Covid-19 se espalha entre indígenas brasileiros e já ameaça povos isolados

El País Brasil - https://brasil.elpais.com - 17/06/2020
Ao menos 287 índios já perderam a vida em decorrência do novo vírus. Comunidades dizem que invasores aproveitam a pandemia, com menos fiscalização, para entrar nos territórios.

Em 1986, os filhos de Omama (criador do mundo), que vivem na maior Terra Indígena (TI) do Brasil, a Terra Indígena Yanomami, entre Roraima e o Amazonas, tiveram sua casa invadida pela primeira vez. Entre aquele ano e 1990, estima-se que 20% dessa população (1.800 pessoas) morreu de doenças e violências causadas por 45.000 garimpeiros ilegais. Foi quando eles conheceram a xawara, palavra que denomina as epidemias levadas pelo homem branco. Três décadas depois, uma nova xawara chegou à Terra Yanomami: a covid-19, que ameaça 40% desse povo e avança também entre outras etnias.

"Estamos acompanhando a doença covid-19 na nossa terra, já são 55 casos, e estamos muito tristes com as primeiras mortes dos yanomami. Nossos xamãs estão trabalhando sem parar contra a xawara. Vamos lutar e resistir, mas, para isso, precisamos do apoio do povo brasileiro, porque o Governo não está se importando com a vida dos indígenas", diz ao EL PAÍS, por telefone, Dário Kopenawa, filho do líder Davi Kopenawa, um dos mais conhecidos xamãs de toda a Amazônia. Quase metade dos yanomami (13.889 pessoas) mora em comunidades que ficam a menos de cinco quilômetros de uma zona de garimpo, e os polos base (equivalentes a postos de saúde) que os atendem têm limitações de infraestrutura e transporte de doentes para outras regiões. "São três horas de avião fretado para tirar um indígena de lá e levar ao hospital", explica Dinaman Tuxá, um dos coordenadores da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). Um estudo do Instituto Socioambiental (ISA) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com revisão da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), estima que, tendo os garimpeiros como o principal vetor de transmissão da pandemia no território, até 13.889 indígenas, o equivalente a 40% da população yanomami, podem pegar a doença.

Pelo menos 287 indígenas brasileiros -entre eles, três yanomami- já perderam a vida em decorrência do novo coronavírus, em um ritmo que se acelera. De acordo com o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, foram 28 óbitos em todo o mês de abril. Já nos primeiros oito dias de junho, o número triplicou, chegando a 89 mortes. A mais recente perda foi a de um bebê kalapalo de apenas 45 dias, cuja morte, no sábado (13/06) foi a primeira registrada entre os indígenas do Xingu, no Mato Grosso. Há outros dois casos confirmados da doença na região, de acordo com o Ministério da Saúde.

O Comitê pela Vida e Memória indígena, formado por diversas associações, como a Apib, contabiliza 5.484 infectados de 103 povos diferentes. Os números são muito maiores do que os oficiais, que trazem 103 mortes e 3.079 casos confirmados. As lideranças indígenas afirmam que a primeira morte ocorreu em 20 de março, mas o Governo só registrou o primeiro caso de infecção -uma jovem de 20 anos, da etnia Kocama, no Amazonas- em 2 de abril. De acordo com o Ministério da Saúde, a divergência se dá porque ele só contabiliza os casos e óbitos entre indígenas que vivem em aldeias, excluindo, por exemplo, os que vivem em zonas urbanas ou em territórios isolados.

Mas o novo coronavírus já ameaça até aqueles que habitam as mais recônditas matas do país. No Vale do Javari, extremo oeste do Amazonas, existe a maior concentração do mundo de indígenas isolados -aqueles que preferem viver somente com membros da própria aldeia, sem contato com outros grupos ou não indígenas. São pelo menos 16 registros, de acordo com a Funai (Fundação Nacional do Índio). Lá vivem ainda cerca de 7.000 índios de recente contato, que tomaram a decisão de se aproximar há apenas 40 ou 20 anos, a depender do grupo. A covid-19 chegou em 4 de junho, depois que quatro funcionários do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Vale do Javari comprovaram que estavam com a doença e foram removidos às pressas da Aldeia de São Luís. Um dia depois, os exames confirmaram que três indígenas kanamari também estavam infectados.

"É assustador. Muitas famílias pegaram seus filhos e fugiram da aldeia, foram para a cabeceira do igarapé e não sabemos nada mais deles, não sabemos se estão bem, se foram atendidos. Tem aldeia mais pra cima que fez barreira para não entrar ninguém de fora e para ninguém sair", conta Higson Kanamari, liderança local. Segundo ele, entre os dias 9 e 10 de junho, 16 casos de covid-19 foram confirmados em duas aldeias vizinhas. "A coisa está se alastrando muito rápido, e não temos suporte hospitalar perto da aldeia [mais de mil quilômetros distante de Manaus]. Temo pelos povos isolados da região, que são ainda mais vulneráveis", lamenta.

O povo Marubo, que também vive no Vale do Javari, teme a aproximação da doença de suas aldeias. "Os marubo já estão se preparando para adentrar mais a floresta, estamos construindo casas mais no meio da mata para nos prevenir da covid-19 quando ela chegar perto", conta o líder Paulo Kenampa Marubo, coordenador geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Ele foi um dos que denunciou dois missionários norte-americanos que pressionaram membros da organização para conseguir uma autorização de entrada ao território, exigida pela Funai. "O Estado tem que tomar providências, porque a atuação dos missionários aqui é muito forte, eles têm avião e viajam por cima das aldeias, dizem que no céu não tem lei, só na terra".

No dia 25 de março, foi feita uma denúncia contra o pastor estado-unidense Josiash Mcintyre, que teria invadido a sede da Unijava para intimidar os indígenas, ameaçando tocar fogo no local. De acordo com uma reportagem do jornal O Globo, Josiash atua com Andrew Tonkin, ligado ao Movimento Novas Tribos do Brasil, rebatizado Ethnos360 e dedicado à evangelização na região desde os anos de 1950. O pastor afirmou que tudo "não passou de fofoca."

Outro território que preocupa as lideranças ouvidas pelo EL PAÍS é a Terra Indígena do Parque de Tumucumaque, na remota fronteira do Amapá e do Pará com o Suriname, onde vivem 1.700 indígenas de seis povos, com pelo menos dois registros de comunidades isoladas. Os líderes denunciam que militares levaram o novo coronavírus para a região, onde há ao menos 23 infectados, incluindo uma mulher grávida de cinco meses transferida em estado grave a Macapá. Os dois primeiros foram de indígenas da aldeia Missão Tiriyó que trabalham em uma empresa terceirizada a serviço do 1o Pelotão Especial de Fronteira (1o PEF), onde atuam cerca de 50 militares do Exército e da Força Aérea Brasileira (FAB). Em nota, o Ministério da Defesa diz que "não é possível afirmar, com segurança, a origem do contágio na região, sendo, contudo, muito pouco provável que seja a transmissão por militares da Força Aérea Brasileira".

Para Dinaman Tuxá, da Apib, a situação dos povos indígenas "é de uma vulnerabilidade imunológica e política". "Existem, no Brasil, 174 territórios em que vivem povos isolados. A Constituição determina que o Governo respeito o isolamento dos povos indígenas que vivem nessa situação, mas isso não acontece. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) acaba de autorizar a nomeação de um missionário para o departamento de povos isolados da Funai", lamenta. Tuxá refere-se a Ricardo Lopes Dias, que assumirá a Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai. Ele havia sido nomeado em fevereiro, mas sua posse foi suspensa em 21 de maio pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, à pedido do Ministério Público Federal, porque Dias é ligado à Missão Novas Tribos do Brasil, um movimento que busca de evangelizar povos isolados, o que revelaria conflito de interesses com a política indigenista do Brasil.

Garimpo e desmatamento não fazem quarentena
A triste novidade da covid-19 chegou aos indígenas brasileiros pela mão de duas velhas mazelas conhecidas por eles, o desmatamento e o garimpo ilegal, que não dão trégua em tempos de pandemia. Lideranças de diferentes etnias denunciam o aumento de invasões até de pescadores e caçadores ilegais em seus territórios, o que faz aumentar o medo -e o risco- da contaminação. "Eles estão aproveitando o momento da pandemia, que tem menos fiscalização ainda, e estão invadindo mais nossos territórios", afirma Higson Kanamari, do Vale do Javari.

O desmatamento em terras indígenas aumentou 63% em abril em relação ao mesmo mês do ano passado, de acordo com os dados do sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O mesmo sistema mostra que, no primeiro quadrimestre de 2020, o aumento foi de 55% em relação ao mesmo período do ano anterior: de janeiro a abril, 1.319 hectares -o equivalente a 1.800 campos de futebol- foram destruídos.

E, em algumas regiões, a situação pode piorar. É o caso do Mato Grosso, onde a Assembleia Legislativa votará nesta quarta-feira um projeto de lei do governador Mauro Mendes que protege apenas terras indígenas homologadas, deixando vulneráveis à ação de invasores aquelas que estejam em estudo para demarcação, delimitadas ou declaradas. Em uma reunião ministerial no dia 22 de abril, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu que o Governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) aproveitasse o foco da imprensa na cobertura da pandemia do novo coronavírus para "passar de boiada" desregulação da proteção ao meio ambiente.

Em reposta a essas velhas ameaças, cada vez mais mortíferas, as lideranças dos povos yanomami e ye'kwana se uniram para criar a campanha #ForaGarimpoForaCovid, que demanda do Governo Federal a "desintrusão" urgente dos mais de 20.000 garimpeiros da Terra Indígena Yanomami.

"Esse posicionamento anti-indígena vem de antes mesmo de este Governo tomar posse. Ele está utilizando o coronavírus como instrumento de um genocídio e, ao mesmo tempo, usando-o para esconder o genocídio que já estava em marcha, com o garimpo ilegal, por exemplo", afirma Tuxá, que critica a "falta de planejamento ou sequer de debate para combater o coronavírus entre os indígenas".

O coordenador da Apib defende a criação de um plano emergencial para construir hospitais de campanha em territórios indígenas. "Além de outras estruturas adequadas à nossa realidade. Na nossa cultura, não tem não tem como viver isolamento, quando, em uma maloka, convivem 16 pessoas. Tem comunidades sem álcool em gel e sabão, é obrigação do Governo garantir isso", diz. Tuxá também reclama estruturas de saúde que respeitem a integridade cultural dos povos. "Os hospitais não garantem o espaço para a pajelança, nosso tratamento espiritual, que acompanha o tratamento do corpo. Tem indígena que não quer ir para o hospital por isso. Prefere fazer os rituais, seja de cura ou fúnebre, na aldeia, prefere morrer aqui".

Enquanto o poder público não age, de norte a sul do país, as lideranças indígenas se comunicam e se organizam para proteger-se. "Estou falando com os caciques e pajés de todo lugar para que a gente faça nossas próprias barreiras sanitárias nas aldeias. Eu não fico triste só pelos yanomami, mas pelos parentes do Xingu e de todo o Brasil. Neste momento, todos falamos a mesma língua", diz Dário Kopenawa.




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