Antropólogo vê catástrofe ameaçando Yanomami

Valor Econômico, Especial, p. A14 - 30/08/2021
Antropólogo vê catástrofe ameaçando Yanomami
Bruce Albert, um dos maiores antropólogos contemporâneos, vê uma ofensiva generalizada contra os direitos territoriais constitucionais dos povos indígenas

Por Daniela Chiaretti - De São Paulo
30/08/2021

O antropólogo francês Bruce Albert, que convive com os Yanomami há 50 anos, lembra de várias tragédias que o contato causou ao povo desde 1973, época da construção da Perimetral Norte, obra que dizimou várias aldeias de sarampo. "Mas a pior catástrofe que vejo em 46 anos é a que estamos assistindo agora", diz. Seis mil indígenas estão acampados em Brasília há oito dias para marcar posição contrária ao marco temporal, tese que estabelece a promulgação da Constituição, em outubro de 1988, como data-limite em que índios deveriam estar ocupando as terras que reivindicam para demarcação. A tese é defendida por bolsonaristas e pela base ruralista do governo e está em julgamento no Supremo Tribunal Federal. "Se aprovada, será a pseudolegalização de uma política de genocídio dos povos indígenas em câmara lenta", diz. "Seria uma vergonha internacional para o Brasil", continua Albert, um dos maiores expoentes da antropologia atual.
Albert, que nasceu no Marrocos e é doutor em antropologia pela Université Paris X Nanterre, é a maior referência entre estudiosos dos Yanomami. Começou a trabalhar com o povo em 1975, fala bem uma das línguas e foi um dos fundadores da Comissão Pró-Yanomami (CCPY), que conduziu com o xamã e amigo Davi Kopenawa a campanha de 14 anos pela homologação da Terra Indígena Yanomami, em 1992. Foi o intérprete no inquérito que ouviu sobreviventes do massacre de Haximu - que vitimou 16 crianças, velhos, mulheres e um bebê em 1993. Cinco garimpeiros foram condenados no caso. O Superior Tribunal de Justiça, em decisão inédita, caracterizou o massacre como genocídio. "O garimpo em terras indígenas está na origem de graves depredações ambientais que levam os índios à desnutrição e a um processo de contaminação maciça por malária, covid, tuberculose. A consequência é grande mortalidade. A isto se somam violência armada e degradação social", diz Albert. "Tolerar o garimpo ilegal em terras indígenas configura, portanto, um crime de genocídio por omissão." "Vejo no país uma ofensiva generalizada contra os direitos territoriais constitucionais dos povos indígenas", diz, referindo-se também ao PL 490, que altera as regras de demarcação e foi aprovado em junho pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. "A Câmara, por mais absurdo que pareça num país dito democrático, pretende legislar contra a Constituição e em prejuízo do patrimônio fundiário e ecológico da Nação", diz, lembrando que as terras indígenas são da União, os índios têm apenas usufruto e preservam a floresta, os rios e a biodiversidade. "Estamos assistindo à uma monstruosa cumplicidade entre o Executivo e o Legislativo na destruição do país e do povo", acredita. Em parceria com o xamã e amigo Davi Kopenawa escreveu "A queda do céu" (Companhia das Letras) publicado na França, em 2010, e no Brasil em 2015. A seguir, trechos da entrevista que concedeu ao Valor por telefone e e-mail:

Marco temporal
A tese do "marco temporal de ocupação" é uma afronta aos princípios da Constituição oriunda da redemocratização do país. Sua validação pelo STF abriria uma brutal regressão ao tempo da ditadura e dos projetos de esbulho maciço das terras indígenas. Em pleno século XXI se trataria da pseudolegalização de uma política de genocídio dos povos indígenas em câmara lenta. Seria uma vergonha internacional para o Brasil.

PL da demarcação
Vejo no país uma ofensiva generalizada contra os direitos territoriais constitucionais dos povos indígenas. Os autores dessa ofensiva são representantes de interesses privados ilegais que pretendem se apoderar das terras públicas protegidas da Amazônia. Os índios não têm propriedade de suas terras, que pertencem ao patrimônio da União. Eles têm mero usufruto permanente, garantido pela Constituição de 1988. Portanto, a Câmara, por mais absurdo que pareça num país dito democrático, pretende legislar contra a Constituição e em prejuízo do patrimônio fundiário e ecológico da nação.

Executivo e Legislativo
Nesta ofensiva há uma privatização disfarçada da Amazônia e sua entrega aos piratas promotores de sua destruição -garimpeiros, madeireiros, grileiros, traficantes. O presidente da República lidera e, infelizmente, a maioria da Câmara segue em troca de benefícios. Estamos assistindo a uma monstruosa cumplicidade entre Executivo e Legislativo na destruição do país e do povo -do manejo genocida da pandemia à devastação da Amazônia. Voltamos à ferocidade predadora do Brasil colonial, só que agora se trata de um colonialismo interno, uma louca autofagia na qual o Estado bolsonarista quer "suicidar" o Brasil. O governo e os bandidos No regime militar havia alguma preocupação com legalidade e com a opinião internacional, não é mais o caso. Agora o governo, como disse meu amigo Carlos Zacquini [missionário que está com os Yanomami há 50 anos e deu entrevista sobre a situação de aldeias que sofrem com falta de remédios e profissionais de saúde], está do lado dos bandidos em relação aos ataques aos Yanomami [referindo-se a vários episódios recentes, com pessoas armadas atirando nas aldeias]. Tivemos muitas catástrofes com as várias ondas do garimpo, mas é a primeira vez que não há para onde recorrer, nenhuma autoridade.

Saída da Convenção 169, da OIT Sair da 169 [o Brasil ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho em 2002; por ela, os povos indígenas têm direito à consulta livre, prévia e informada de projetos que possam afetá-los; PL no Congresso propõe que o Brasil deixe de ser signatário] seria um novo episódio do desmantelamento da proteção do Estado brasileiro aos direitos originários dos indígenas. Seria, sobretudo uma sinalização internacional oficial de que o Brasil agora faz parte do grupo de países que perseguem suas minorias. Os Yanomami e o garimpo O garimpo em terras indígenas está na origem de graves depredações ambientais que levam os índios à desnutrição e a um processo de contaminação maciça -malária, covid, tuberculose. A consequência é uma grande mortalidade. A isto se somam violência armada e degradação social. Tolerar o garimpo ilegal em terras indígenas configura, portanto, um crime de genocídio por omissão. Constituição modelo As tensões entre Estado e índios estão atingindo um nível inédito porque o governo Bolsonaro deslanchou uma anacrônica guerra colonial contra os povos indígenas, desmantelando a proteção do Estado e incentivando interesses privados a invadir territórios. A única solução é um novo governo, que respeite a Constituição - tida internacionalmente como um modelo de respeito às minorias. Produção em terras indígenas Historicamente, desde que suas terras e recursos naturais sejam respeitados, os índios demonstram grande capacidade de auto-sustentação econômica. Mas a invasão de suas terras, destruição dos recursos e degradação da situação sanitária pelo contato os mergulham na pobreza. A "pobreza dos índios" é só a imagem no espelho da nossa capacidade de destruição social e ecológica de outros povos. Atividades ilegais como garimpo, desmatamento e grilagem são fontes de degradação ecológica, social e sanitária com imensos custos para o erário. O primeiro choque Em 1974 vim ao Brasil fazer doutorado. Fui convidado a participar de um projeto entre a universidade e a Funai para tentar proteger os Yanomami durante a construção da Perimetral Norte [a BR-210 foi planejada para unir o Amapá ao Amazonas passando por Pará e Roraima; cruzou regiões com povos indígenas não contactados]. Foi um choque descobrir os Yanomami e ver a chegada da estrada, um dos projetos militares daquele tempo. Descobri a realidade em sua dupla face: o povo ainda muito isolado e, do outro lado, o choque do contato com máquinas enormes abrindo a estrada no meio da floresta. Foi impressionante.

Sarampo
Muitos morreram porque começaram as epidemias. No começo da construção da estrada, em 1973, várias aldeias sumiram, uma tragédia. Vejo catástrofes desde aquele tempo. A pior, em 46 anos, é a que estamos vendo agora.

O massacre de Haximu
Era 1993 e eu estava no campo, na aldeia do Davi [Kopenawa, xamã Yanomami e amigo de Lambert]. Escutei no rádio que havia acontecido um massacre entre os Yanomami. Era tudo confuso, todos mundo queria saber onde estavam as vítimas. Chegou a Polícia Federal com um delegado muito profissional, Raimundo Soares Cutrim, que fez o inquérito e eu fui o intérprete dos Yanomami. Passamos dias colhendo depoimentos dos sobreviventes. Ouvimos sempre a mesma história e se descobriu tudo, quem havia morrido e quem eram os garimpeiros. O delegado Cutrim atestou a solidez daquela história. Depois foram aos garimpos atrás dos caras, alguns foram presos, outros escaparam [em 1997 a justiça condenou cinco garimpeiros na primeira sentença de genocídio assumida no Brasil.]

A dinâmica do garimpo
O garimpo começou há muitos anos na região. No começo tinham bateia, mas depois chegaram os maquinários. Falava-se em 40 mil garimpeiros nos anos 90 e centenas de pistas clandestinas. O Brasil abrigou a Eco-92, a questão era um desastre de imagem para o país, então teve reação. O governo expulsou os garimpeiros e delimitou a terra. Desde a metade dos anos 80 a vida dos Yanomami e do garimpo está indexada ao preço do ouro na Bolsa de Londres. Quando o preço do ouro sobe, aparece gente para garimpar. É o caso agora. É o mercado do "gold blood". Não é país estrangeiro Foi Jarbas Passarinho [militar e político, ex-ministro do Trabalho, da Educação, da Previdência Social e da Justiça] quem convenceu os militares naquele tempo que delimitar a área Yanomami não era criar um país estrangeiro. Os índios não têm propriedade de coisa alguma, a crítica de que a terra deles é enorme é absurda. É terra da União, patrimônio da nação brasileira.

Cortar a logística
Há 30 anos a Terra Indígena foi homologada, e há 30 anos têm garimpeiros lá. Para neutralizar o garimpo tem que cortar a logística - aviões, combustíveis, investimentos. Já foram feitos trabalhos de inteligência pela Polícia Federal, mas os interesses políticos e econômicos lá são tão grandes que a coisa não avança. Não é garimpo - são pequenas mineradoras ilegais.

Desnutrição
O contato intenso desestrutura os meios de subsistência tradicionais. Com o garimpo, em pouco tempo não há mais caça para comer. As pessoas ficam constantemente doentes, perdem o período de plantio, e aí não tem mais roça e comida. Nos anos 70, quando vi os Yanomami isolados não havia desnutrição nenhuma.

O que estamos perdendo
A área Yanomami no Brasil representa cerca de 1% da floresta tropical no planeta. Estão preservando uma área imensa que é da nação inteira. Cuidam dos rios, conhecem o ambiente nos menores detalhes, comem dezenas de frutas diferentes, mais de 35 tipos de mel, têm um conhecimento botânico gigantesco. São cientistas do meio natural da maior competência. Perde-se uma cultura com toda sua riqueza. Tenho amor pelo Brasil desde os meus 20 anos e fico perplexo com estes absurdos.

Soberania perdida
É a soberania perdida aos criminosos, grileiros, garimpeiros, madeireiros. Isso não é desenvolvimento econômico, é pilhagem. A riqueza vai para fora, de contrabando. É só prejuízo para a nação. O garimpo também virou uma máquina de lavagem de dinheiro. Este é um fato novo. É uma república pirata que se instala ali com traficantes de droga e de ouro.

O povo da mercadoria
Nossa cultura transforma tudo em mercadoria, nada a ver com os Yanomami. Eles têm dois mecanismos sociais que impedem qualquer forma de acumulação. O primeiro é que não existe herança: quando alguém morre, tudo o que pertencia ao morto é destruído. E pessoas notáveis na comunidade são as que têm extrema generosidade e distribuem tudo. Também detestam quem passa o tempo se lamentando: ou você está com raiva e vai para a guerra, ou tem que rir. Têm muito bom humor e uma dignidade no sofrimento que admiro muito. A referência da minha vida são os Yanomami.

Valor Econômico, 30/08/2021, Especial, p. A14

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PIB:Roraima/Mata

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