistência. Na castanha do Pará, semente escura de difícil extração, que Geraldo Pereira dos Santos da comunidade Anauá faz questão de chamar de "a castanha do Brasil", encontramos uma história de comércio de mais de uma década feita pelos indígenas que hoje representa um símbolo de independência e resistência na região ameaçada por madeireiros. "O branco não mexe na nossa castanha e nós protegemos as florestas", frisa ele, um dos anciãos da comunidade, hoje com 58 anos.
A comunidade Anauá não é a única. No norte do país outras comunidades tradicionais têm encontrado no meio das florestas formas diversas de conquistar a independência financeira utilizando uma cadeia sustentável de produção. É o caso dos Waiwai, que se debruçam sobre um território vasto de castanheiras, os Yanomamis e Ye'kwana de Roraima que aprenderam a fazer chocolate e os Yanomamis do Amazonas, que desafiaram o mercado da inovação criando a primeira startup indígena voltada para o ecoturismo no Pico da Neblina, chamado de Yaripo pelas comunidades.
Os empreendedores indígenas contam com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA), instituição sem fins lucrativos que exerce um papel importante assessorando os processos de manejo e também na conexão com as empresas. Essa troca permitiu a criação da rede Origens Brasil, administrada pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (o Imaflora), que atua como facilitadora da comercialização de produtos de origem florestal. Jeferson Straatmann, coordenador do programa Territórios da Diversidade do ISA, destaca que esse é um trabalho feito para garantir os direitos dos indígenas frente ao capitalismo e as políticas de ataque, especialmente no atual governo, que desde a campanha eleitoral manteve um discurso repressivo com as comunidades tradicionais.
Castanhas para as novas gerações
Geraldo Pereira dos Santos mora com a esposa, cinco filhos e duas filhas na comunidade indígena Anauá, lugar que também é lar de 310 indígenas. Localizada ao lado da comunidade Xaary, também formada por indígenas Waiwai, os grupos dividem um território de 405.698 hectares, já regularizado pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Só na comunidade Anauá, Geraldo calcula que 60 indígenas participam diretamente da coleta das castanhas no interior da floresta, um trabalho que iniciou efetivamente em 1997. Mas existia desde 1979 sob a tutela do seu pai, Messias Kirpaka Waiwai. Em toda a região pelo menos 200 indígenas trabalham na extração de castanha. "Quando meu pai conheceu os brancos trabalhando com castanha, ele entendeu que isso poderia ser transformado em trabalho para a comunidade", explica Geraldo, que na época tinha 18 anos. Com a luta pela demarcação das terras e as castanheiras sob domínio indígena, a compra de motores de popa para barcos, em 1997, permitiu que os indígenas explorassem as sementes - muitas destas encontradas em territórios que precisavam de horas de navegação pelos rios. Hoje a produção tomou proporções maiores das quais o pioneiro Messias Waiwai chegou a ver.
União faz a força
Na última década, os Waiwai foram à procura de parcerias com empresas privadas, com apoio do ISA, para conseguir ter uma valorização maior dos seus produtos no mercado. Recentemente, a comunidade firmou contrato com a empresa de pães e bolos Wickbold, que desde 2014 tem relações comerciais com a rede Origens Brasil (por meio do Imaflora). A Wickbold é a única empresa para a qual são vendidas as castanhas dos Waiwai, por meio de contrato. Nos últimos dois anos, a empresa comprou 150 toneladas da comunidade.
Contudo, o caminho que leva as castanhas até o mercado ainda é moroso. Segundo o biólogo e mestre de engenharia florestal do ISA, Felipe Martins, que hoje é responsável pelas visitas mensais do Instituto às comunidades, todas as castanhas passam por um processo criterioso de seleção. Depois elas são armazenadas em galpões pelas comunidades de Roraima para encarar uma longa viagem: por terra até Manaus, na sequência de navio até uma usina em Belém, onde é retirada a casca. Por último, até São Paulo, onde fica a sede da Wickbold. É assim que as castanhas aparecem nos pães da empresa, que tem uma produção diária de 90 mil unidades. Uma parceria que Pedro Wickbold, diretor de Marketing e Vendas da companhia define como socialmente responsável.
Chocolate: sinônimo de resistência
Próximo aos Waiwai, as comunidades Yanomamis e Ye'kwana encontraram no cacau uma forma de subsistir. Há pouco mais de um ano, uma parceria comercial fechada com o chocolatier César de Mendes, também com ajuda do ISA, garantiu que os indígenas produzissem chocolate nas próprias comunidades. O produto foi comercializado em dezembro de 2019. No entanto, este não foi um chocolate qualquer, pois nas suas embalagens as comunidades representaram um grito de resistência contra o garimpo ilegal.
Em um território com mais de nove milhões de hectares, nos estados de Roraima e Amazonas, as 27 famílias Yanomamis sofrem com os ataques do garimpo há pelo menos 40 anos. Moreno Saraiva Martins, antropólogo do ISA, suspeita que na década de 1980, 40 mil garimpeiros invadiram o território dos Yanomamis, sendo responsáveis pela morte de 20% da comunidade por doenças, violência e fome. Hoje, o inimigo ainda mora perto, com mais de 20 mil garimpeiros trabalhando no crime e no controle.
Hoje, a estimativa é de que a região ainda tenha mais de 20 mil garimpeiros trabalhando criminosamente, controlando o leito dos três maiores rios que cortam essas terras.
Além de serem vítimas de um crime que contamina as florestas e dizimam vidas, a comunidade Yanomami sofre com o aliciamento do garimpo ilegal, que atrai especialmente jovens indígenas. Por esse motivo, em 2016 os Yanomamis buscaram alternativas na floresta para enfrentar as seduções do garimpo ilegal.
Cacau dos deuses
Com apoio do Instituto ATÁ, do chef Alex Atala, os grupos chegaram a César de Mendes que, em 2018, fez a primeira oficina para treinar os Yanomamis. O processo de produção inicia nas comunidades indígenas e envolve cerca de
1,3 mil pessoas. Depois o cacau é enviado para a fábrica de Mendes. A produção é subsidiada pelo Instituto Socioambiental. Um quilo de cacau custa hoje R$ 74; quando se torna chocolate, o quilo tem o valor de R$ 1 mil.
O primeiro lote de chocolate Yanomami chegou ao mercado paulista em dezembro de 2019. Foram mil barras de 50g, com uma fórmula que traz 69% de cacau, 2% de manteiga de cacau e 29% de rapadura orgânica. Mendes afirma que o objetivo é que 80% do valor das vendas seja revertido para as comunidades.
Os ventos de Yaripo
No norte do estado do Amazonas, os Yanomamis vivem no ponto mais alto do Brasil, conhecido como Yaripo. Para alguns chamado Pico da Neblina. A comunidade indígena encontrou na montanha sagrada, que sopra o vento dos ancestrais uma alternativa para impedir o turismo desenfreado. Abraçando a inovação, os indígenas criaram a primeira startup dos povos tradicionais para o ecoturismo e hoje possuem práticas interculturais com o homem branco, a quem conduzem por uma longa caminhada de oito dias pelos 2995,30 metros de altitude do Yaripo.
O plano de visitação ao Yaripo, projeto de ecoturismo dos Yanomamis, contém 56 páginas e foi enviado pela comunidade em julho de 2017 ao Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio). O documento foi aprovado em 2018, o que garantiu a regularização da atividade.
Antes disso, entre 1979 e 2002 o Parque Nacional do Pico da Neblina era visitado de forma desorganizada e sem a aprovação das comunidades tradicionais. Segundo Valdemar Pereira Lins, coordenador do projeto Yaripo Ecoturismo Yanomami da Associação Yanonami do Rio Cauaburis e Afluentes (AYRCA), permitir a proteção dessa área é também garantir a proteção dos próprios Yanomamis, que há anos vivem no Yaripo e têm na região restos mortais de ancestrais que, segundo as crenças, se tornaram espíritos e pairam pelo local.
O coordenador adjunto do Programa Rio Negro do ISA, Marcos Wesley, destaca que a regulamentação da startup de ecoturismo auxiliou a comunidade na preservação ambiental e das tradições da cultura Yanomami, assim como no desenvolvimento econômico das famílias. Wesley calcula que 80 Yanomamis começaram a gerar renda prestando serviços e suas comunidades também foram beneficiadas pelos lucros do turismo. Agora eles pretendem ampliar esse trabalho por meio de parcerias, além das já existentes com ICMBio, Funai e ISA. A comunidade procura operadores de turismo para alavancar suas atividades comerciais.
Com um cenário positivo, Valdemar Pereira comemora. Ele sabe que o trabalho do Yaripo não só valoriza a região, mas representa a resistência contra o garimpo. O turismo sustentável promovido pela startup protege a floresta, seus ancestrais e garante que a cultura dos Yanomami seja preservada. Essa nobre missão é também compartilhada pelos produtores de cacau das comunidades Yanomamis e Ye'kwana e a castanha dos Waiwai. As três iniciativas soam como um grito de resistência que confronta a ideologia do governo atual. As comunidades comprovam que falar de economia sustentável é possível, em todos os povos e histórias e não apenas como propriedade de um único sistema capitalista.
https://gq.globo.com/Prazeres/noticia/2020/02/comunidades-indigenas-criam-parcerias-sustentaveis-para-assegurar-sua-sobrevivencia.html
Bacia do Rio Negro
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