O Globo, Sociedade, primeira página e p. 9 - 17/05/2021
Com Bolsonaro, registro irregular de terra em áreas protegidas aumenta 56%
Estudo alerta que país sofre com perspectiva de legalização da grilagem, que dá sinal verde para a ação de desmatadores e especuladores fundiários
Renato Grandelle
17/05/2021
RIO - Um servidor de uma unidade de conservação em Rondônia prepara-se para uma nova operação contra a grilagem. Ele, que pede anonimato para sua proteção, percorrerá 100 quilômetros em um terreno acidentado, o que fará a viagem durar 20 horas. À sua frente, pretende encontrar criminosos que desmatam até 50 hectares de floresta e vendem a terceiros - estes, desavisados de que o território é protegido por lei. Cenas como esta, que alarmam ambientalistas e a comunidade internacional, tornaram-se mais comuns. De janeiro a 2019 a dezembro de 2020, a área dentro de terras indígenas, parques e estações ecológicas com registros irregulares no Cadastro Ambiental Rural (CAR) aumentou 56%, segundo levantamento inédito do Instituto Socioambiental (ISA).
O total de registros irregulares que incluem terras em áreas protegidas nestes dois anos alcança 10,6 milhões de hectares, território maior do que o estado de Pernambuco.
Criado pelo Código Florestal, em 2012, o CAR é um mecanismo autodeclaratório em que proprietários rurais registram a extensão e localização de suas terras. A análise do cadastro deve ser feita por órgãos ambientais estaduais. O trabalho, no entanto, é retardado por problemas, entre eles cortes orçamentários. Os grileiros, cientes das limitações da fiscalização governamental, usam o protocolo do CAR como se fosse um documento de regularidade da propriedade.
Como a área de pasto é mais valorizada do que a floresta em pé, os invasores devastam a vegetação nativa. Nas localidades de cadastros irregulares, o desmatamento aumentou 63% nos últimos dois anos.
Apenas 3% dos cadastros realizados pelos governos estaduais já foram analisados, segundo o Serviço Florestal Brasileiro, órgão do Ministério da Agricultura que disponibiliza apoio técnico e recursos para agilizar o trabalho das unidades federativas.
Amazônia sofre mais
A situação é particularmente crítica na Amazônia, devido à extensão das unidades de conservação e à escassez de servidores empregados em seu monitoramento e no combate a delitos ambientais.
"Os CARs deveriam ser analisados um a um e aqueles que estão irregulares deveriam ser excluídos", ressalta o levantamento do ISA. "O problema é que o prazo para essa análise vem sendo adiado a cada ano, e, na prática, esse cadastro está funcionando como um documento de posse para grileiros, que ocupam áreas públicas irregularmente".
O levantamento atribui a escalada dos cadastros irregulares ao que batiza de "efeito Bolsonaro". O presidente, segundo o instituto, desmontou órgãos de fiscalização ambiental, reduziu emissão e cobrança de multas ambientais e ignorou pareceres técnicos contra o desmatamento. Estas medidas, entre outras, tornaram mais lucrativa a invasão de terras públicas e aumentou a sensação de impunidade dos desmatadores.
- E o governo apoia projetos de lei que anistiam o desmatamento e aumentam a expectativa de regularização de invasões - acrescenta Antonio Oviedo, pesquisador do ISA e coautor do levantamento. - A mensagem é: invadam as unidades de conservação, pois logo elas poderão perder esse status.
Oviedo sublinha que a morosidade do CAR está fomentando conflitos fundiários - quilombolas têm mais dificuldades para registrar suas terras do que proprietários rurais, que contam com recursos, por exemplo, para contratar topógrafos.
- No Pará, as terras registradas equivalem ao dobro da área do estado. A sobreposição é agravada pela falta de comunicação entre os cartórios.
Indígenas sem proteção
O governo, segundo o ISA, também orientou procuradores da Fundação Nacional do Índio (Funai) a desistir de ações de desmarcação de terras indígenas - nenhum processo com esta finalidade foi aprovado na gestão Bolsonaro. O presidente já afirmou que há um lobby por trás da solicitação de reservas, cuja intenção é "inviabilizar o país".
Para o ISA, as declarações do Planalto "estimulam a corrida por essas terras que, pela Constituição, devem ser de usufruto dos povos indígenas e áreas de proteção ambiental".
Antonio Wilson Guajajara, morador da Terra Indígena Caru, no Maranhão, recorda que o convívio com desmatadores é antigo. No entanto, nos últimos anos, há mais invasores que tentam se estabelecer no território.
- Já convivíamos com desmatadores, mas agora os invasores querem construir suas casas aqui, como se fosse legal - denuncia. - A situação é ainda pior na Terra Indígena Alto Turiaçu, ao norte. E ao sul da fronteira está uma cidade, São João do Caru, avançando em nossa direção. A sensação é de que estamos rodeados. Enfrentaremos muitos problemas daqui em diante.
Dificuldades dos estados
Procurados, governos dos estados amazônicos indicaram que o principal desafio para regularizar os cadastros é a ausência de informações. O Maranhão aponta que muitos registros não trazem informações hidrográficas, de relevo e uso do solo. No Amazonas, os dados enviados ao Instituto de Proteção Ambiental trazem erros de sobreposição de imóveis nas florestas, exigindo "vários ciclos de análise".
No Mato Grosso, 60% dos 105 mil cadastros aguardam complementação dos interessados. No Acre, faltam informações sobre 29.547 registros. O Pará tem 19.289 documentações pendentes ou notificadas, no aguardo de retorno por parte dos proprietários.
Tocantins apontou como maior desafio a falta de mão de obra, infraestrutura e segurança jurídica. O estado não conta com instrução normativa ou decreto sobre como deve ser feita a análise do CAR. Os governos de Amapá, Rondônia e Roraima não responderam.
O Globo, Sociedade, primeira página e p. 9
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