Demarcação de terras indígenas ameaça derrubar o céu sobre juízes do STF

FSP - https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marceloleite - 11/09/2021
Demarcação de terras indígenas ameaça derrubar o céu sobre juízes do STF
Decisão sobre marco temporal de terras indígenas revelará de que lado afinal estão os ministros

Marcelo Leite
11.set.2021

O STF (Supremo Tribunal Federal) adiou mais uma vez a decisão sobre a caixa de Pandora que abriu em 2008 ao inventar a tese do marco temporal como precondição para demarcar terras indígenas (TIs). Parece evidente que a corte hesita em definir sua posição, que terá repercussão geral.
Se consagrar a noção de que o direito originário às TIs ainda pendentes, em franco desrespeito à Constituição, só pode ser reconhecido nos casos em que estivessem ocupadas em 1988, o STF será festejado pela banda ogra do agronegócio. Grileiros e garimpeiros também cantarão vitória sobre os primeiros brasileiros.
Já se os ministros banirem a interpretação arrevesada do art. 231 da Carta, resultado de uma rara concertação civilizada no Congresso, preservarão sobre as próprias cabeças o teto frágil de respeitabilidade que ainda os abriga da tempestade. Continuará valendo o esforço, cada vez mais árduo, de defendê-lo.
A facilidade com que o juiz do inquérito das notícias fraudulentas engoliu as ofensas do presidente Jair Bolsonaro faz temer pelo pior (sem trocadilho com o sobrenome de um ex-presidente movido pelo pior no país). Uma simples buzinada de carreta de sojicultor parece capaz de trincar o telhado de vidro.
A ideia de um teto que garante a sobrevivência ganhou destaque no pensamento dos Yanomami. Não por outra razão aparece no título "A Queda do Céu", livro escrito pelo xamã e líder da etnia Davi Kopenawa com o antropólogo Bruce Albert.
A mensagem é clara: se e quando a floresta desaparecer, e com ela os últimos xamãs, o céu ruirá sobre nossas cabeças. Esmagará não só os crânios dos indígenas em suas terras tradicionalmente ocupadas (ou delas expulsos), mas igualmente os do "povo da mercadoria", como nos designam os parentes de Kopenawa.
Uma maneira de decifrar a figura põe a crise do clima no lugar do firmamento que se esboroa. Com efeito, a biomassa contida na floresta -tão bem preservada nas TIs- tem peso relevante no balanço de carbono que pode desacelerar o efeito estufa e os eventos extremos deflagrados pelo aquecimento global.
É uma interpretação empobrecedora, estreita mesmo, pois deixa de lado os xamãs que sustentam o céu em conluio com os xapiris (espíritos). Numa palavra, a cultura, o acervo de crenças, conhecimento e histórias que mantêm os Yanomami (e tantos outros povos) vivos e vigorosos no meio inclemente da floresta.
Um mundo sem esses habitantes da mata e suas palavras seria ainda mais triste e árido do que já se tornou com o advento de Jair Bolsonaro. Quem duvidar que compare as cenas do 7 de Setembro na Esplanada ou na Paulista com as do filme "A Última Floresta", de Luiz Bolognesi.
Imergir na película tem algo de semelhante com atravessar o espelho do igarapé e adentrar o mundo das águas na companhia de Omama e Thuëyoma, casal venturoso que deu origem aos Yanomami. E ganhar olhos de peixe, para tudo enxergar no outro elemento, libertos da fumaça dos tanques no Planalto.
Yoasi, irmão de Omama, também se deita com Thuëyoma, mas a machuca e entristece com seu pênis disforme. Termina expulso das terras de Omama e, na outra margem do rio-oceano, inventa a morte, até então desconhecida pelos humanos.
A morte ronda agora o Brasil, com Bolsonaro, Covid, fuzis, caminhoneiros e marco temporal. O Supremo pode fazer seu tanto para derrotá-la, na frente de batalha que lhe cabe, mas fique o alerta de Thuëyoma: mais cuidado com quem se deita.


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